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Plano inicial não precisa prever quitação integral do principal

Decisão do TJ/RJ exige quitação integral no plano inicial, contrariando a Lei do Superendividamento. Artigo analisa o equívoco e defende a correta aplicação da norma protetiva.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Atualizado às 10:57

Como membro do Grupo de Trabalho do CNJ responsável pelo acompanhamento da aplicação da lei do superendividamento e professor em cursos de capacitação voltados a membros do Ministério Público, Defensorias Públicas, Procons, OAB e magistratura, tenho acompanhado semanalmente decisões judiciais em todo o país sobre o tema.

Embora o TJ/RJ tenha proferido decisões importantes e alinhadas com os princípios da lei 14.181/21, algumas interpretações equivocadas ainda têm surgido e merecem ser destacadas, não com o intuito de crítica institucional, mas de alerta construtivo.

O objetivo é contribuir para o aperfeiçoamento da jurisprudência e evitar que entendimentos isolados, desconectados da finalidade protetiva da norma, se disseminem e comprometam sua efetividade.

Nesse contexto, chama atenção o acórdão proferido pela 17ª câmara de Direito Privado do TJ/RJ, sob relatoria do desembargador Arthur Narciso de Oliveira Neto, no julgamento da apelação cível 0846051-04.2023.8.19.0203, que, ao manter a extinção do processo sem resolução do mérito, evidencia uma compreensão restritiva dos mecanismos legais destinados à repactuação de dívidas do consumidor superendividado.

O acórdão destacou, como fundamento para rejeição da proposta: "não havendo, igualmente, demonstração de que o principal será solvido em cinco anos (id 99367243), que representa parcelas de aproximadamente R$ 4.589,25 (divisão de R$ 275.355,34 por 60 meses), o que ultrapassava, em muito, a proposta do id 99367235".

A partir dessa passagem, percebe-se com clareza que o TJ/RJ adotou como critério impeditivo da homologação do plano a ausência de quitação integral do valor principal da dívida dentro do prazo de cinco anos. Ocorre que essa exigência não está prevista no art. 104-A.

A única hipótese em que se admite a quitação integral do principal está prevista no art. 104-B do CDC, aplicável ao plano compulsório, que ocorre quando não há acordo entre as partes na audiência conciliatória prevista no art. 104-A, permitindo ao juiz impor condições de pagamento razoáveis e proporcionais aos credores, inclusive com previsão de quitação integral dentro dos limites do plano judicial.

E não se trata de um detalhe menor.

A diferença entre os artigos 104-A e 104-B é estrutural dentro da lógica da lei 14.181/21. A proposta voluntária, feita pelo consumidor na fase conciliatória (104-A), deve ser viável, proporcional à sua renda e respeitar as garantias eventualmente constituídas.

Não se exige que o valor total do principal seja quitado no período, justamente porque a situação de superendividamento pressupõe a insuficiência financeira do consumidor para arcar com suas obrigações nas condições originais.

A exigência de quitação total foi deliberadamente incluída somente no art. 104-B, e o motivo dessa inclusão é conhecido: decorre de uma pressão institucional da FEBRABAN, temerosa de que os juízes pudessem impor planos muito desfavoráveis aos credores. Essa salvaguarda, portanto, é dirigida exclusivamente ao cenário de imposição judicial do plano, e não à proposta inicial, que ainda poderia ser negociada entre as partes.

O acórdão ignora o disposto no art. 104-A, §2º, que prevê consequências específicas para o não comparecimento injustificado do credor ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir à audiência de conciliação: suspensão da exigibilidade do débito, interrupção dos encargos da mora e sujeição compulsória ao plano apresentado pelo consumidor, desde que o valor da dívida seja certo e conhecido.

A lei ainda determina que esse pagamento ocorra somente após a quitação dos créditos dos credores que compareceram, reafirmando o papel central da audiência conciliatória e a necessidade de boa-fé e colaboração dos credores no processo de repactuação.

Ao fazer isso, o Tribunal ignora que o legislador impôs uma penalidade processual ao credor ausente, exatamente para evitar o boicote à repactuação e incentivar o acordo. Quando o plano apresentado é razoável, ainda que não contemple o valor integral da dívida, ele deve ser acolhido, ou ao menos analisado à luz da boa-fé e da realidade financeira do consumidor.

A consequência dessa interpretação incorreta é evidente: o instituto criado para dar fôlego ao consumidor e preservar sua subsistência é transformado em uma barreira intransponível. A exigência do pagamento do principal na fase inicial subverte a lógica legal e torna inviável a aplicação da própria norma.

Além disso, as normas de proteção ao consumidor são de ordem pública e interesse social, devendo ser interpretadas conforme seus fins sociais e valores fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a função social do contrato. A leitura restritiva feita pelo TJ/RJ reduz o alcance de um microssistema concebido para reequilibrar relações marcadas pela desigualdade econômica.

Entendimentos como o adotado nesta decisão demonstram a necessidade de um maior conhecimento e aprofundamento na aplicação da lei 14.181/21, que instituiu um novo paradigma no tratamento do superendividamento.

Interpretá-la com os olhos do antigo modelo contratualista é desvirtuar seus objetivos e comprometer sua efetividade. É papel do Judiciário - e, com mais razão, dos Tribunais - compreender os pressupostos sociais e econômicos da norma, e contribuir para sua correta implementação.

Isso exige formação continuada de juízes e desembargadores, debates internos, elaboração de enunciados interpretativos e diálogo permanente com a academia, especialmente diante das inovações trazidas pela lei 14.181/21, que impõe uma mudança de paradigma no tratamento do crédito e do consumo.

Sem essa capacitação específica, decisões como a presente correm o risco de comprometer a efetividade da lei e de frustrar sua finalidade maior: assegurar a dignidade do consumidor superendividado e reequilibrar relações marcadas pela assimetria de poder.

O intuito deste artigo, portanto, é alertar para que decisões equivocadas como essa não sejam replicadas por outros magistrados sem a devida compreensão do espírito da lei, e também reforçar a importância de que tais temas sejam levados ao STJ, a fim de que se pacifiquem entendimentos em consonância com os princípios e finalidades da lei do superendividamento.

Leonardo Garcia

VIP Leonardo Garcia

Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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