Filipe Luís, apostas e superendividamento: A urgência que ignoramos
O que a crítica de Filipe Luís, treinador do Flamengo, às apostas revela sobre a urgência de aplicar a lei do superendividamento? Entenda por que a mudança é necessária para toda a sociedade.
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Atualizado às 13:31
Recentemente, Filipe Luís, treinador do Flamengo, chamou atenção para uma grave distorção social: a aceitação quase generalizada da publicidade de casas de apostas, mesmo diante dos inúmeros problemas sociais que delas decorrem, como o endividamento e a destruição de famílias. Segundo Filipe, um dia olharemos para trás e nos escandalizaremos, da mesma forma que hoje nos espantamos ao ver antigas propagandas de cigarro associadas a status e elegância.
Esse sentimento de perplexidade futura não se restringe ao campo do esporte. No mundo jurídico, especialmente no Direito do Consumidor, estamos vivendo fenômeno semelhante. A lei 14.181/21, conhecida como lei do superendividamento, embora represente um dos mais importantes avanços legislativos das últimas décadas, ainda não encontrou sua aplicação plena e efetiva na prática forense.
A lei do superendividamento não surgiu por acaso. Ela é fruto de mais de uma década de estudos, audiências públicas e amadurecimento acadêmico. Seu propósito é claro: criar mecanismos para que o consumidor superendividado de boa-fé possa reestruturar sua vida financeira e retomar sua cidadania econômica. Busca-se, portanto, mais do que resolver dívidas; almeja-se resgatar a dignidade da pessoa humana. E os benefícios sociais dessa legislação são imensos.
O combate ao superendividamento reduz diretamente problemas como o aumento da criminalidade, a desestruturação familiar, os divórcios motivados por crises financeiras, e até mesmo a elevação do número de pessoas em situação de rua. Ao permitir que famílias mantenham uma vida minimamente estável, a lei contribui para o desenvolvimento saudável das crianças, melhorando sua capacidade cognitiva e sua permanência na escola. Mais do que proteger o consumidor, a lei do superendividamento é uma poderosa ferramenta de fortalecimento da ordem social, da inclusão econômica e da própria paz social.
Apesar da clareza dos seus objetivos, a realidade mostra que a resistência ainda é significativa. Muitos magistrados, habituados a uma visão patrimonialista do devedor, continuam a interpretar as situações de superendividamento sob uma ótica tradicional, que enxerga o inadimplemento apenas como descumprimento contratual, e não como um problema social que exige respostas humanas e jurídicas mais complexas.
A maior evidência dessa resistência está na forma como tem sido tratado o chamado mínimo existencial. Fixado em R$ 600 pelo decreto 11.150/22, esse valor, além de inconstitucional, é absolutamente incompatível com o conceito de dignidade previsto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Reduzir a vida digna a R$ 600, é ignorar que o mínimo existencial deve contemplar não apenas alimentação básica, mas também moradia, transporte, saúde, educação e cultura.
Aceitar esse patamar mínimo é trair o espírito da lei. É desvirtuar a missão constitucional do CDC, que foi alterado exatamente para fortalecer a proteção do consumidor superendividado, criando mecanismos de prevenção, tratamento e recuperação.
A lógica por trás da lei é simples e humana: ninguém deve ser condenado a viver permanentemente à margem da sociedade por conta de dívidas que, muitas vezes, surgem de crises econômicas, doenças, desemprego ou práticas abusivas de concessão de crédito.
Não podemos esquecer que o próprio CDC, quando promulgado em 1990, enfrentou forte resistência. A inversão do ônus da prova e a responsabilidade objetiva eram vistas com desconfiança. Muitos juízes se recusavam a aplicá-los, achando que violavam princípios clássicos do direito civil e do processo. Hoje, no entanto, seria impensável conceber a defesa do consumidor sem esses instrumentos. A maturação levou tempo, mas ocorreu.
O mesmo caminho será trilhado com a lei do superendividamento. É um processo que exige estudo, reflexão e uma nova mentalidade. Trata-se de abandonar a visão antiquada que culpa o devedor e de adotar uma perspectiva que reconhece o superendividamento como um fenômeno coletivo, social, digno de proteção jurídica especial.
Exemplos internacionais nos ensinam isso. Na França, a legislação sobre superendividamento, criada em 1989, também enfrentou resistências culturais. A ideia de reescalonamento de dívidas e perdão parcial era vista, inicialmente, com desconfiança. Mas o tempo e o amadurecimento social mostraram que tais medidas eram não apenas justas, mas essenciais para a preservação da paz social.
Nos Estados Unidos, institutos como o "Chapter 7" e o "Chapter 13", que tratam da falência da pessoa física, também foram inicialmente recebidos com resistência, mas hoje são considerados instrumentos fundamentais para o recomeço financeiro dos cidadãos.
O Brasil precisa percorrer esse mesmo caminho. Precisamos compreender que o tratamento adequado do superendividamento não é um favor ao devedor. É uma exigência constitucional. É a realização prática do princípio da dignidade da pessoa humana. É a concretização de um direito fundamental, expressamente reconhecido pelo art. 6º, inciso VIII, do CDC.
Parafraseando Betinho, que dizia que quem tem fome tem pressa, é preciso afirmar que quem tem dívidas impagáveis também tem pressa. A proteção do consumidor superendividado não pode esperar pelo tempo lento da maturação cultural, porque a exclusão financeira traz consigo fome, desemprego, degradação social e sofrimento humano.
Por isso, é essencial que a sociedade e o Poder Judiciário se esforcem, desde já, para aplicar a lei do superendividamento de acordo com o seu espírito e seus fundamentos. Que saibamos, no futuro, reconhecer que estivemos ao lado da evolução necessária: a proteção dos vulneráveis, a efetivação da dignidade humana e a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Ao contrário do que ocorreu com a aceitação tardia dos danos causados pelo cigarro, ou da demora em se compreender a importância da inversão do ônus da prova e da responsabilidade objetiva no CDC, que desta vez possamos enxergar a tempo. Porque aplicar corretamente a lei do superendividamento não beneficia apenas o devedor. Beneficia toda a sociedade. Reduz a criminalidade, preserva famílias, protege crianças, fortalece a economia e promove a paz social. Deixar de agir é recusar a chance de construir um país mais humano, mais solidário e mais forte. Que não percamos essa oportunidade.


