Reforma tributária 18: Do ISS ao IBS no destino
Tratará da questão do conflito de competência na cobrança do ISS pelo tomador dô serviço e seus desdobrados.
terça-feira, 22 de abril de 2025
Atualizado às 14:36
Na presente semana, deparei-me com duas situações análogas relacionadas à arrecadação do ISSQN - Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, no contexto de empresas prestadoras de serviços sediadas no Porto Digital, localizado na cidade do Recife/PE. A primeira situação envolvia a execução de serviços de gestão de folha de pagamento para um ente municipal. A segunda referia-se à realização de serviços de concursos públicos e processos seletivos por instituição igualmente sediada no Recife antigo, embora contratada por um município situado em outro ente federativo. Ambas as pessoas jurídicas são beneficiárias de incentivo fiscal instituído pelo Município do Recife, usufruindo da alíquota reduzida de 2% sobre o ISS.
1. Da guerra fiscal entre municípios
O ISSQN historicamente figura como objeto de acirradas controvérsias federativas. É comum que sociedades empresárias transfiram formalmente seus domicílios tributários para entes municipais que ofereçam alíquotas mais vantajosas, com o escopo de aproveitar benefícios fiscais. A sistemática legal vigente prevê, em regra, que o imposto deve ser recolhido no local do estabelecimento prestador ou, na sua ausência, no domicílio do prestador. Isso se deve à interpretação do fato gerador como ocorrente onde se encontra estruturada a prestação dos serviços. Na prática, contudo, tal definição frequentemente enseja disputas interpretativas.
Embora a sistemática pareça objetiva, o ISS é devido ao ente municipal em razão da execução de serviços enumerados no rol taxativo da LC 116/2003, sendo imprescindível que tais serviços estejam igualmente previstos na legislação local. A chamada "guerra fiscal" tem origem na política de concessão de alíquotas reduzidas como mecanismo de atração empresarial, provocando desequilíbrios federativos e litígios entre municípios.
2. Da insegurança jurídica decorrente das alterações legislativas
Frente à evasão de receita pública, municípios prejudicados passaram a pleitear respaldo político, culminando na promulgação da LC 157/16, que promoveu alterações substanciais na LC 116/2003, notadamente quanto ao local de incidência do imposto. A nova redação do art. 3º estabeleceu exceções à regra geral, prevendo que o imposto será devido no local do tomador ou onde efetivamente se realiza a prestação, conforme hipóteses dos incisos I a XXV.
Ressalte-se episódio jurisprudencial envolvendo laboratório que recusava-se a recolher o ISS no município da coleta de material biológico, sob a justificativa de que os exames eram processados em outro local. Os tribunais, contudo, firmaram entendimento no sentido de que a coleta constitui etapa material do serviço, legitimando a exigência tributária no local de sua realização, equiparando-o a uma unidade operacional para fins fiscais.
Os serviços de TIC - Tecnologia da Informação e Comunicação enfrentam dilemas semelhantes. No caso da Netflix, por exemplo, a arrecadação do ISS é centralizada em São Paulo. Já em relação aos aplicativos de transporte, como Uber e 99, prevalece o entendimento de que o imposto é devido no local da efetiva prestação - isto é, onde ocorre o deslocamento do passageiro.
3. Da tributação dos serviços de informática
No que tange aos serviços de informática, tais como a gestão de folha de pagamento - objeto de uma das consultas mencionadas - observa-se que a atividade não se encontra expressamente contemplada no art. 3º da LC 116. Todavia, o art. 4º da referida norma admite, em interpretação extensiva, que o imposto seja exigido no local do tomador dos serviços.
O debate instaurado no STF, no bojo das ADIs 5832 e 5865, bem como na ADPF 499, não solucionou definitivamente a questão. Na prática, subsiste a incidência de cobrança duplicada, tanto pelo município do domicílio da empresa quanto pelo ente contratante, agravando a insegurança jurídica. Em muitos casos, a simples presença de execução material mínima no território do tomador tem sido suficiente para legitimar a exigência do tributo.
No caso concreto das duas consultas referidas, observa-se orientação jurisprudencial inclinada a reconhecer a competência do município contratante. No primeiro caso, tal entendimento decorre da instalação local dos softwares, sendo o suporte prestado de forma remota. No segundo, pela realização in loco das provas e avaliações. Em que pese a estrutura empresarial estar concentrada no Porto Digital, o incentivo fiscal municipal não tem sido apto a afastar a incidência tributária no local da materialização do serviço.
Ainda que pontual, a tendência é de que tal controvérsia torne-se recorrente. Por essa razão, recomenda-se que os contribuintes consultem profissional especializado, visto que o recolhimento equivocado do imposto pode acarretar pagamento em duplicidade.
4. Da reforma tributária e seus impactos
A promulgação da emenda constitucional 132/23 e a subsequente edição da LC 214/25 preveem a substituição do ISS pelo IBS - Imposto sobre Bens e Serviço, o que deve pôr fim a tais conflitos de competência. A titularidade da arrecadação passará a pertencer ao local do destinatário ou adquirente do serviço, em substituição ao domicílio do prestador, o que representa significativa inflexão na dinâmica tributária vigente.
A implementação de nota fiscal eletrônica e a gestão centralizada do IBS/CBS pelo Comitê Gestor nacional deverão facilitar a operacionalização desse novo modelo. Por outro lado, os municípios que hoje se utilizam de renúncias fiscais como estratégia de desenvolvimento econômico deverão repensar seus instrumentos de incentivo, haja vista que não haverá mais margem para competição tributária via ISS.
Importante destacar que a EC 132/23 instituiu fundo de compensação apenas para os benefícios fiscais relacionados ao ICMS, sem previsão de compensação análoga para os incentivos vinculados ao ISS. Assim, ao final do período de transição, previsto para 2032, todas as empresas estarão sujeitas à alíquota integral do IBS, sem qualquer mecanismo de abatimento, crédito ou ressarcimento pelos incentivos anteriormente concedidos.
Além disso, a elevação da carga tributária no setor de serviços, a partir de 2029, poderá produzir impacto econômico expressivo, ainda que o regime não cumulativo do IBS permita a apropriação de créditos.
5. Reflexões finais: Permanecer no Porto Digital ainda compensa?
A questão que se impõe é: diante desse novo cenário, subsiste vantagem econômica na permanência no Porto Digital?
Em recente conversa com profissional atuante no referido polo tecnológico, esse foi categórico: a competitividade do Porto Digital reside, em grande parte, na alíquota reduzida de ISS (2%), sobretudo em face da média de 5% aplicada por outros municípios. Sem tal incentivo, os altos custos de manutenção de imóveis históricos, a escassez de estacionamentos e a convivência com eventos urbanos tornam o centro do Recife menos atrativo.
Embora os benefícios fiscais do ISS estejam com os dias contados, é possível que áreas de requalificação urbana mantenham incentivos aplicáveis ao IBS/CBS em operações de compra, venda, reforma, construção e locação de imóveis. Entretanto, se a única motivação para permanência for a carga tributária reduzida, não há justificativa econômica sustentável para manter sede no Recife antigo.
O desafio que se apresenta ao município do Recife é, pois, o de formular e implementar uma nova política pública de atração de investimentos, não mais calcada em renúncias fiscais, mas em estratégias estruturais de fomento à inovação, competitividade e desenvolvimento urbano sustentável.


