A legalidade da compensação tributária com créditos de terceiros
O artigo analisa a compensação de tributos Federais com créditos judiciais de terceiros, confrontando a posição da RFB com o decreto 11.249/22, o art. 100, §11 da CF e jurisprudência favorável.
domingo, 27 de abril de 2025
Atualizado em 25 de abril de 2025 14:36
I. Relatório
O presente parecer visa analisar a possibilidade de utilização, para fins de compensação de débitos tributários Federais, de créditos judiciais oriundos de terceiros, adquiridos por cessão, diante do posicionamento restritivo manifestado pela RFB - Receita Federal do Brasil, especialmente nas soluções de consulta COSIT 101/14 e SRRF06 6.021/17, e em contraponto com as previsões do decreto 11.249/22 e do art. 100, § 11 da CF/88.
II. Fundamentação jurídica
1. Soluções de consulta COSIT - Natureza e limitações
As soluções de consulta da COSIT são atos administrativos normativos de caráter interpretativo, previstos na IN RFB 2.058/21. Conforme dispõe o art. 9º:
"As soluções de consulta e as soluções de divergência serão observadas pelas unidades da RFB no exercício de suas atividades, até que sobrevenha decisão judicial definitiva em sentido contrário ou alteração na legislação tributária."
Portanto, não possuem força de lei e não vinculam o contribuinte, tampouco podem se sobrepor a normas de hierarquia superior, como decretos ou dispositivos constitucionais. Sua aplicação interna à Administração Tributária deve respeitar a legislação vigente e a jurisprudência dominante.
2. Previsão constitucional - Art. 100, § 11 da CF/88
A CF/88, em seu art. 100, § 11, introduzido pela EC 62/09 e posteriormente alterado pela EC 113/21, autoriza expressamente a cessão de créditos judiciais (precatórios) e sua utilização para compensação:
"É facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedo,r com auto aplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para:
I - quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor ,inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente, débitos com a administração autárquica e fundacional do mesmo ente;"
Esse dispositivo garante ao cessionário a plena titularidade do crédito com todos os direitos do credor original, inclusive para fins de compensação tributária, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado.
3. Decreto 11.249/22 - Expressa autorização para compensação com créditos de terceiros
O decreto 11.249/22, em vigor desde 2022, dispõe expressamente:
Art. 2º [.] poderá ser realizada com a utilização de créditos líquidos e certos [.] de titularidade do interessado ou de terceiros, reconhecidos por decisão judicial transitada em julgado, cuja execução tenha sido proposta contra a União [.]".
Esse decreto autoriza a utilização de créditos de terceiros reconhecidos judicialmente, inclusive para débitos parcelados ou inscritos em dívida ativa, desde que seguidos os procedimentos estabelecidos na portaria PGFN 6.757/22 (substituída agora pela portaria PGFN 731/25, que manteve tal prerrogativa).
4. Inadequação da interpretação restritiva da RFB
As soluções COSIT 101/14 e 6.021/17 concluem pela impossibilidade de compensação administrativa com precatórios, por entenderem que essa modalidade só seria possível judicialmente e com créditos do próprio contribuinte. Entretanto, esse entendimento:
É anterior ao decreto 11.249/22, que inovou no regramento e permitiu expressamente a utilização de créditos de terceiros;
Ignora a hierarquia normativa (um decreto tem precedência sobre ato interpretativo interno);
Fere o princípio da legalidade e da isonomia, ao impedir que contribuintes em idêntica situação jurídica - mas com créditos adquiridos por cessão - possam compensar débitos da mesma forma.
Além disso, o próprio art. 170 do CTN permite a compensação "nos termos da lei", e essa "lei" hoje é complementada por norma infra legal válida (decreto 11.249/22), que viabiliza a cessão e a compensação desses créditos.
III. Jurisprudência favorável
1. Decisão do TCE-PR - Tribunal de Contas do Estado do Paraná
Processo: Consulta formulada pelo município de Jacarezinho.
Data: 27 de agosto de 2024.
Fonte: TCE-PR.
O Tribunal de Contas do Estado do Paraná reconheceu expressamente que:
"É juridicamente possível a utilização, por ente público, de precatório adquirido de terceiro para a compensação de débitos existentes perante outra pessoa jurídica de direito público. Para tanto, deve haver lei local do ente devedor do precatório que admita a operação, comum acordo entre os entes e observância da ordem prioritária de amortização."
Esta decisão fundamentou-se nos parágrafos 11, 13, 21 e 22 do art. 100 da CF/88, reconhecendo a possibilidade de compensação com créditos adquiridos de terceiros, desde que observados os requisitos legais.
2. Decisão judicial - AJS consultoria LTDA (2024)
Processo: 0818264-45.2024.4.05.8300 - Procedimento Comum Cível
Órgão Julgador: 6ª Vara Federal - PE
Neste caso recente, a empresa AJS consultoria LTDA adquiriu, mediante cessão "inter vivos", direitos creditórios líquidos e certos oriundos de sentença judicial transitada em julgado. Com base nesse crédito cedido, requereu administrativamente a compensação de créditos tributários, conforme permissivo previsto no art. 11, V, da lei 13.988/20 e art. 100, § 11, da CF/88.
O juízo fundamentou sua decisão no art. 100, §11º da CF/88, nas leis 13.988/20 e 14.375/22, e na portaria PGFN 10.826/22, que disciplinam a possibilidade de compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, inclusive os adquiridos de terceiros.
Na decisão, o magistrado destacou:
"O pleito encontra fundamento no art. 100, §11º, da CF/88, nas Leis nº 13.988/2020 e nº 14.375/2022, e na Portaria PGFN nº 10.826/2022, que disciplinam a possibilidade de compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos."
Além disso, a decisão invocou a súmula 461 do STJ, que estabelece:
"O contribuinte pode optar por receber o indébito tributário por meio de precatório ou por compensação. Esta opção é válida para valores certificados por sentença declaratória transitada em julgado."
O juízo DEFERIU o pedido de tutela de urgência para suspender a exigibilidade dos referidos créditos tributários, determinando a expedição de CPEN - Certidão Positiva com Efeitos de Negativa, reconhecendo assim a legitimidade da compensação com créditos adquiridos de terceiros.
3. Decisão judicial- Prima patrimonial Ltda (2022)
Processo: 0000290-80.2010.8.05.0250 - Execução fiscal
Órgão Julgador: 1ª Vara da Fazenda Pública - Simões Filho
Neste caso, o juízo deferiu o pleito formulado pela executada, determinando a expedição de auto de penhora para que fosse promovida a penhora de precatório judicial em favor da exequente (Fazenda Nacional).
Esta decisão, embora não trate diretamente da compensação tributária, demonstra a aceitação judicial da utilização de precatórios para quitação de dívidas fiscais, reconhecendo implicitamente a validade da cessão de créditos de terceiros para este fim.
4. Informativo de jurisprudência 771 do STJ (2023)
O Informativo de jurisprudência 771 do STJ, publicado em 25/4/23, reafirma que:
"A cessão de créditos inscrito sem precatórios, autorizada pelo art. 100, §§ 13 e 14, da Constituição Federal, permite ao credor ceder seus créditos a terceiros, independentemente da concordância do devedor."
Embora não trate especificamente da compensação tributária, este informativo reforça o entendimento do STJ sobre a validade da cessão de créditos de precatórios a terceiros, base fundamental para a posterior utilização desses créditos em compensações tributárias.
5. Resolução 822/23 do TRF5
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por meio da resolução 822/23, reafirmou que:
"O credor poderá ceder a terceiros, total ou parcialmente, seus créditos em requisições de pagamento, independentemente da concordância do devedor."
Esta resolução demonstra a aceitação desta prática no âmbito do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em consonância com o disposto no art. 100, § 13, da CF/88.
IV. Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que:
As soluções de consultada Receita Federal não têm força de lei, sendo vinculantes apenas para a própria administração tributária;
O decreto 11.249/22, norma infra legal com força vinculante geral, autoriza expressamente a compensação com créditos adquiridos de terceiros, desde que reconhecidos judicialmente;
O art. 100, § 11 da CF/88 confere amparo constitucional à cessão desses créditos, com plena eficácia para o novo titular;
A negativa da Receita Federal com base apenas no art. 74 da lei 9.430/96 não se sustenta frente à evolução normativa e à interpretação sistemática do ordenamento jurídico;
A jurisprudência recente, tanto administrativa quanto judicial, tem reconhecido a legitimidade da compensação de débitos tributários com créditos adquiridos de terceiros, desde que observados os requisitos legais e procedimentais.
É plenamente legítima a compensação de débitos tributários com créditos adquiridos de terceiros, desde que observados os requisitos legais e procedimentais, conforme demonstrado pelas decisões judiciais e administrativas analisadas.
__________
Legislação:
Constituição Federal, art. 100, § 11, § 13, § 21 e § 22
Decreto nº 11.249/2022
Instrução Normativa RFB nº 2.058/2021
Lei nº 9.430/1996
Lei nº 12.431/2011
Lei nº 13.988/2020
Lei nº 14.375/2022
Portaria PGFN nº 10.826/2022
Portaria PGFN nº 731/2025
Jurisprudência:
Decisão do TCE-PR na Consulta formulada pelo Município de Jacarezinho (2024)
Decisão Judicial no Processo nº 0818264-45.2024.4.05.8300 - 6ª Vara Federal - PE (2024)
-Decisão Judicial no Processo nº 0000290-80.2010.8.05.0250 - 1ª Vara da Fazenda Pública - Simões Filho (2022)
Informativo de Jurisprudência nº 771 do STJ (25 de abril de 2023
Súmula 461 do STJ: "O contribuinte pode optar por receber o indébito tributário por meio de precatório ou por compensação"
Resolução nº 822/2023 do TRF5
Atos Administrativos:
Solução de Consulta COSIT nº 101/2014
Solução de Consulta SRRF06 nº 6.021/2017


