Os títulos executivos inconstitucionais e a QO na AR 2.876/STF
O texto procura interpretar as variáveis decorrentes da interpretação do STF advinda da QO na AR 2.876 e seus reflexos nos casos concretos.
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Atualizado às 11:29
Dentre as muitas preocupações do CPC/15 refere-se à ampliação da verticalização dos precedentes oriundos do STF, inclusive atingindo situações jurídicas concretas já estabilizadas pela coisa julgada, refletindo em institutos como a ação rescisória e a impugnação ao cumprimento de sentença.
Na verdade, a temática ligada à chamada coisa julgada inconstitucional também estava presente no CPC/73 (arts. 475-L, §1º e 741, §único) e mereceu tratamento específico na legislação processual de 2015.
A rigor, a própria estabilidade decorrente da garantia constitucional da coisa julgada pode sucumbir se o título judicial for fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF (em controle difuso e concentrado), ou fundado em aplicação ou interpretação incompatível com a CF.
Trata-se de mais um capítulo do tormentoso tema da relativização da coisa julgada, mitigando, inclusive, a eficácia preclusiva dela decorrente (art. 507 do CPC/15).
A vinculação vertical, a propósito, atinge não apenas os processos em curso, mas também a própria decisão transitada em julgado, com ampliação do cabimento da rescisória e da alegação de inexigibilidade do título executivo suscitada na impugnação ao cumprimento de sentença.
É necessário resumir o que prevê o CPC/15 sobre o assunto:
- Pelo art. 489, § 1º: "Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento".
- Os arts. 525, §12 e 535, §5º, deixam claro que é possibilidade de decretação de inexigibilidade do título executivo for "fundado em lei ou ato normativo considerados inconstitucionais pelo Supremo tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso".
- Há a possibilidade de modulação da decisão paradigma no tempo (arts. 525, §13 e 535, §6º).
- No §15, do art. 525 e 8º, do art. 535, há expressamente a seguinte passagem: "§ 8º Se a decisão referida no § 5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal".
Há, em verdade, clara aproximação dos sistemas de controle constitucionalidade, aliada a ampliação do caráter erga omnes das decisões do STF. Não se deve esquecer, outrossim, que o CPC/15, não só consagra o cabimento da rescisória, como estabelece que o prazo para sua apresentação começa da decisão do STF (§15, do art. 525 e 8º, do art. 535, do CPC/15), quando o precedente vinculante for proferido após o trânsito em julgado da decisão rescindenda.
A conclusão advinda da CPC é uma só: o caráter vinculante dos precedentes fundamenta a possibilidade de desconstituição da coisa julgada por meio da impugnação ao cumprimento de sentença e também da rescisória (art. 966, V, do CPC/15).
Contudo, essa possibilidade de ação rescisória prevista no CPC, com prazo de 2 anos a contar da decisão futura do STF não está imune à crítica, podendo, na prática, permitir demandas desconstitutivas com 6, 8 ou 10 anos após o trânsito em julgado do caso concreto.
Este foi um dos pontos discutidos pelo STF no último dia 23/4/25. O presente ensaio pretende apresentar as primeiras reflexões sobre o entendimento da Corte Suprema, bem como seu reflexo em centenas ou milhares de situações concretas envolvendo impugnação ou ação rescisória fundada na interpretação posterior e vinculante da Corte.
Não pretendo discutir o método ou o procedimento adotado pelo STF - que fixou o entendimento em questão de ordem na ação rescisória 2.876, de relatoria do Exmo. ministro Gilmar Mendes. A preocupação deste momento é exclusiva em relação às consequências processuais em decorrência da teses lá fixadas.
Irei, visando contribuir ao debate, dividir em trechos a íntegra da tese fixada na QO, senão vejamos:
"O § 15 do art. 525 e o § 8º do art. 535 do Código de Processo Civil devem ser interpretados conforme a Constituição, com efeitos ex nunc, no seguinte sentido, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do § 14 do art. 525 e do § 7º do art. 535:"
De imediato, é importante destacar que o STF entendeu que os parágrafos do art. 525 e 535, do CPC que tratam da hipótese em que o precedente do STF é posterior ao caso concreto, sujeitando ao cabimento de ação rescisória, devem ser interpretados em conformidade com o texto constitucional e com efeitos ex nunc.
Logo, a interpretação lançada nos itens posteriores da tese, inclusive quanto à ampliação da possibilidade de discussão da inexigibilidade do título também nos casos de entendimento posterior do STF (o que será tratado em seguida) alcança apenas as situações posteriores (ex nunc); ou seja, não há alteração em relação às situações jurídicas já em tramitação no âmbito dos órgãos do Sistema de Justiça Nacional.
É possível inclusive afirmar que o STF modulou os regramentos que serão aqui expostos, de forma ex nunc.
Ademais, como consequência desta ampliação do conceito de inexigibilidade do título e visando manter a congruência com o entendimento lançado na questão de ordem, houve declaração a inconstitucionalidade do art. 525, §14 e 535, §7º, do CPC.
De fato, estes dispositivos exigiam, para a discussão de inexigibilidade do título, que a decisão do STF fosse anterior à coisa julgada do caso concreto. O regramento do CPC (coisa julgada anterior ao precedente do STF: rescisória com prazo de 2 anos a contar da decisão do STF/coisa julgada posterior ao precedente: inexigibilidade do título e discussão na impugnação) foi alterado pela tese fixada pela Corte, com a ampliação do conceito de inexigibilidade do título e da discussão no âmbito do cumprimento de sentença.
A declaração de inconstitucionalidade, portanto, se fazia necessária visando essa congruência entre o entendimento firmado pelo STF: ampliação do conceito de inexigibilidade do título e sua discussão de forma incidental no próprio cumprimento de sentença.
- "1. Em cada caso, o Supremo Tribunal Federal poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para fins da ação rescisória ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social."
Não vejo, neste item 1, grande novidade. Trata-se de uma melhor conceituação da modulação e dos critérios que devem ser levados em conta pelo STF, especialmente em relação às inúmeras situações jurídicas concretas atingidas pela interpretação constitucional. Esta modulação, que já estava presente na redação dos arts. 525, §13 e 535, §6º, do CPC, deve levar em conta a boa-fé dos atingidos e, como diz este item, o grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social.
É importante perceber que esta modulação (para frente e para trás) em relação aos efeitos da interpretação do STF, pode influenciar diretamente no prazo para a ação rescisória e na possibilidade de alegação de inexigibilidade do título no próprio cumprimento de sentença. Por exemplo, se a Corte entender, em determinado caso concreto, por bem aplicar a interpretação com efeitos ex nunc, poderá proteger inúmeros casos concretos, vedando a possibilidade de manejo de ação rescisória pelos atingidos ou mesmo de alegação de inexigibilidade em cumprimento de sentença já em sua fase final.
- 2. Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão cinco anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF.
Os itens 2 e 3 são os mais importantes e complexos, a meu ver, e devem ser analisados com muita cautela. O que está sendo aqui afirmado é que, não sendo modulada a aplicação do entendimento do STF, o regramento é o seguinte: o efeito retroativo para fins de rescisão não pode exceder cinco anos do ajuizamento da ação rescisória, que deve ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF.
Este item 2 altera substancialmente o que prevê o CPC, nos arts. 525, §15 e 535, 8º (em caso de interpretação posterior do STF, o prazo da rescisória é de 2 anos contado do trânsito em julgado do precedente vinculante).
Quanto a este ponto, entendo que o posicionamento do STF está correto e se preocupa com a segurança jurídica e estabilidade de casos concretos com trânsito em julgado em anos anteriores. Ao estabelecer que há duplo prazo (2 anos para a rescisória contado da decisão do STF e no máximo de 5 anos de efeito rescisório para o caso concreto), permite-se imaginar uma estabilidade para as situações jurídicas com trânsito em julgado em tempo posterior a estes 5 anos.
Contudo, este item trata exclusivamente da ação rescisória e não da discussão no ambiente da impugnação ao cumprimento de sentença, limitando-a duplamente no ambiente temporal: do caso concreto a ser rescindido e a contagem a partir da decisão do STF.
Este regramento de 2 e 5 anos é semelhante ao do art. 975, §2º, do CPC (rescisória fundada em descoberta de prova nova), mas com redação um pouco diferente.
- 3. O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (CPC, arts. 525, caput, e 535, caput).
Este item é o mais complexo e o que, provavelmente, irá gerar mais dúvidas e críticas pela doutrina nacional. A primeira observação já foi aqui mencionada: o STF ampliou o conceito de inexigibilidade do título executivo judicial, para alcançar situações em que a decisão do STF é anterior (o que é já era previsto no CPC), e também posterior ao trânsito em julgado, salvo preclusão.
O ambiente de discussão da inexigibilidade do título é, como é sabido, na impugnação ao cumprimento de sentença, pelo que entendo que a preclusão mencionada, refere-se à situação jurídica em que não há mais esta etapa procedimental. Contudo, considerando que se trata de matéria de ordem pública, será que não seria possível a alegação de inexigibilidade do título em objeção de pré-executividade, especialmente nos casos em que o precedente obrigatório da Corte foi firmado após o manejo da impugnação?
E não é só isso. Ao ampliar o ambiente cognitivo da inexigibilidade do título, o STF foi além do que prevê a legislação processual, deixando a ação rescisória como medida absolutamente excepcional.
A preclusão mencionada no item 3, portanto, é para a alegação da inexigibilidade no próprio cumprimento de sentença, não impedindo o manejo da ação rescisória, observado o regramento do item anterior.
São cabíveis, portanto: a) a discussão de inexigibilidade do título (na impugnação ao cumprimento de sentença) tanto para os casos de decisão do STF antes ou após a coisa julgada do caso concreto, respeitada a preclusão, sendo discutível o cabimento de objeção de pré-executividade (matéria de ordem pública); b) ação rescisória, com prazo de 2 anos a contar do trânsito em julgado do precedente do STF, respeitado o prazo de 5 anos (semelhante ao regramento do art. 975, §2o do CPC) - isso se o STF não modular a interpretação de constitucionalidade.
Como já mencionado, muitas críticas ao entendimento do STF irão surgir, inclusive quanto ao procedimento adotado para a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos e do regramento processual escolhido pelo CPC.
Em estudos posteriores, voltarei o tema. Minha maior preocupação, neste momento, foi apenas tentar organizar as variáveis advindas do entendimento da QO na AR 2.876/STF.