MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Crimes constitucionais imprescritíveis não podem ser anistiados

Crimes constitucionais imprescritíveis não podem ser anistiados

Todo fato típico penal-constitucional imprescritível é também insuscetível de anistia ou graça, embora o inverso não seja verdadeiro.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Atualizado às 14:14

Todo fato típico penal-constitucional imprescritível é também insuscetível de anistia ou graça, embora o inverso não seja verdadeiro.

RELAÇÃO DE CONTINÊNCIA

Imagine-se que o legislador constituinte houvesse resolvido tornar pétreos alguns temas relacionados a bens da União através dos seguintes incisos no artigo 5° da Constituição:

"(...)

XLII - O mar territorial é bem público e inalienável pertencente à União;

XLIII - As rodovias pertencentes à União são bens públicos e insuscetíveis de doação ou cessão gratuita;

XLIV - Os potenciais de energia hidráulica são bens públicos e inalienáveis pertencentes à União (...)"

Ninguém teria dúvida de que o mar territorial e os potenciais hidráulicos seriam inuscetíveis de doação ou cessão gratuita, já que são formas de transmissão de propriedade contidas na vedação mais ampla da inalienabilidade. 

O exemplo evidencia que o bem inalienável é insuscetível de doação ou cessão, embora o inverso não seja verdadeiro.

Pois é esse mesmo fenômeno - relação de continência -ocorre em meio aos três incisos "reais" da vigente Constituição da República de 1988 no que concerne a clausulas vedatórias de extinção de punibilidade.

VEDAÇÕES CONSTITUCIONAIS PÉTREAS À IMPUNIDADE

Em meio às discussões jurídicas que atualmente ocupam as pautas da imprensa nacional, pouco se ouve falar de uma importante relação de continência encontrada em nossa Constituição: a imprescritibilidade etiquetada constitucionalmente a um crime (um "tipo penal-constitucional") encerra conteúdo material amplo e continente quanto à impossibilidade de extinção da punibilidade do agente que o pratica. Ela pressupõe e engloba a insusceptibilidade à anistia, à graça, ao indulto ou outra forma de qualquer de óbice à persecução e à punibilidade criminal.

À luz da Constituição vigente, o atributo da imprescritibilidade, além de impedir favores legais a fatos passados concretos, impede até mesmo a abolitio criminis quanto a eventos futuros.

É dizer que, medida em que a Assembleia Nacional Constituinte de 87/88 deliberou petrificar cláusula que arrola algumas espécies delitivas como dotada de "punibilidade eterna" (imprescritíveis), não remanesce espaço algum ao legislador - nem mesmo ao constituinte derivado (e sequer a partir de deliberação plebiscitária) - para drible ou mitigação dessa punibilidade. 

Eventual revisão desse carimbo atributivo somente poderia ser feita por nova ordem constitucional, através de nova constituinte.

CONFUSÃO INDEVIDA DOS ATRIBUTOS

Não é sequer necessária uma complexa interpretação do "espírito constitucional" para enxergar o óbice em se perdoar (via anistia, graça ou indulto) atos criminais havidos por constitucionalmente imprescritíveis.

A questão é semanticamente básica e tecnicamente simples: a vedação à anistia, à graça (ou ao indulto) está indissociavelmente contida na noção de imprescritibilidade criminal. 

Os três incisos "reais" do artigo 5º que se relacionam ao tema estão assim colocados:

"(...)

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;    

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (...)".

Alguns intérpretes mais açodados parecem cogitar que a "imprescritibilidade" e a "insusceptibilidade de graça ou anistia" seriam atributos totalmente independentes entre si, e, juntamente com a "inafiançabilidade", teriam o mesmo "status" e semelhante alcance jurídico, já que previstos na mesma topografia constitucional e emparelhados em sequências de adjetivações.

Mas essa premissa é falsa.

De início, ao contrário dos outros dois, a inafiançabilidade não tem repercussão em direito material, ou seja, não reflete na punibilidade do agente. Tem apenas ambiência "processual", meramente instrumental, cujo alcance, inclusive, é limitado: não estando presentes os pressupostos e fundamentos da prisão processual, o agente responderá ao processo em liberdade, seja ou não afiançável o delito.

A seu turno, a imprescritibilidade e inanistiabilidade (e insusceptibilidade de graça ou indulto) são atributos que se refletem na punibilidade material do agente. E que guardam entre si relação de continência e de contido. Assim como a ideia de vedação à doação de um bem está contida na noção mais ampla de sua inalienabilidade, a inastiabilidade está contida no óbice mais amplo trazido pela imprescritibilidade.

Vale um parêntese: aqui se está a cuidar da imprescritibilidade constitucional e não do tratamento infraconstitucional dado ao instituto da prescrição.

A forma negativa do atributo constitucional imprescritibilidade - sua entronização na ideia ampla do "eterno" - é continente de várias vedações "menores" ou "parciais"; já a forma positiva do instituto legal - prescritibilidade -, traz o traço de perecibilidade que a coloca ao lado das outras formas extintivas de punibilidade (decadência, perdão, lei nova descriminalizante etc).

Isso tudo para dizer que, do ponto de vista constitucional, a inanistiabilidade é um "minus" em relação à imprescritibilidade e nela está contida.

Em resumo: do ponto de vista da Constituição vigente, todo crime imprescritível é também inanistiável (p. ex., racismo, atentado à ordem democrática), mas nem todo crime inanistiável é imprescritível (ex., tráfico de drogas, latrocínio).

O Min. Dias Toffoli, no julgamento que deu pela invalidação do decreto presidencial que indultava o ex-deputado Daniel Silveira (ADPF 967/DF), percebeu a essência dessa relação de continência:

"(...) se nem mesmo o decurso do tempo [imprescritibilidade] não é capaz de apagar, de tornar inútil ou desnecessária, a punição por esses crimes, dada a extrema relevância da preservação da ordem constitucional e do próprio estado democrático de direito, visto que esses são pressupostos inarredáveis, condições de existência, ou, ainda, as razões de ser do próprio Estado enquanto tal, bem como, em última análise, também do poder soberano de indulgência, de clemência, de perdão conferido ao chefe do Poder Executivo, tenho muita dificuldade de enxergar, nesse contexto, a possibilidade de aplicação do perdão constitucional aos crimes contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito. Dito de outro modo, não vislumbro coerência interna em ordenamento jurídico-constitucional que, a par de impedir a prescrição de crimes contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito, possibilita o perdão constitucional, a clementia principis, aos que forem condenados por tais crimes. Pergunto: que interesse público haveria em perdoar aquele que foi devidamente condenado por atentar contra a própria existência do estado democrático, de suas instituições e institutos mais caros?"

Mas a conclusão da relação continência/conteúdo entre esses institutos constitucionais vadatórios, volto a dizer, não se vincula apenas à necessidade de "coerência interna do ordenamento", embora isso seja por demais relevante. Ela advém, antes, de direta compreensão técnico-gramatical, lastreada no significado semântico consagrado em relação aos termos e expressões envolvidos.

E não é só.

A redação dos incisos XLII, XLIII e XLIV, do artigo 5º, CR/88, é fruto de opção consciente e voluntária do constituinte quanto à ideia central aqui colocada: a imprescritibilidade criminal (embora vá além) açambarca a impossibilidade de perdões legais ou judiciais.

Para tanto, vale investigar a fase de discussão travada na Assembleia Nacional Constituinte, o contexto que levou em especial à positivação desses três incisos.

Em 2013, a Câmara dos Deputados editou a obra eletrônica "A construção do artigo 5º da Constituição de 1988" (Edições Câmara, 2013, Série obras comemorativas n. 9). Com quase duas mil páginas, ali é possível ter uma ideia de como o texto veio se aperfeiçoando até sua forma final, na esteira de milhares de sugestões de redações, propostas de emendas etc.

Tem-se ali bem evidenciado que mesmo os constituintes integrantes das comissões proponentes não detinham inicialmente refino ou preocupação mais apurada quanto ao entendimento técnico relacionado a cláusulas vedatórias a favores penais. Várias propostas enfileiravam e baralhavam as vedações de naturezas ou graus distintos; outras se referiam equivocadamente a institutos diferentes como se fossem sinônimos...

E assim, como de costume, o Texto Constitucional ao longo das discussões foi se aperfeiçoando, adotando critérios, criando parâmetros, sofisticando técnicas de nomenclatura.

Daquele enorme compilado eletrônico é possível obter boa noção, mesmo num sobrevoo geral, de como se deu a evolução textual.

E há pontos que são muito ilustrativos e eloquentes.  

Por exemplo, em sua página 1034, há o registro da emenda supressiva 10644 da dep. Sadie Hauache (PFL/AM), em que a autora sustenta ser ilógico situar a tortura como crime imprescritível (consoante constava da proposta inicial), ante a consideração de que eventual homicídio a ela conectado não o seria. Embora não encampada a ideia de supressão completa, a proposta recebeu a seguinte conclusão no parecer de relatoria: "Parece-nos, contudo que podemos registrar no texto constitucional que a lei punirá a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia" (op. e p. cits).

Isso evidencia que a relatoria responsável pelo tema veio de refinar a nomenclatura constitucional, cônscia de que as outras clausulas vedatórias de extinção de punibilidade eram mais restritas e "leves" do que a vigorosa imprescritibilidade, que, afinal, a todas englobava (e com sobras).

O SENTIDO DAS PALAVRAS E A HIERARQUIA DAS NORMAS

Havendo sujeito punível (agente vivo e imputável), é vedada a extinção da punibilidade a qualquer tempo e modo dos crimes dos incisos XLII (racismo) e XLIV (ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático), os quais, tais como postos no artigo 5º da Constituição, encerram normas estabelecidas como cláusulas pétreas (artigo 60, §4º, IV). A "qualquer tempo" em razão da ideia inerente à imprescritibilidade; a "qualquer modo", por força primazia constitucional sobre o restante do ordenamento ao conectar determinada conduta à punibilidade eterna.

A imprescritibilidade constitucional, que significa a possibilidade de persecução estatal se dar ao longo da "eternidade" do vigente ordenamento, pressupõe, portanto, a vedação a qualquer espécie de perdão ou mesmo de impunibilidade da conduta pela via legal (seja anistiando uma determinada ação criminosa, seja descriminalizando o tipo penal em abstrato).

Pensar o contrário significaria submeter a Constituição à Lei, e não o contrário, subvertendo-se a essência hierárquica do ordenamento jurídico-constitucional. 

As palavras têm significado. E seu significado tem força.

Simples assim.

Paulo Calmon Nogueira da Gama

VIP Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, membro da AJD

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca