Racismo e justiça: A dor negra diante da relativização judicial
O artigo denuncia como o Judiciário falha ao tratar o racismo como exceção. Caso de injúria racial mostra que exigir "intenção" protege agressores e invisibiliza vítimas.
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Atualizado às 14:04
No último dia 10 de abril, a 5ª câmara de Direito Criminal do TJ/SP decidiu, por maioria de votos, absolver um servidor público acusado de injúria racial. O caso, registrado sob o 1517754-15.2023.8.26.0602, diz respeito a uma situação ocorrida durante um atendimento virtual na Justiça do Trabalho, em Sorocaba, quando o servidor, ao ouvir um elogio ao cabelo crespo de uma advogada negra, comentou: "Bonito? Parece mais uma vassoura de piaçava."
O comentário foi captado e ouvido pela vítima porque o microfone do servidor estava aberto. Ainda assim, o Tribunal entendeu que não houve dolo, tampouco intenção de ofender, e concluiu pela atipicidade da conduta, absolvendo o réu.
Quando a estrutura fala mais alto que a lei
A fala que motivou a denúncia não pode ser analisada apenas como um comentário isolado. O ataque ao cabelo crespo tem raízes históricas profundas - é uma forma simbólica de desqualificar e desumanizar pessoas negras, perpetuando estigmas raciais seculares. E mais uma vez, vemos o Judiciário falhar em reconhecer o racismo como estrutura, optando por tratá-lo como exceção.
A exigência de prova da "intenção" do agressor transfere à vítima o ônus de demonstrar não apenas a dor vivida, mas o conteúdo mental de quem a ofendeu. Ao adotar essa ótica, as cortes brasileiras correm o risco de converter a letra da lei em instrumento de impunidade.
O racismo não precisa gritar para ser reconhecido
Não é necessário que o racismo venha revestido de ódio explícito para ser punido. Basta que ele esteja presente nas palavras, nos gestos e, principalmente, nos impactos causados. Uma ofensa racista disfarçada de brincadeira continua sendo uma ofensa. A Justiça precisa estar preparada para interpretar os fatos à luz do contexto histórico, social e estrutural.
Em um país que carrega o legado brutal da escravidão, normalizar falas como a do processo em questão é mais do que um erro técnico: é um gesto institucional de descaso com a dor da população negra.
Responsabilidade institucional e compromisso com a equidade
A luta contra o racismo passa também pelo enfrentamento da sua banalização. O sistema de Justiça precisa assumir sua responsabilidade no combate a essas violências - simbólicas, mas não menos reais.
Não se trata apenas de punir. Trata-se de reconhecer. De dar nome. De afirmar que sim, comparar um cabelo crespo a uma vassoura de piaçava é racismo - e que o sistema de Justiça não pode se calar diante disso.
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1 Artigo baseado na decisão proferida no processo nº 1517754-15.2023.8.26.0602 - TJSP.
2 Artigo baseado na decisão proferida no processo nº 1517754-15.2023.8.26.0602 - TJSP.


