MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Recusa ao bafômetro: Quando o Direito vira punição e a Constituição é ignorada

Recusa ao bafômetro: Quando o Direito vira punição e a Constituição é ignorada

Recusar o bafômetro é um direito, não uma confissão. Entenda por que punir sem provas concretas fere a Constituição e transforma garantias em punições.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Atualizado às 14:36

A decisão do ministro Carlos Cini Marchionatti, ao trancar ação penal no STJ, por reconhecer a ilegalidade de uma revista veicular realizada sem qualquer fundamento concreto, vai muito além do caso específico. Ela representa um alerta - e um convite à reflexão - sobre os limites que a Constituição impõe à atuação do Estado, mesmo (ou especialmente) quando esta ocorre sob a justificativa da segurança pública ou da fiscalização de trânsito.

No caso noticiado pelo portal Migalhas, a busca no interior do veículo foi feita durante uma simples abordagem de rotina, sem que houvesse qualquer elemento objetivo que a justificasse. Nenhum comportamento suspeito, nenhuma denúncia, nenhum sinal visível que pudesse fundamentar a medida invasiva. Resultado: provas anuladas e ação penal trancada. O que está em jogo, portanto, é a reafirmação de que a atuação estatal deve estar sempre lastreada por elementos concretos, sob pena de descambar para o arbítrio.

Essa lógica, no entanto, precisa ser estendida a outras situações que também colocam em risco direitos fundamentais. Um exemplo eloquente é o da recusa ao teste do bafômetro, prática cada vez mais comum entre motoristas que conhecem seus direitos, mas que acabam, paradoxalmente, sendo punidos exatamente por exercê-los. O STF, ao julgar a ação direta de inconstitucionalidade 4.103, considerou válida a penalidade administrativa imposta ao condutor que se recusa ao teste de alcoolemia, ainda que essa recusa esteja ancorada no legítimo direito de não produzir prova contra si mesmo.

Contudo, por mais que se reconheça a constitucionalidade formal da medida, não se pode ignorar que ela desafia um princípio basilar da razoabilidade. Hoje, no Brasil, o motorista que se recusa ao teste do bafômetro - mesmo sem apresentar qualquer indício de embriaguez e mesmo que não haja qualquer prova concreta contra si - recebe exatamente a mesma penalidade daquele que é flagrado dirigindo sob influência de álcool: multa e suspensão do direito de dirigir por 12 meses.

A aplicação da norma administrativa sem qualquer gradação ou ponderação revela-se incompatível com o princípio da razoabilidade, na medida em que trata de forma idêntica situações que são substancialmente distintas. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da razoabilidade impõe que o exercício do poder público observe uma lógica de justiça prática, respeitando a coerência entre meios e fins. Para o jurista, "a Administração não pode adotar medidas desproporcionais, inúteis ou que agravem desnecessariamente a situação dos administrados, sob pena de ilegalidade" (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 101). Portanto, uma sanção que não leva em consideração a existência (ou não) de sinais de embriaguez, tratando a mera recusa ao teste com o mesmo rigor reservado ao flagrante de condução alcoolizada, é manifestamente irrazoável.

A razoabilidade, nesse sentido, exige que o ato administrativo observe não apenas a legalidade formal, mas também a justiça material do conteúdo que produz. Ignorar as circunstâncias concretas da conduta e aplicar uma pena severa e uniforme tanto a quem dirige embriagado quanto a quem apenas exerceu o direito ao silêncio sem qualquer outro indício comprometedor rompe o equilíbrio exigido pela norma constitucional. É como se o ordenamento jurídico, em nome da eficácia repressiva, aceitasse um atalho que fere o núcleo essencial das garantias individuais.

Ao aplicar a mesma punição em contextos completamente distintos, o Estado deixa de lado a noção de proporcionalidade entre a conduta e a sanção imposta, elemento fundamental da razoabilidade. Não se trata, aqui, de enfraquecer a fiscalização ou relativizar os riscos da direção sob efeito de álcool, mas sim de exigir que a atuação administrativa seja coerente, equilibrada e racional. Penalizar de forma idêntica aquele que representa perigo concreto à coletividade e aquele que, sem nenhum indicativo de má conduta, apenas opta por não produzir prova contra si mesmo, compromete a legitimidade do sistema como um todo.

Essa equiparação, além de desproporcional, fragiliza o princípio da individualização da sanção e ignora a complexidade das motivações humanas. Aquele que se recusa ao teste pode simplesmente estar exercendo um direito constitucional assegurado - o de não se autoincriminar - e, ainda assim, é tratado como se tivesse cometido a infração mais grave possível. Há, aqui, uma inversão perversa: o silêncio, que deveria ser resguardado como manifestação de um direito, transforma-se em critério de punição automática.

A analogia com a decisão do STJ é inevitável. Assim como a revista veicular não pode ser justificada apenas pela "intuição" do agente público, tampouco a imposição de sanções severas pode se basear unicamente na ausência de colaboração do cidadão. É preciso mais. É preciso que o Estado demonstre, com dados objetivos e registrados formalmente - no auto de infração ou no boletim de ocorrência - que havia indícios mínimos de irregularidade. Caso contrário, a punição não se sustenta, pois não há justa causa nem proporcionalidade.

Não se trata de proteger infratores ou dificultar o trabalho dos órgãos de trânsito. Trata-se, sim, de lembrar que o Estado também tem limites - e que esses limites não são obstáculos à sua ação, mas garantias que protegem todos os cidadãos, inclusive aqueles que cumprem as regras. Um sistema de fiscalização forte é aquele que se ancora na legalidade e na justiça, e não aquele que presume culpa para justificar sanções automáticas.

A imposição de sanções sem qualquer base empírica ou documental configura evidente desvio do poder regulamentar e transforma a atuação administrativa em instrumento de coerção e não de justiça. A ausência de fundamentação concreta para medidas restritivas, como a suspensão do direito de dirigir, desnatura o próprio conceito de legalidade substancial, pois a autoridade administrativa deixa de atuar como garantidora da ordem pública para assumir um papel inquisitório, fundado mais em presunções do que em fatos. Sem a devida justificação, a sanção perde seu caráter pedagógico e protetivo e se converte em penalidade arbitrária, insuscetível de controle social eficaz e promotora de insegurança jurídica.

Esse cenário revela uma preocupante inversão da lógica garantista: ao invés de exigir que o Estado comprove a infração a partir de elementos verificáveis, impõe-se ao cidadão o ônus de se defender de uma sanção que sequer foi adequadamente motivada. O princípio do contraditório e da ampla defesa, pilares do devido processo legal, tornam-se inócuos diante de um sistema que sanciona pela simples negativa do cidadão em colaborar, mesmo quando a lei não impõe um dever jurídico de autoincriminação. O resultado prático é a corrosão da legitimidade das instituições, pois o cidadão passa a ser visto como um obstáculo - e não como o titular de direitos que a administração pública deve proteger.

Portanto, a decisão do STJ, ao reconhecer a ausência de justa causa para a revista veicular sem elementos concretos, mostra que a autoridade estatal, mesmo bem-intencionada, deve atuar dentro de limites objetivos e racionais. O mesmo deve valer para a imposição de sanções administrativas como a prevista pela recusa ao teste do bafômetro: se não houver outros elementos que revelem sinais de embriaguez, a aplicação da penalidade, por si só, se distancia da finalidade legítima de proteção à coletividade e se aproxima perigosamente de uma sanção automática, infundada e, portanto, inconstitucional em sua essência. Afinal, quando a punição independe da verdade dos fatos e prescinde de motivação concreta, o que resta não é um Estado forte, mas um Estado arbitrário.

Por fim, em tempos em que a eficiência muitas vezes se sobrepõe ao devido processo legal, decisões como a do ministro Marchionatti são essenciais para lembrar que direitos não são favores e que garantias constitucionais não são meros adornos teóricos. Elas são a essência de um Estado que se pretende democrático. O trânsito pode - e deve - ser fiscalizado com rigor. Mas jamais à revelia da Constituição.

_________

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.103/DF. Relator: Min. Luiz Fux. Julgamento em 19 de maio de 2022. Plenário. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2628419. Acesso em: 16 abr. 2025

MIGALHAS. STJ: Ministro tranca ação penal por busca veicular sem fundada suspeita. Migalhas, São Paulo, 15 abr. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/414865/aniversario-do-cdc-tres-decadas-de-protecao-e-evolucao. Acesso em: 16 abr. 2025.

Luis Marcelo Lopes de Lacerda

VIP Luis Marcelo Lopes de Lacerda

Advogado, CEO do Marcelo Lacerda Advogados, Mestre em Direito Público, especialista em concessões, PPPs, SPEs, governança e compliance, com atuação estratégica em projetos de alta complexidade.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca