A vítima de violência doméstica pode se negar a participar da audiência?
Este ensaio busca analisar se a vítima de violência doméstica está obrigada ou não a comparecer na audiência de instrução e julgamento.
sexta-feira, 2 de maio de 2025
Atualizado às 11:27
1. Introdução
A legislação processual penal brasileira estabelece com clareza a obrigatoriedade da participação da vítima na audiência de instrução e julgamento. O art. 201, §1º, do CPP determina que, em caso de ausência injustificada, a vítima poderá ser conduzida coercitivamente, medida que visa garantir a efetividade da prova e o devido processo legal. No entanto, orientações recentes do Fonavid - Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, especificamente a revogação do enunciado 41 e a manutenção do enunciado 50, vão na contramão da norma cogente e suscitam sérias preocupações sobre o papel institucional do Poder Judiciário no cumprimento da lei. Este ensaio busca analisar criticamente tal contradição normativa e suas implicações práticas e jurídicas.
2. Desenvolvimento
2.1. A força cogente do art. 201, §1º, do CPP
O CPP, em seu art. 201, §1º, dispõe que "o juiz assegurará à vítima, por ocasião do processo penal, o direito de ser ouvida e de participar dos atos processuais". Mais do que um direito, trata-se de uma imposição legal à qual se atribuem consequências em caso de descumprimento. A ausência injustificada da vítima pode ensejar sua condução coercitiva, mecanismo legítimo e previsto para assegurar a ordem processual e a produção da prova oral essencial à instrução.
Trata-se de regra cogente, ou seja, de observância obrigatória, cuja finalidade é assegurar a presença da testemunha-vítima para que os fatos narrados possam ser confrontados em juízo, sob o crivo do contraditório. O não comparecimento, portanto, fere não apenas a lógica do processo penal democrático, mas também compromete o exercício da ampla defesa.
2.2. A importante função do Fonavid
Criado em 2009, o Fonavid é um fórum permanente de magistrados com atuação na área de violência doméstica. Sua principal missão, dentre outras, é promover o intercâmbio de boas práticas e a discussão de temas e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, apesar dos esforços, seus enunciados não têm caráter vinculante. São, em essência, recomendações.
O enunciado 41, antes de ser revogado, caminhava em harmonia com o art. 201, §1º do CPP, ao prever que "a mulher em situação de violência pode ser conduzida coercitivamente para audiência de instrução criminal". A revogação deste enunciado sugere uma inflexão interpretativa do Fonavid, que parece entender, agora, que a vítima pode se recusar a comparecer sem sofrer qualquer consequência legal.
Tal posicionamento torna-se ainda mais evidente com o enunciado 50, que afirma: "Deve ser respeitada a vontade da mulher em situação de violência de não se expressar durante seu depoimento em juízo, após devidamente informada dos seus direitos". Essa formulação aproxima o papel da vítima ao do acusado, atribuindo-lhe um suposto direito ao silêncio que simplesmente não existe no ordenamento jurídico para essa posição processual.
2.3. As implicações jurídicas da ausência injustificada da suposta vítima de violência doméstica na audiência
A consequência lógica da ausência injustificada da vítima ou do seu silêncio é a fragilização da acusação. Como o ônus da prova cabe ao acusador - Ministério Público ou querelante - a não produção de prova direta e pessoal sobre os fatos narrados na denúncia compromete substancialmente a hipótese acusatória. Em muitos casos, sobretudo naqueles baseados exclusivamente na palavra da suposta vítima, sua ausência na audiência ou o seu silêncio torna inviável a comprovação da imputação.
Nesse contexto, entendemos que deve prevalecer o princípio do favor rei, ou seja, na dúvida, decide-se em favor do réu. Trata-se de um corolário da presunção de inocência e do in dubio pro reo. A suposta vítima, ao se ausentar sem justificativa ou quando resolve não se expressar, compromete a própria narrativa, pois impede que a verdade processual seja confrontada pelas vias legítimas do contraditório e da ampla defesa.
Assim, a manutenção dos enunciados do Fonavid pode ter o efeito paradoxal de beneficiar o acusado, ao impedir que a principal prova da acusação - o depoimento da vítima - seja produzida validamente.
2.4. A ilegitimidade do Fonavid para contrariar norma legal
O Fonavid, ainda que composto por magistrados, não possui poder legiferante. Em nosso ponto de vista, respeitosamente, entendemos que a revogação do enunciado 41 e a manutenção do enunciado 50 constituem, portanto, orientações contrárias à norma cogente do CPP. Primeiro, porque entendemos que os enunciados do Fonavid extrapolam os limites interpretativos permitidos ao Fórum, que não teria legitimidade legislativa para emitir interpretação derrogatória de lei válida e cogente. Segundo, porque promovem uma interpretação contra legem, isto é, frontalmente contrária à norma vigente.
Além disso, ignora-se o dever institucional dos magistrados de zelar pela fiel aplicação da lei. Juízes não podem, por conveniência ideológica ou sociopolítica, orientar o descumprimento de dispositivos legais que estão em pleno vigor. Entendo que a revogação do enunciado 41 e a manutenção do enunciado 50 configuram ato arbitrário e, mais ainda, cria um perigoso precedente que ameaça a própria estabilidade normativa do processo penal e da democracia.
2.5. A simetria equivocada entre vítima e acusado
Outro aspecto que merece crítica é a tentativa implícita, nos enunciados do Fonavid, de equiparar os direitos processuais da vítima aos do acusado. O direito ao silêncio, por exemplo, é um direito fundamental do acusado, decorrente da presunção de inocência e do direito à não autoincriminação. Estender esse direito à suposta vítima de violência doméstica, sob o pretexto de se evitar a revitimização, respeitosamente, desvirtua completamente a lógica processual.
A testemunha e a suposta vítima têm o dever legal de dizer a verdade. A vítima, quando chamada a depor, participa do processo oferecendo elementos de prova. Portanto, entendo não haver fundamento legal para que se reconheça o "direito ao silêncio" à vítima, salvo nos casos em que sua fala possa incriminá-la diretamente.
2.6. Os riscos de ativismos
Entendemos que a substituição da legalidade estrita por enunciados ideologicamente orientados compromete o devido processo legal. O Fonavid, ao emitir recomendações que confrontam abertamente a lei, não apenas extrapola sua função institucional como também promove uma jurisprudência contra legem.
O resultado disso é a insegurança jurídica, a desigualdade de tratamento entre acusado e o enfraquecimento das garantias processuais que sustentam o Estado Democrático de Direito. Juízes devem julgar conforme a lei, não conforme suas ideologias.
2.7. Conclusão
A análise crítica dos enunciados 41 (revogado) e 50 do Fonavid revela um descompasso entre o dever legal de zelar pela aplicação da lei e as orientações atualmente promovidas por aquele importante Fórum. A revogação do enunciado 41 e a manutenção do enunciado 50 sugerem que a suposta vítima de violência doméstica poderia se recusar a participar da audiência de instrução e julgamento criminal, o que pode soar como um incentivo ao descumprimento de norma cogente do CPP, fato que pode levar ao enfraquecimento das garantias constitucionais.
É imperioso reafirmar que a ausência injustificada da vítima compromete a instrução probatória e deve, sim, beneficiar o acusado com a absolvição, por ausência de provas. Mais do que isso, é fundamental que o Judiciário retome seu papel institucional de guardião da legalidade, deixando de lado agendas paralelas que, embora bem-intencionadas, não podem se sobrepor à lei.
A justiça penal deve ser orientada por princípios jurídicos sólidos, não por militância interpretativa. O Fonavid, ao ultrapassar seus limites hermenêuticos, pode ameaçar a integridade do processo penal e a própria ideia de justiça imparcial.


