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Legalidade das bets e responsabilidade penal dos "digital influencers"

O artigo analisa a legalidade das bets no Brasil e defende a inexistência de crime na publicidade feita por influenciadores, salvo em casos de dolo e envolvimento com esquemas ilícitos

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Atualizado às 09:49

1. Apostas esportivas VS cassinos tradicionais

Os jogos de azar em geral são definidos na lei de contravenções penais (decreto-lei 3.688/1941) como aqueles em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou predominantemente da sorte, como ocorre nos caça-níqueis e no jogo do bicho. Apostar ou explorar tais jogos sem autorização constitui contravenção penal, sujeita a pena de prisão simples ou multa. Os cassinos convencionais inserem-se nessa categoria de jogos proibidos, uma vez que ofertam jogos de fortuna baseados no acaso.

As bets, por sua vez, correspondem às apostas de quota fixa em eventos esportivos - modalidade em que o apostador, quando realiza a aposta, já conhece previamente o quanto pode ganhar em caso de acerto, pois as odds (cotas) são fixadas de antemão.

Diferentemente da dos caça níqueis ou do jogo do bicho, nas bets, o objeto da aposta é um resultado esportivo (por exemplo, o placar de uma partida), e não um evento puramente aleatório isolado. Essa modalidade recebeu, inclusive, um tratamento legislativo específico, cujo marco inicial se deu com a lei 13.756/18, a qual autorizou a exploração das apostas esportivas de quota fixa no Brasil, inserindo-as no rol das loterias federais de competência da União.

Em outras palavras, a lei reconheceu as bets como uma forma de loteria sui generis, dissociando-as da definição de jogo de azar ilícito e prevendo sua regulamentação pelo Poder Público Federal. Trata-se de importante distinção conceitual: enquanto os jogos de azar convencionais permanecem ilegais, as apostas esportivas tornaram-se uma atividade potencialmente lícita, condicionada ao cumprimento da regulamentação específica.

Durante o período subsequente à promulgação da referida lei, no entanto, instalou-se um vácuo regulatório. Embora houvesse previsão legal autorizadora, faltavam normas infralegais que disciplinassem os requisitos formais para o exercício dessa atividade. Nesse intervalo, diversas empresas estrangeiras passaram a explorar o mercado brasileiro de apostas esportivas, atuando sem sede física no país e sem submissão a qualquer regime jurídico nacional específico. Tal situação persistiu sob certa leniência estatal, enquanto se aguardava a regulamentação definitiva.

Em 2023, visando preencher essa lacuna, foi editada a medida provisória 1.182/23, posteriormente convertida na lei 14.790/23, a chamada "lei das bets", a qual ampliou o alcance do regime das apostas esportivas, exigindo que as empresas operadoras estejam estabelecidas em território nacional (com representação legal no Brasil), definindo a tributação incidente e incluindo também os jogos online no espectro regulatório.

Criou-se, assim, o arcabouço para um mercado regulado de apostas: as plataformas interessadas devem obter licença junto ao Ministério da Fazenda, obedecer às normas de compliance (inclusive comunicação de transações suspeitas ao COAF, para prevenção à lavagem de dinheiro) e cumprir regras de publicidade responsável, dentre outras obrigações.

O que se tem, portanto, é que as bets - quando exploradas nos termos da legislação vigente, por operadoras devidamente autorizadas - não se confundem com os jogos de azar proibidos. Estas plataformas licenciadas enquadram-se no âmbito de legalidade delineado pelas leis 13.756/18 e 14.790/23, ao passo que os cassinos tradicionais, bingos e jogos de azar não autorizados continuam caracterizando infração penal.

2. Aspectos penais da publicidade de plataformas de apostas

Delimitado que as apostas esportivas online podem constituir atividades lícitas sob determinadas condições, passa-se à análise da conduta do influenciador digital que as promove. É imprescindível recordar basilarmente o princípio da legalidade penal: nullum crimen, nulla poena sine lege, para o qual a responsabilização criminal de qualquer indivíduo pressupõe que sua conduta se amolde estritamente a um tipo penal previsto em lei vigente, e que seja praticada com o correspondente elemento subjetivo - dolo ou culpa, conforme o caso.

Considerando que a plataforma promovida pelo influenciador opera sob autorização estatal válida, não há subsunção típica possível. A participação em apostas legalizadas e sua respectiva recomendação não constituem, por si só, fato típico.

Não se pode cogitar, por exemplo, da prática do crime de apologia ao crime (art. 287 do Código Penal), pois esse tipo penal exige a exaltação pública de fato criminoso, excluindo tanto contravenções quanto condutas lícitas. A aposta, quando realizada em plataforma regularizada, deixou de ser vedada pelo ordenamento jurídico, de modo que inexiste a ilicitude antecedente necessária à configuração de qualquer infração penal decorrente de sua promoção.

Tampouco se configura a infração prevista no art. 286 do Código Penal - incitação ao crime -, já que sua aplicação depende, como condição lógica e jurídica, da existência de um crime previamente tipificado cuja prática esteja sendo incitada. Em se tratando de atividade legalmente autorizada, o pressuposto típico resta ausente, inviabilizando qualquer imputação com base nesse dispositivo.

Outro ponto nevrálgico relaciona-se à ausência de dolo na conduta do influenciador que atua de boa-fé. O Direito Penal clássico exige, via de regra, a vontade livre e consciente de realizar os elementos do tipo penal. Quando o influenciador divulga um site de apostas crendo na sua legalidade - por este ostentar, por exemplo, licença do Ministério da Fazenda para operar - não se pode falar em intenção dolosa de promover atividade ilícita. Ao contrário, há confiança na licitude.

Ainda que se argumentasse, em tese, alguma forma de culpa (negligência em verificar a idoneidade da plataforma, por exemplo), é pacífico que contravenções penais e tipos dolosos específicos não admitem punição culposa, e de toda forma não existe dever legal expresso que imponha ao cidadão comum verificar autorização estatal antes de recomendar um serviço licenciado. O status de licitude objetiva da plataforma afasta a própria tipicidade material da conduta do influenciador.

A ausência de tipicidade formal e material se acentua à medida que a conduta do influenciador, longe de afrontar o ordenamento jurídico, alinha-se a um comportamento socialmente tolerado e regulado. Qualquer tentativa de criminalizar tal conduta representaria uso indevido da analogia in malam partem, vedada pelo princípio da taxatividade penal, além de implicar restrição indevida à liberdade de expressão, inclusive em sua vertente comercial.

A própria legislação pátria tem avançado no sentido de regulamentar administrativamente a publicidade das apostas, sem recorrer à criminalização. A lei 14.790/23, ao tratar da exploração de apostas de quota fixa, estabeleceu em seu art. 16 que a regulamentação da propaganda cabe ao Poder Executivo, incentivando inclusive a autorregulamentação do setor. De forma complementar, normas infralegais têm exigido que os anúncios exibam o número da licença concedida pela autoridade competente, além de advertências sobre os riscos da atividade e sua vedação para menores de idade.

O próprio Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária editou o anexo X de seu código, com diretrizes específicas para publicidade de apostas esportivas, vedando, por exemplo, quaisquer afirmações que sugiram sucesso financeiro garantido ou incitem apostas descontroladas.

O próprio conjunto normativo delineia, portanto, um modelo regulatório que privilegia o controle administrativo e a proteção do consumidor, afastando, por consequência, qualquer pretensão de intervenção penal em contextos de atuação lícita e transparente por parte de influenciadores.

3. Responsabilização excepcional de influenciadores

Importa reconhecer que a crescente popularização das apostas online no Brasil, aliada à expansão da atuação de influenciadores digitais, tem suscitado preocupações de ordem jurídico-penal, especialmente em situações-limite em que tais personalidades são vinculadas a esquemas criminosos que se ocultam sob a fachada aparentemente lícita dos jogos virtuais. Nessas hipóteses, autoridades policiais e o Ministério Público não buscam imputar crimes pela simples veiculação publicitária das chamadas bets, mas sim em razão de atos ilícitos subjacentes que se valem do ambiente de apostas como meio para práticas criminosas.

A imputação de responsabilidade penal ao influenciador, nesse contexto, não decorre da mera divulgação de plataformas de apostas, mas sim de sua atuação consciente e dolosa na cadeia delitiva. Quando há envolvimento direto com práticas como fraude contra o consumidor (art. 171 do Código Penal e art. 66 do CDC), lavagem de capitais (lei 9.613/1998), organização criminosa (lei 12.850/13) ou exploração de jogos de azar (art. 50 da lei das contravenções penais), a conduta passa a ostentar relevância jurídico-penal autônoma.

A caracterização dessa responsabilidade demanda, todavia, demonstração de um especial fim de agir. Situações em que o influenciador participa ativamente do ardil - como ao divulgar versões manipuladas de jogos com o intuito de ludibriar o público, receber percentual sobre lucros ilícitos ou colaborar com a expansão de plataformas clandestinas - transbordam a fronteira da legalidade e passam a configurar hipóteses de coautoria ou participação em crimes patrimoniais e contra a ordem econômica.

Nesses casos, a reação penal encontra fundamentos consideráveis, haja vista a superação do mero caráter publicitário da atuação digital. O vínculo direto com o núcleo do injusto penal justifica a imputação e enseja a necessidade de defesa técnica especializada, muitas vezes fundada na tentativa de afastar o elemento subjetivo do tipo - seja o dolo direto, seja eventual - para fins de exclusão da responsabilidade criminal.

A distinção entre tais situações e aquelas em que o influenciador se limita a promover plataformas regularmente licenciadas e fiscalizadas pelo poder público é decisiva. A linha que separa a legalidade da ilicitude repousa na análise do conteúdo concreto da conduta: enquanto na primeira prevalecem a liberdade de iniciativa e a boa-fé objetiva, na segunda emerge o interesse penal de reprimir condutas fraudulentas ou associadas ao crime organizado.

4. Conclusão

Revela-se, assim, inviável sustentar a tipificação penal da conduta do influenciador digital que promove plataformas de apostas esportivas online regularmente autorizadas pelo Estado. As denominadas bets licenciadas, respaldadas pelas leis 13.756/18 e 14.790/23, integram o conjunto das atividades econômicas legalmente admitidas no ordenamento jurídico brasileiro, afastando-se de forma categórica da noção clássica de "jogos de azar" proscritos pela legislação penal tradicional.

A realização de publicidade por tais influenciadores, conquanto possa suscitar debates éticos ou gerar preocupações de ordem social, não perfaz, em si mesma, qualquer infração penal. A estrutura dogmática do Direito Penal impõe, como pressuposto indispensável à configuração da tipicidade, a lesão ou exposição a perigo concreto de um bem jurídico tutelado, bem como a subsunção da conduta a um tipo incriminador descrito de forma estrita na norma penal. Ausente tal subsunção - o que é patente na mera divulgação de atividade econômica autorizada pelo Poder Público - inexiste crime.

É juridicamente irrelevante, do ponto de vista penal, que a publicidade seja veiculada por indivíduos comuns ou por meios de comunicação de massa, já que todos se encontram sujeitos às mesmas balizas normativas quando promovem produtos ou serviços lícitos. A analogia com a difusão de loterias oficiais ou de outras modalidades de apostas reguladas reforça a licitude do comportamento do influenciador que atua nos estritos limites traçados pela legislação infraconstitucional.

Não se infere, disso, uma isenção absoluta de responsabilidade. A legislação específica - em especial a lei 14.790/23 - estabelece deveres de transparência, clareza e vedação de práticas publicitárias abusivas ou enganosas. A inobservância dessas normas pode ensejar responsabilização de natureza civil ou administrativa, sob a forma de sanções como multas, obrigação de reparar danos, retirada de conteúdo e outras medidas coercitivas previstas no ordenamento. O ilícito penal, por outro lado, somente incidirá se da conduta emergir um tipo penal autônomo, praticado com dolo específico e mediante atos que extrapolem a mera promoção comercial.

O Direito Penal, regido pelos postulados da subsidiariedade, da intervenção mínima e da fragmentariedade, deve se abster de atuar em contextos nos quais a resposta jurídica adequada já se encontra prevista em outras esferas normativas menos gravosas. A punição criminal, nesse domínio, somente se legitima quando o influenciador incorre em práticas dolosas que caracterizem, por exemplo, organização criminosa, estelionato, lavagem de capitais ou outros delitos com autonomia típica e relevância penal.

A tentativa de criminalizar a conduta de boa-fé do influenciador que promove plataforma de apostas regularmente licenciada, sem envolvimento em fraudes ou manobras clandestinas, revela-se não apenas injusta sob o ponto de vista valorativo, mas também insustentável à luz dos princípios reitores do sistema penal brasileiro.

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BRASIL. Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 29 dez. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR). Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária: Anexo X - Normas para a publicidade de apostas. São Paulo: CONAR, 2023. Disponível em: https://www.conar.org.br/codigo/anexo-x. Acesso em: 12 abr. 2025.

BRASIL. Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 13 dez. 2018.

BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 ago. 2013.

BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 4 mar. 1998.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 8 out. 1941.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 31 dez. 1940.

Luis Vasconcelos Maia

Luis Vasconcelos Maia

Advogado Criminalista. Parecerista. Mestrando em Ciências Jurídicas. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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