MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Stablecoins e prevenção à lavagem

Stablecoins e prevenção à lavagem

Stablecoins: a solução para volatilidade das criptos? Descubra como funcionam, tipos, riscos e seu papel no ecossistema financeiro digital.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Atualizado às 17:28

As criptomoedas introduziram uma nova era de ativos digitais, prometendo descentralização, transparência e transações sem fronteiras. No entanto, a notória volatilidade de muitas delas, como o Bitcoin, representa um obstáculo significativo para sua adoção em massa como meio de troca confiável ou reserva de valor estável. As flutuações abruptas de preço criam um alto risco para comerciantes aceitarem criptomoedas como pagamento e para indivíduos usá-las em transações quotidianas ou para preservar seu patrimônio. Foi nesse contexto de instabilidade que surgiu uma inovadora categoria de ativos digitais: as stablecoins. Elas foram concebidas especificamente para mitigar o problema da volatilidade, buscando oferecer o melhor dos dois mundos: a eficiência e a programabilidade dos ativos digitais, combinadas com a estabilidade de preço das moedas tradicionais ou de outros ativos de referência.

Uma stablecoin, em essência, é um tipo de criptomoeda cujo valor é projetado para permanecer atrelado a um ativo externo, geralmente uma moeda fiduciária emitida por um governo, como o dólar americano (USD), o euro (EUR) ou o real brasileiro (BRL). O objetivo principal é manter uma paridade fixa, como 1:1 com o dólar, por exemplo, garantindo que cada unidade da stablecoin tenha um valor consistentemente próximo ao do ativo de referência. Essa estabilidade é alcançada através de diferentes mecanismos de lastro ou algoritmos, que servem como garantia para o valor da moeda digital. A ideia fundamental é proporcionar previsibilidade e confiança, características essenciais para que um ativo funcione efetivamente como dinheiro no sentido tradicional.

Existem diversas abordagens para garantir a estabilidade de uma stablecoin, resultando em diferentes categorias. A mais comum e intuitiva é a das stablecoins lastreadas em moeda fiduciária. Nesse modelo, o emissor da stablecoin mantém reservas equivalentes de moeda fiduciária (ou equivalentes de caixa de alta liquidez) em contas bancárias auditadas. Para cada unidade da stablecoin emitida e em circulação, deve haver uma unidade correspondente da moeda fiduciária mantida em reserva. Exemplos proeminentes incluem o Tether (USDT) e o USD Coin (USDC). A transparência e a realização de auditorias regulares por terceiros independentes são cruciais para manter a confiança nesse modelo, assegurando aos usuários que o lastro realmente existe e é suficiente.

Outra categoria são as stablecoins lastreadas em commodities. Em vez de moedas fiduciárias, essas stablecoins são garantidas por ativos físicos, sendo o ouro o exemplo mais comum. Cada token representa uma quantidade específica da commodity, como um grama de ouro, mantida em custódia segura. O valor da stablecoin flutua de acordo com o preço de mercado da commodity subjacente. Embora ofereçam exposição a ativos reais de forma digital, sua estabilidade está vinculada à estabilidade da própria commodity, que pode ter suas próprias flutuações, ainda que geralmente menores que as das criptomoedas voláteis. O PAX Gold (PAXG) é um exemplo conhecido dessa categoria.

Um terceiro tipo de stablecoin é aquele lastreado em outras criptomoedas. Nesse modelo, a paridade é mantida através de um portfólio de criptomoedas usadas como garantia. Devido à sua volatilidade natural, esses sistemas geralmente exigem uma sobrecolateralização significativa. Isso significa que o valor das criptomoedas mantidas em garantia deve ser substancialmente maior do que o valor das stablecoins emitidas, criando uma margem de segurança para atenuar as flutuações de preço do colateral. Apesar de sua inovação, essas stablecoins apresentam riscos inerentes, como a volatilidade dos ativos de garantia e a complexidade dos mecanismos responsáveis pela gestão de risco.

Finalmente, existem as stablecoins algorítmicas, que buscam manter a paridade sem depender diretamente de reservas de ativos tradicionais ou criptoativos. Em vez disso, utilizam algoritmos complexos e contratos inteligentes para gerenciar a oferta da stablecoin em resposta às condições de mercado. Quando o preço da stablecoin cai abaixo da paridade desejada, o algoritmo pode reduzir a oferta (por exemplo, incentivando a queima de tokens); quando sobe acima, pode aumentar a oferta. Esses sistemas são altamente experimentais e demonstraram ser vulneráveis a "espirais da morte" ou perda de confiança.

A aplicação prática das stablecoins é vasta e crescente, impulsionada por sua capacidade de combinar estabilidade com eficiência digital. Uma de suas funções primordiais é servir como meio de troca. Elas facilitam pagamentos e remessas, especialmente transações transfronteiriças, que podem ser concluídas em minutos a custos muito inferiores aos dos sistemas bancários tradicionais. Empresas e indivíduos podem enviar e receber valor globalmente sem se preocupar com as flutuações de preço durante o tempo de liquidação da transação.

Além disso, as stablecoins funcionam como uma importante reserva de valor dentro do ecossistema de criptoativos. Traders e investidores frequentemente convertem suas criptomoedas voláteis em stablecoins durante períodos de incerteza ou quedas de mercado. Isso permite que se proteja seu capital sem precisar converter seus fundos de volta para moeda fiduciária, um processo que pode ser mais lento, caro e, em alguns casos, gerar eventos tributáveis. As stablecoins, assim, oferecem uma espécie de "porto seguro" digital dentro do próprio mercado cripto.

Elas também desempenham um papel crucial como unidade de conta em plataformas digitais, especialmente no universo das Finanças Descentralizadas (DeFi). Muitos protocolos DeFi utilizam stablecoins como a unidade padrão para precificar ativos, calcular taxas de juros em empréstimos e rendimentos em pools de liquidez. A estabilidade facilita a compreensão e a comparação de valores e rendimentos, tornando o ecossistema DeFi mais acessível e funcional para os usuários.

A integração com o DeFi é, talvez, uma das aplicações mais significativas das stablecoins. Elas são a espinha dorsal de muitos protocolos de empréstimo, poupança e yield farming. Os usuários podem depositar stablecoins para ganhar juros, tomar empréstimos colateralizando outros ativos ou fornecer liquidez para pares de negociação em exchanges descentralizadas (DEXs), recebendo taxas em troca. A presença de stablecoins confiáveis é fundamental para a liquidez e o funcionamento eficiente desses mercados financeiros emergentes.

Finalmente, as stablecoins oferecem uma ponte vital entre o sistema financeiro tradicional e o mundo dos ativos digitais. Elas permitem que usuários convertam facilmente moeda fiduciária em um ativo digital estável e vice-versa, facilitando a entrada e saída do mercado cripto. Para pessoas em países com moedas locais instáveis ou altas taxas de inflação, as stablecoins lastreadas em moedas fortes, como o dólar americano, podem oferecer uma alternativa mais acessível e digital para preservar o poder de compra.

Contudo, apesar de seus benefícios inegáveis e de seu papel crescente na economia digital, as stablecoins não estão isentas de riscos, especialmente no que diz respeito ao seu potencial uso em atividades financeiras ilícitas, como a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo. Assim como qualquer instrumento financeiro, desde o dinheiro em espécie até transferências bancárias, as stablecoins podem ser exploradas por atores mal-intencionados que buscam ocultar a origem ou o destino de fundos ilícitos.

A atratividade das stablecoins para a lavagem de dinheiro deriva de várias de suas características intrínsecas e do ecossistema em que operam. A velocidade e o alcance global das transações são fatores chave. Fundos ilícitos podem ser movidos através de fronteiras em questão de minutos, contornando os controles e os tempos de processamento associados aos sistemas financeiros tradicionais. Essa rapidez dificulta a interceptação ou o rastreamento em tempo real por parte das autoridades.

Outro fator relevante é o nível de anonimato ou, mais precisamente, pseudonimato oferecido pelas transações em blockchain. Embora muitas blockchains sejam transparentes, registrando todas as transações publicamente, vincular os endereços de carteira digital a identidades do mundo real pode ser um desafio significativo. Criminosos podem utilizar carteiras não hospedadas (self-custody wallets) ou serviços de mistura (mixers/tumblers), que ofuscam o rastro das transações, dificultando a identificação das partes envolvidas.

A integração com o crescente e complexo ecossistema DeFi também apresenta desafios. A natureza inovadora e, por vezes, pouco regulamentada de muitos protocolos DeFi pode criar camadas adicionais de complexidade. Fundos podem ser rapidamente movidos através de múltiplos contratos inteligentes, pools de liquidez e plataformas de empréstimo, tornando a trilha financeira extremamente difícil de seguir. A falta de intermediários centralizados em muitas interações DeFi complica a aplicação de controles de prevenção à lavagem tradicionais.

As lacunas e a falta de harmonização regulatória entre diferentes jurisdições criam oportunidades para arbitragem regulatória. Atores ilícitos podem explorar plataformas ou emissores de stablecoins que operam em países com regimes de supervisão AML/CFT mais fracos ou inexistentes. A ausência de padrões globais consistentes para a regulamentação de Virtual Asset Service Providers (VASPs), incluindo exchanges e emissores de stablecoins, facilita essa exploração.

A facilidade com que as stablecoins podem ser convertidas para outras criptomoedas, incluindo aquelas com foco em privacidade (privacy coins), ou potencialmente sacadas em moeda fiduciária através de canais menos regulados (como peer-to-peer ou algumas ATMs de cripto), também contribui para o risco. Essa conversibilidade permite que os criminosos consigam driblar a trilha de auditoria e reintegrar os fundos lavados na economia legítima.

O processo de lavagem de dinheiro tipicamente envolve três fases: colocação, ocultação (layering) e integração. As stablecoins podem ser utilizadas em todas elas. Na colocação, fundos ilícitos podem ser usados para comprar stablecoins. Na ocultação, essas stablecoins podem ser movidas rapidamente através de múltiplas carteiras, exchanges (centralizadas e descentralizadas) e protocolos DeFi, muitas vezes convertidas entre diferentes tipos de stablecoins ou outros criptoativos para confundir o rastro. Na integração, os fundos "limpos" podem ser eventualmente convertidos de volta para moeda fiduciária ou usados para adquirir bens e serviços.

A escala do mercado de stablecoins, que movimenta bilhões de dólares em transações diárias, amplifica o potencial impacto dessas atividades ilícitas. Mesmo que a percentagem de transações relacionadas à lavagem de dinheiro seja pequena em relação ao volume total, o valor absoluto pode ser substancial, representando um risco sistêmico e minando a integridade do sistema financeiro global.

É crucial reconhecer que o risco de lavagem de dinheiro não é exclusivo das stablecoins, mas sim uma característica que pode ser exacerbada pela tecnologia subjacente e pelo ambiente regulatório em evolução. A própria natureza digital, rápida e global das criptomoedas exige abordagens de mitigação igualmente ágeis e tecnologicamente avançadas.

Felizmente, existem diversas medidas que podem ser implementadas para mitigar os riscos de lavagem de dinheiro associados às stablecoins, envolvendo uma combinação de regulamentação, tecnologia e colaboração entre os setores público e privado. A construção de um ecossistema de stablecoins mais seguro e confiável é essencial para sua adoção sustentável e para proteger a integridade do sistema financeiro.

Uma das pedras angulares para a mitigação de riscos é o desenvolvimento e a implementação de quadros regulatórios claros, abrangentes e globalmente harmonizados. Os reguladores em todo o mundo precisam estabelecer regras consistentes para os emissores de stablecoins, exchanges de criptoativos (VASPs) e provedores de carteiras digitais. Essas regras devem incluir requisitos robustos de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo (PLD/FTD), alinhados com os padrões internacionais estabelecidos por órgãos como o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI).

A aplicação rigorosa de procedimentos de Conheça seu Cliente (Know Your Customer - KYC) e Due Diligence do Cliente (Customer Due Diligence - CDD) é fundamental. Emissores de stablecoins e VASPs devem ser obrigados a verificar a identidade de seus clientes e monitorar suas transações em busca de atividades suspeitas. A implementação da "Travel Rule" do GAFI, que exige que as informações do originador e do beneficiário acompanhem as transferências de ativos virtuais acima de um certo limite, é um passo importante para aumentar a transparência das transações.

A transparência por parte dos emissores de stablecoins, especialmente aqueles lastreados em moeda fiduciária, é outro elemento crucial. Eles devem ser obrigados a manter reservas adequadas e verificáveis, sujeitas a auditorias regulares e independentes. Publicar atestados de reserva frequentes e detalhados pode ajudar a construir confiança no mercado e fornecer aos reguladores uma visão clara da solvência e das operações do emissor.

A tecnologia também desempenha um papel vital na mitigação de riscos. Ferramentas avançadas de análise de blockchain (blockchain analytics) permitem que autoridades policiais, unidades de inteligência financeira (UIFs) e equipes de conformidade rastreiem o fluxo de fundos na blockchain, identifiquem padrões de transação suspeitos e associem endereços de carteira a atividades ilícitas conhecidas ou a entidades sancionadas. Essas ferramentas estão se tornando cada vez mais sofisticadas e são essenciais para a investigação de crimes financeiros no espaço cripto.

A colaboração internacional e a parceria público-privada são indispensáveis. Dado o caráter transfronteiriço das stablecoins, a cooperação entre reguladores, autoridades policiais e UIFs de diferentes países é fundamental para investigar e processar atividades ilícitas de forma eficaz. Além disso, a colaboração entre o setor público e o setor privado (emissores, exchanges, empresas de análise de blockchain) é necessária para compartilhar informações sobre ameaças, desenvolver melhores práticas e implementar soluções de conformidade eficazes.

A exploração de soluções tecnológicas inovadoras para a conformidade também é promissora. Isso pode incluir o desenvolvimento de padrões de identidade digital descentralizada ou o uso de provas de conhecimento zero (zero-knowledge proofs) e outras tecnologias de aprimoramento da privacidade (Privacy-Enhancing Technologies - PETs) que poderiam, teoricamente, permitir a verificação da conformidade regulatória sem comprometer excessivamente a privacidade do usuário. No entanto, a implementação prática dessas tecnologias em larga escala ainda enfrenta desafios.

A adoção de uma abordagem baseada em risco (Risk-Based Approach - RBA) para a supervisão de prevenção à lavagem é igualmente importante. Isso significa que os recursos de conformidade e supervisão devem ser focados nas áreas de maior risco, como transações de alto valor, transações envolvendo jurisdições de alto risco ou interações com entidades não regulamentadas. Uma abordagem única para todos pode ser ineficiente e excessivamente onerosa.

Finalmente, é essencial reconhecer que o cenário das stablecoins e das finanças digitais está em constante evolução. Atores ilícitos continuamente adaptam suas táticas para explorar novas vulnerabilidades. Portanto, a vigilância contínua, a pesquisa sobre novas ameaças e a adaptação flexível das estratégias regulatórias e de mitigação são necessárias para se manter à frente dos riscos emergentes.

Em suma, as stablecoins representam uma inovação significativa no panorama financeiro digital, oferecendo uma solução para a volatilidade das criptomoedas e habilitando uma ampla gama de aplicações práticas, desde pagamentos eficientes até o funcionamento do ecossistema DeFi. No entanto, sua natureza digital e global também apresenta riscos substanciais de uso indevido para lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas. Enfrentar esses riscos exige um esforço concertado e multifacetado, envolvendo regulamentação clara e harmonizada, aplicação rigorosa de controles de prevenção à lavagem, transparência dos emissores, uso de tecnologia de análise avançada e forte colaboração internacional e público-privada. Ao equilibrar inovação com gestão de riscos, é possível aproveitar os benefícios das stablecoins enquanto se protege a integridade do sistema financeiro global.

João Paulo Orsini Martinelli

VIP João Paulo Orsini Martinelli

Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca