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Cláusula de hardship: Proteção contratual na era da guerra tarifária

Cláusulas de hardship permitem renegociação contratual diante de mudanças significativas, como guerras tarifárias, evitando rigidez e quebra de acordos em cenários econômicos voláteis.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Atualizado às 13:25

A importância do dever de renegociar o contrato em um mundo em constante mudança

Numa economia de mercado, é natural que as empresas encontrem certa instabilidade decorrente da própria dinâmica do mercado. Por outro lado, quando da formação dos contratos, as empresas consideram o contexto no qual estavam inseridas quando da negociação.

Com a execução dos contratos, a situação fática que deu base para a celebração do acordo pode ter sofrido alguma alteração, pois a todo momento as empresas buscam aumentar os mercados, melhorar seu produto perante a concorrência, brigam por melhores preços.

As empresas precisam também considerar as mudanças decorrentes da ação dos governos, seja através da concessão ou retirada de incentivos fiscais, seja através de investimento (ou o término deles) em alguma região, de modo a afetar diretamente a dinâmica de oferta e procura por bens e serviços, tendo como consequência a possível mudança nos preços correspondentes.

Se no comércio local já há situações que possam surgir e alterar a base objetiva do contrato, quanto mais quando a negociação ocorre entre empresas de diferentes países!

Enquanto na esfera doméstica o governo federal possui soberania sobre o território e pode intervir para acomodar as tensões ou até mesmo minimizar determinados problemas decorrentes, por exemplo, da falta ou de excesso de oferta, no cenário internacional não há essa figura central, haja vista a característica anárquica da sociedade internacional1. Por mais que os Estados possam cooperar, tal situação não retira a característica anárquica da sociedade internacional.

Guerras, catástrofes ambientais, epidemias e, mais recentemente, tarifaços podem ofertar a viabilidade dos contratos internacionais, de modo que as empresas que celebram tais acordos precisam de algum remédio a fim de não ficarem à mercê das volatilidades de tais acontecimentos.

O cenário global e seus impactos contratuais

Não há dúvida para ninguém que o mundo está em constante transformação e que, com o passar do tempo, os polos do poder mundial mudam de lugar. De tempos em tempos, um novo país hegemônico surge no cenário internacional, e diversos fatores podem ser considerados para analisar a ascensão e queda das grandes potências, conforme já destacado por Paul Kennedy.2

Na história recente, a China já despontava como a nova economia que iria rivalizar com os Estados Unidos, seja para tomar o seu lugar, seja para criar uma nova ordem, desta vez multipolar.

O ponto em questão é: por mais que a análise até então seja das relações internacionais, o empresário (também) precisa estar atento a tais acontecimentos, uma vez que seu negócio pode ser afetado por conta da alteração do tabuleiro, principalmente se sua empresa tiver negócios fora do país, seja como importador, seja como exportador.

Em um cenário que pode ser modificado rapidamente afetando a base objetiva dos contratos, qual o remédio jurídico apto a acomodar tais tensões?

A cláusula de hardship como solução preventiva

A cláusula de hardship nada mais é do que uma cláusula prevista em contrato que obriga as partes a renegociar o que fora acordado.

É possível que as partes considerem, por exemplo, que uma alteração no preço de custo do importador de mais de 20%, em moeda local, por um determinado tempo, obrigue as partes a renegociarem o preço do produto na origem, uma vez que tal mudança de preço é considerável e já teria se estabilizado, não sendo mais uma mera oscilação momentânea, o que poderia impactar na competitividade do produto quando comparado aos concorrentes.

Diante do cenário atual do tarifaço promovido por Donald Trump e as retaliações dos demais países, duas situações podem ocorrer: houve tanto o aumento das tarifas (o que encarece o custo do produto via impostos), quanto a oscilação do preço da moeda (o que altera o custo do produto via câmbio).

Na cláusula de hardship, por exemplo, não precisaria estar exemplificado qual o motivo da alteração no custo nem quando tal situação ocorreria, mas somente o efeito que teria sobre o preço ajustado inicialmente pelas partes.

A finalidade de tal cláusula é dar certa flexibilidade no contrato, permitindo sua adequação enquanto está sendo executado, de modo a fugir da rigidez que muitas vezes dificultam os negócios.

Se o mercado é dinâmico e o cenário pode mudar muito e de forma rápida, é importante que as empresas estabeleçam mecanismos que moldem o contrato ao novo cenário no qual ele terá de ser executado.

Conforme destaca Judith Martins-Costa3:

"Considera-se que eventos incertos, ainda que previsíveis, caracterizam riscos para cujo enfrentamento nem sempre é conveniente uma fórmula contratual rígida, fixada a priori -como seria um contrato a preço fixo - de modo que as partes podem escolher enfrentá-los por meio de fórmulas e técnicas que possibilitem a aderência entre os valores patrimoniais devidos e os riscos efetivamente realizados, modelando, assim, uma relação sinalagmática evolutiva. Tecnicamente, a "evolutividade" ampara-se em um complexo de fórmulas, podendo resultar de critérios e procedimentos postos pontualmente no contrato ou, diferentemente, em previsão genérica de renegociação, procedida diretamente entre as partes ou viabilizada com a intervenção de um terceiro imparcial. O relevante é que as partes se asseguram que o poder de revisar o contrato, adaptando-o às circunstâncias, reste, primariamente, em suas mãos, para o que estabelecem, já no próprio contrato, o mencionado "projeto de adaptação" cujo alcance pode ser menor (por exemplo: promover o reequilíbrio dos preços do contrato) ou maior (e.g.: readaptar globalmente o contrato a novas condições de mercado), havendo, entre o ponto mínimo e o máximo de intervenção, várias escalas intermediárias."

Conclusão: Prevenção como estratégia

A guerra tarifária iniciada recentemente é apenas uma das situações que podem afetar os contratos internacionais (e os nacionais), e serve como alerta para a importância de as partes preverem situações que façam com que o contrato se amolde às circunstâncias.

Se o contrato estiver muito rígido, as partes (ou uma delas) poderá ter grande dificuldade no seu cumprimento, de modo que a sua rigidez será o fato concreto que poderá ensejar a sua quebra, o que daria margem para a parte que se sentiu prejudicada tentar enquadrar a situação na teoria da imprevista, tentando argumentar que a situação ocorrida não se enquadra no próprio risco do negócio.

Melhor, mais fácil e mais harmônico seria as partes convencionarem uma cláusula com dever de renegociar a base objetiva do contrato caso determinadas mudanças fáticas ocorressem.

__________

1 BULL, Hedley. A sociedade anárquica / Hedly Bull: Prefácio de Williams Gonçalves: Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

2 KENNEDY, Paul. A ascensão e queda das grandes potências: transformação econômica e conflito militar de 1500 a 2000. Editora Campus, 1989.

3MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração. Revista de Arbitragem e Mediação, Vol. 25/2010, p. 11-35, Abr-Jun/2010, Revista dos Tribunais On-line. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7933292/mod_resource/content/1/12.2%20Martins-Costa.pdf

Tiago Jones da Silva

VIP Tiago Jones da Silva

Advogado. Sócio do Mascarenhas, Santo & Jones Advogados. Graduado em Direito (UCSAL). Especialista em Advocacia Empresarial (PUC-Minas). Aluno Especial PPGD UFBA. Especializando em Proc. Civil (UERJ).

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