Prevenir ou remediar? A fiscalização preventiva de constitucionalidade como alternativa ao cenário judicial brasileiro
Estudo propõe controle prévio de constitucionalidade no Brasil, inspirado no modelo português, para evitar normas inconstitucionais em vigor.
quinta-feira, 24 de abril de 2025
Atualizado em 23 de abril de 2025 14:21
Encontram-se em trâmite no STF diversas ações de controle concentrado de constitucionalidade que possuem como plano de fundo a (in)constitucionalidade de diversos dispositivos legais introduzidos pela lei do "Marco Temporal" (lei 14.701/23). São elas a ADC 87, ADIn 7582, ADIn 7583, ADIn 7586 e ADO 86.
Este é apenas um, dentre os diversos exemplos existentes, em que o STF opera como guardião da CF/88 ao julgar as ações de controle concentrado de constitucionalidade. O que se pretende abordar no texto, todavia, não é a (importante) temática central dos julgamentos em questão, mas, sim, uma alternativa ao controle de constitucionalidade no Brasil.
Tratando-se a CF/88 de norma central do ordenamento jurídico, tem-se a necessidade de adequação das leis infraconstitucionais ao que fora definido na norma constitucional. Para tanto, o Brasil adotou modelo dúplice de controle de constitucionalidade: (i) o modelo preventivo, a ser realizado pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo; e (ii) o modelo repressivo, a ser realizado pelo Poder Judiciário.
Em recorte ainda mais específico do estudo, cabe ao STF, enquanto guardião da CF, realizar o controle concentrado de constitucionalidade, cuja finalidade é aferir a compatibilidade de normas infraconstitucionais com a CF/88, de forma abstrata e com efeitos vinculantes e erga omnes 1.
Contudo, observa-se, diante da elevada quantidade de processos que alcançam a instância máxima do Judiciário brasileiro, uma ineficiência - ou, ao menos, uma defasagem temporal - no exercício dessa atribuição. O volume processual e a morosidade na prestação jurisdicional indicam a fragilidade dos mecanismos constitucionais existentes, revelando uma dificuldade estrutural em assegurar, de forma efetiva e tempestiva, a supremacia e a concretização dos preceitos constitucionais.
Diante desse cenário, impõe-se uma investigação de direito comparado, com a busca por experiências em ordenamentos estrangeiros que adotam mecanismos capazes de mitigar a sobrecarga imposta às suas cortes constitucionais. Nesse contexto, destaca-se, a partir da tradição jurídica francesa, o modelo de controle preventivo de constitucionalidade a ser realizado pelo Poder Judiciário. Trata-se de uma forma de fiscalização normativa abstrata, classificada por parte da doutrina como atípica, realizada pelo Poder Judiciário, que se realiza durante o processo de formação da norma, antes mesmo de sua entrada em vigor e de sua aptidão para produzir efeitos jurídicos. Importa ressaltar que tal modalidade de controle não exclui nem inviabiliza o exercício posterior do controle, realizado após a conclusão do processo legislativo, uma vez que a própria CF admite a convivência entre distintos modelos de fiscalização da constitucionalidade 2.
Destaca-se que esse modelo encontra ampla aplicação nas constituições de diversos países europeus, como a Constituição Irlandesa de 1937 3 e a Constituição Espanhola de 1978 4. Contudo, é na Constituição Portuguesa de 1976 que se sobressai nessa temática, em razão da detalhada regulamentação do controle preventivo de constitucionalidade, nos termos dos arts. 278 e 279. Esse modelo foi igualmente adotado por países de tradição lusófona, a exemplo de Cabo Verde 5, São Tomé e Príncipe 6, Moçambique 7 e Angola 8.
A fiscalização preventiva, nos termos da Constituição Portuguesa de 1976, consiste em um mecanismo de controle exercido pelo Tribunal Constitucional de forma abstrata antes que a norma impugnada tenha concluído integralmente seu processo de formação 9. O objeto desse controle é, portanto, "normas imperfeitas", ou seja, normas que ainda não adquiriram existência jurídica plena nem estão aptas a produzir efeitos no ordenamento 10.
Nesse contexto, é legítimo indagar: não seria altamente desejável, para o sistema jurídico brasileiro, a adoção de um modelo semelhante que permita ao STF enfrentar a constitucionalidade da lei antes de sua vigência, a fim de evitar, ainda que parcialmente, a vigência de normas potencialmente inconstitucionais e de elevado impacto social, cuja inconstitucionalidade apenas viria a ser reconhecida posteriormente em controle repressivo de constitucionalidade?
Em casos como o narrado, ainda que a norma não tenha existência jurídica plena, o órgão jurisdicional competente (no caso do Brasil, o STF) já pode identificar indícios de inconstitucionalidade, erigindo uma barreira que impede a produção de efeitos jurídicos por parte de normas incompatíveis com a Constituição. Por essa razão, a doutrina portuguesa concebe esse modelo como um verdadeiro controle-barreira, destinado à preservação da segurança jurídica. Ressalte-se, ademais, que tal procedimento se caracteriza por sua maior celeridade e objetividade em comparação com o controle repressivo.
Não obstante, a atuação do Tribunal Constitucional restringe-se à análise de conformidade da norma com o texto constitucional, sem adentrar na compatibilidade com demais diplomas legais, limitando-se a declarar sua inconstitucionalidade. Diferentemente do que ocorre em Portugal, a inexistência, no ordenamento brasileiro, da possibilidade de submissão de atos normativos em formação ao controle prévio do STF confere ao processo legislativo um caráter eminentemente político. Nesse contexto, o controle de constitucionalidade acaba por se entrelaçar, de forma inevitável, com a dinâmica própria das atividades do Poder Legislativo e do Poder Executivo, tornando difícil dissociá-lo da esfera política.
Sob este contexto, retoma-se o exemplo das ações de controle concentrado de constitucionalidade que tratam acerca da lei do marco temporal. Diversas ações foram ajuizadas logo após a promulgação da lei para tratar acerca de sua constitucionalidade. Neste cenário, questiona-se: não haveria uma solução mais clara (e segura juridicamente) caso o controle de constitucionalidade da norma fosse realizado durante o processo legislativo, evitando tensões com dispositivos já introduzidos no ordenamento jurídico?
A resposta ao questionamento parece estar na própria solução encontrada, até o momento, na inovadora "conciliação" instituída pelo ministro Gilmar Mendes, que tem por objetivo, nos termos empregados na decisão que a instituiu, a formação de uma Corte Especial para, dentre outras questões, "propor aperfeiçoamentos legislativos para a Lei 14.701/2023, sem prejuízo de outras medidas legislativas que se fizerem necessárias, ambos voltados à superação do impasse e novo diálogo institucional" 11.
Trata-se de forma transversa para retomar a discussão legislativa acerca do tema, o que poderia ter sido evitado caso o controle de constitucionalidade fosse realizado de forma preventiva, assim como previsto em outros ordenamentos jurídicos como o de Portugal. Mais do que evitar a tensão entre os Poderes da República, a adoção de um controle prévio poderia evitar também casos como o da ADIn 5043 12, julgada somente aos 31/3/25, para declarar a inconstitucionalidade de dispositivo de lei incluído no ordenamento jurídico quase 12 anos antes (20/6/13).
De todo o exposto neste pequeno estudo, tem-se que a adoção de um controle de constitucionalidade prévio, inspirado em modelos jurídicos estrangeiros como o português, seria uma hipótese de solução eficiente para permitir a análise de vícios normativos de cunho constitucional ainda no processo legislativo, evitando posteriores tensões entre os poderes, salvaguardando a segurança jurídica e protegendo da morosidade de análise do Judiciário.
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1 Dentre os instrumentos processuais cabíveis, destacam-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), todos previstos nos artigos 102, I, "a", e 103 da Constituição da República.
2 Destaca-se que quando se fala de em controle a priori estar-se-á, necessariamente, analisando sistemas de controle concentrado, de modo a deixar à margem o estudo dos que adotam o controle difuso, pois não há que se falar na aplicação pelo magistrado de normas que ainda não completaram seu processo de formação.
3 O artigo 26 deste documento preceitua ser permitido ao Presidente da República - no caso de ter dúvidas acerca da conformidade constitucional de um projeto de lei - remetê-lo ao Tribunal Constitucional para sanar eventuais inconstitucionalidades. IRLANDA. Constituição da Irlanda (Bunreacht na hÉireann), 1937. Art. 26. Disponível em: https://www.irishstatutebook.ie/eli/cons/en/html. Acesso em: 15 abr. 2025.
4 O artigo 95, nº 2 destaca que tanto o Governo quanto qualquer das Câmaras podem acionar o T.C. quando for necessário analisar a conformidade entre o acordo internacional e a Constituição nacional. ESPANHA. Constituição da Espanha. Art. 95, n. 2. Madri, 1978. Disponível em: https://www.boe.es/biblioteca_juridica/codigos/abrir_pdf.php?fich=160_Constitucion_Espanola_________________La_Constitution_Espagnole.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025.
5 CABO VERDE. Constituição da República de Cabo Verde. Art. 273. Praia, 1992. Disponível em: https://www.governo.cv/documentos/constituicao-da-republica/. Acesso em: 15 abr. 2025.
6 SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE. Constituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe. Art. 145 e 146. São Tomé, 2003. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/saotomeeprincipe/constituicao/constituicao-da-republica-democratica-de-s.tome-e. Acesso em: 15 abr. 2025.
7 MOÇAMBIQUE. Constituição da República de Moçambique. Art. 246. Maputo, 2004. Disponível em: https://www.masa.gov.mz/wp-content/uploads/2018/01/Constituicao_republica_mocambique.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025.
8 ANGOLA. Constituição da República de Angola. Art. 228 e 229. Luanda, 2010. Disponível em: https://www.asg-plp.org/upload/legislacao/doc_99.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025.
9 SOARES, Raísa Crespo. A fiscalização preventiva da constitucionalidade: sua afirmação como instrumento de justiça constitucional. 2018. 123 f. Dissertação (Mestrado Científico em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito Constitucional) - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2018. Orientador: Professor Doutor Fernando Alves Correia.
10 Seria possível dizer que o papel do Poder Judiciário português neste caso é semelhante ao da Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara Legislativa ou mesmo do veto presidencial no Brasil. A diferença, contudo, se dá na própria qualificação da Corte Constitucional para aferir a constitucionalidade de norma que, posteriormente, poderá ser objeto de controle de constitucionalidade no próprio Poder Judiciário.
11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 87 do Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Requerente: Progressistas e outros. Brasília, DF, 2024. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 1780-ED87-C413-926F e senha 2227-FECC-B45F-2B43. Acesso em: 14.04.2025.
12 Prova da gravidade de se aguardar mais de 10 anos para consolidação acerca da constitucionalidade de um dispositivo de lei é o caso da ADI 5043. A Ação versava sobre a inconstitucionalidade do art. 2.º, §1.º, da Lei 12.830/2013, tendo como pano de fundo a "atribuição exclusiva a delegados para conduzir investigações criminais". Trata-se de evidente caso de insegurança jurídica em que diversas investigações criminais poderiam ser anuladas em prazo superior a 10 anos caso se interpretasse ser o dispositivo de lei constitucional.
Gabriel Dias Curioni
Advogado da área de Contencioso Cível do Escritório Medina Guimarães Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá.
Leonardo Quintino
Graduando em Direito pela UEM - Universidade Estadual de Maringá. Colaborador no escritório Medina Guimarães Advogados



