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Coisa julgada, precedentes e "teses"

Reflexão crítica sobre o precedente vinculante e a relativização da coisa julgada à luz da segurança jurídica e da confiança no Judiciário.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Atualizado às 09:55

Sempre me seduziu a ideia de que o juiz, ao interpretar a lei, exerce inexoravelmente uma dose de liberdade que pode variar imensamente de caso a caso, mas que acaba por conferir às decisões jurisdicionais uma função importante no que diz respeito à construção do Direito. 

Justamente porque acredito nisso, fui uma das grandes entusiastas desta nova e polêmica figura trazida pelo CPC/15: o precedente vinculante.

Precedentes vinculantes são capazes de proporcionar a concretização do princípio da isonomia, gerando mais previsibilidade e criando um saudável ambiente em que impera a segurança jurídica. Em tese.

O direito é um fenômeno que deve necessariamente se apoiar num "tripé": lei, doutrina e jurisprudência. Isto significa que, se de um lado, o direito é aquilo que o juiz diz que é; de outro lado, o juiz tem que dizer alguma coisa com base na lei e na doutrina. Estes dois elementos não podem ser ignorados, pois são base de uma decisão judicial. Portanto, esta "criatividade" do juiz, ideia que sempre me encantou, tem limites.

Vamos a um dos temas centrais destas minhas reflexões: a coisa julgada. A coisa julgada já foi instituto que se dizia ser capaz de transformar "o branco no preto e o preto no branco". Isto significa que pouco importava o erro ou o acerto da decisão... se sobre ela se tivesse operado a autoridade de coisa julgada, o que nela se dizia se tornaria "verdadeiro".

Começou-se a falar na relativização da coisa julgada em função de alguns casos concretos em que respeitá-la geraria uma situação inaceitável para a mentalidade do homem do século XX. Uma das principais foi a que dizia respeito a alguém que tinha sido reconhecido como pai de outrem, em decisão transitada em julgado, e depois se fazia o exame de DNA, sendo o resultado deste incompatível com o teor da decisão. Como fazer?

Começou a parecer à doutrina - também a mim - que alguma solução compatível com a dogmática processual deveria ser encontrada para resolver esse problema. Mas aprofundar este tema neste espaço desviaria a finalidade desse artigo...

O fato de se ter decidido, no STJ, em maioria apertada, que, na situação de haver duas coisas julgadas, sobre o mesmo objeto, depois de se ter escoado o prazo para a rescisória, deveria prevalecer a segunda, já demonstra escancaradamente que não se está conferindo ao instituto o devido valor.

Ao julgar os embargos de divergência interpostos no AREsp 600.811,1 a Corte Especial do STJ, com relatoria do ministro Og Fernandes, decidiu que deveria valer a segunda coisa julgada - ou melhor - aquela que por último se formou. É relevantíssimo que se diga aqui que a votação foi de 8 a 7, ou seja, houve apenas um voto de diferença. E os argumentos foram dos mais variados.2

Deve-se levar em conta que a finalidade do instituto é quase que inteiramente a de gerar segurança jurídica. A imutabilidade das decisões judiciais é um pressuposto mínimo de sua credibilidade e da credibilidade do próprio Poder Judiciário. Não se pode cogitar de o Estado, na forma de juiz, poder rever as suas decisões, depois de findo o processo. Onde estaria a sua submissão à lei e ao direito, que ele mesmo definiu, na condição de juiz?

Pode-se imaginar, por exemplo, que decisões judiciais que assegurem direitos fundamentais seriam temporárias? Por que poderia haver decisões posteriores, dispondo de forma diferente, e essas, se não fossem rescindidas, passariam a valer?

De fato, o prestígio à confiança tem se revelado cada vez mais importante no Direito Contemporâneo. No próprio processo, é oportuno que se lembre do princípio da cooperação, da relevância da boa-fé objetiva e de tantos outros institutos ou construções jurídicas que prestigiam a confiança das pessoas. 

Essa é mais uma das razões que me parecem ser extremamente relevantes e que levam à conclusão no sentido de que deve prevalecer a primeira coisa julgada, porque esta primeira coisa julgada é a que terá gerado confiança no jurisdicionado no sentido de que a sua situação estava definitivamente resolvida.

Barioni esclarece que é tecnicamente inadequado atribuir à segunda das decisões eficácia rescindente em relação à primeira, sem que haja previsão legal autorizadora. Isto porque, a interpretação sistemática do ordenamento constitucional e infraconstitucional revela que a única decisão que recebe amparo é a primeira, jamais a segunda. O transcurso do biênio rescisório não altera esta orientação.3

Em decisões recentes do STJ, acabou prevalecendo o entendimento de que se deve proteger a coisa julgada que por último se formou. Então, na conformidade do que eu já disse, poderia valer, depois de escoado o prazo para ação rescisória, uma quinta ou mesmo uma sexta coisa julgada a respeito do mesmo tema.

A proteção à última coisa julgada claramente ofende o princípio da proteção à segurança jurídica. Quando se diz que o instituto da coisa julgada deve ser protegido, deve-se ter em mente que não é o instituto em tese, mas a situação concreta em que o instituto se concretizou, aconteceu no mundo empírico, que deve ser protegida. 

É evidente que se realmente se desse importância à coisa julgada, não seria a todas as coisas julgadas que houvesse a respeito do mesmo tema! Obviamente, apenas à primeira. 

Tive oportunidade de comentar as decisões relativas aos Temas 881 e 885 da repercussão geral (RE 949. 297 e RE 955. 277) neste mesmo espaço do "migalhas". Nesta ocasião ficou decidido que, havendo coisa julgada em matéria tributária, e em se tratando de relação continuativa, sobrevindo um precedente vinculante, este passaria a ter eficácia imediata (salvo se houvesse disposição em sentido contrário, quando da realização da modulação), sem necessidade da propositura da ação rescisória. 

Observei, naquela época, que essas decisões só poderiam ser consideradas acertadas se a coisa julgada tivesse acontecido em mandado de segurança ou em ação anulatória, mas não em ação declaratória, porque a coisa julgada que se opera sobre uma sentença de procedência numa ação declaratória tem o condão de projetar os seus efeitos para o futuro, indefinidamente. Nesses casos, a rescisória seria imprescindível. 

Na decisão, resolveu-se, a meu ver acertadamente, que há integral equivalência de eficácia entre a decisão proferida no controle concentrado e a decisão proferida no controle difuso no regime da repercussão geral, pelo STF.

Tive o cuidado de dizer acima que o sistema de precedentes vinculantes tem a potencialidade de gerar um país mais próspero; depois a segurança jurídica é condição indispensável para isso. Ressalvei, contudo, que isso é verdade, em tese.

Recentemente no Tema 1.338, decidiu-se no sentido de que os precedentes vinculantes não devem ser aplicados imediatamente, embora o CPC insista mais de uma vez em que essa eficácia é imediata. Nos arts. 1.030, II; 1.040, caput, e 985, todos do CPC. 

O STF tem demorado espaços de tempo inadmissivelmente longos para se manifestar sobre a modulação. Às vezes isso só acontece se as próprias partes o provocam por meio de embargos de declaração, que no exemplo do Tema 69 (2017), foi julgado depois de quatro anos do julgamento do mérito propriamente dito. Evidentemente, se o instituto da modulação tem em vista gerar uma sociedade mais segura, não deveria ser usado para gerar tumulto, dúvidas e preocupação. Por que não dar efeito suspensivo a esses embargos?  

Evidentemente, a regra segundo a qual os embargos de declaração complementam, esclarecem e integram a decisão recorrida - de molde que decisão recorrida e embargos constituam "um único pronunciamento" - aplica-se apenas em condições normais (em "tempos de paz"), não em situações anômalas e inadmissíveis como esta (que retratam "tempos de guerra"), em que embargos de declaração, destituídos de efeito suspensivo, foram apreciados quatro anos depois! 

Portanto, não se pode dizer que a obediência ao precedente tenha sido prematura: primeiro, porque o código diz que precedentes são imediatamente eficazes; segundo, porque não se pode deixar a sociedade esperando quatro anos para saber "como" vai incidir na realidade o precedente vinculante. 

É evidente que ao longo desses quatro anos alguma coisa aconteceu. E o que aconteceu foram providências tomadas pelo beneficiário da nova decisão para aplicar concretamente o precedente. Carece integralmente de sentido, a meu ver, admitir se uso da ação rescisória para impugnar decisões - que obedeceram ao precedente! - proferidas e transitadas em julgado neste período. 

Mas o principal ataque ao instituto materializou-se mais recentemente: na AR 2.876, na "Questão de Ordem" cujo relator foi o ministro Gilmar Mendes.

As conclusões a que chegaram os ministros foram redigidas sob forma de "tese" - embora isso não tenha sido expressamente declarado. Questiona-se, porém, se essas "teses" podem legitimamente ser elaboradas antes do julgamento, funcionando como normas abstratas semelhantes a leis que antecedem as decisões concretas. 

Segundo a decisão, o §15 do art. 525 e o §8º do art. 535 do CPC devem ser interpretados conforme à CF, com efeitos ex nunc, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do § 14 do art. 525 e do § 7º do art. 535. As conclusões foram as seguintes: 

1. O STF poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo a possibilidade de que a rescisória seja manejada, bem como a extensão da retroação dos efeitos do precedente. Nada impede, por exemplo, que o tribunal, na modulação, considere a impossibilidade do manejo da ação rescisória e, portanto, a subsistência da decisão transitada em julgado. Mas, a meu ver, dentre as possíveis formas de repercussão do precedente sobre os casos em que já há coisa julgada, não se inclui a mera desconsideração desta.

2. Na ausência de manifestação expressa- como admitir que algo seja "subentendido", relativamente a temas que estão neste patamar de relevância para o país? - os efeitos retroativos de eventual decisão não excederão cinco anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deve ser movida no prazo de dois anos após a decisão que se consubstancia em precedente vinculante. Ou seja, a ação rescisória tem efeitos declaratórios, retirando do mundo a decisão por meio dela impugnada, mas esse efeito retroativo se estende apenas por cinco anos.

Parece-me acertadíssima regra no sentido de que os efeitos das ações rescisórias devem ser modulados. De fato, há casos concretos em que carece integralmente de sentido atribuir efeitos integralmente retroativos às decisões de procedência dessas ações, porque já existem situações mais do que consolidadas, criadas à luz da decisão rescindida. Entretanto, o único caminho por meio do qual essa regra poderia ser criada seria o da lei. 

Percebe-se, aqui, a equivalência absoluta da redação desta tese com a de um texto de lei. O STF está se valendo de uma técnica de redação típica do legislador, esquecendo-se de que está julgando um caso. A técnica é legislativa e o tema, a meu ver, só poderia ser disciplinado por lei. 

Além disso, acredito que seja difícil estabelecer, de antemão, regras absolutas sobre a modulação. Isto porque se trata de uma regra relativa a instituto que tem por objetivo prestigiar a confiança do jurisdicionado na orientação anterior, afastada pelo novo precedente. É evidente que a forma como se modula a eficácia de um precedente tem que ser resolvida de acordo com critérios jurídicos, mas caso a caso: porque se trata de verificar a ocorrência de fatos, de fenômenos que aconteceram no mundo empírico, e que levam o tribunal a perceber que a sociedade tinha confiança na orientação do tribunal, agora superada pela adoção de uma nova orientação. 

É forçoso que se reconheça, entretanto, que a regra fixada prestigia a coisa julgada. 

3. Se se tratar de decisão que comporte execução, o executado poderá arguir a inexigibilidade do título executivo judicial sendo a decisão do STF - em controle concentrado ou difuso - anterior ou posterior - ao trânsito em julgado da decisão exequenda. 

Essa possibilidade de alegar a inconstitucionalidade da decisão exequenda deveria, penso, ficar adstrita, pelo menos, aos casos em que o precedente tivesse sido proferido antes de se esgotar o prazo da ação rescisória.

Isto poderia, sim, em minha opinião, acontecer quando se trata de juizado especial, já que neste ambiente não existe ação rescisória. Mas, já na justiça comum, nada há, quer na doutrina, quer na jurisprudência anterior, absolutamente nada que autorize que a coisa julgada seja atropelada, ignorada, posta de lado, jogada no lixo. 

Além da evidente desconsideração daquilo que a doutrina vem construindo a respeito da relevância da coisa julgada, o que se percebe nesta decisão é que estas "teses" foram muito além daquilo que foi discutido e decidido no caso concreto.

Toda a veemência que utilizei para defender o acerto do legislador em ter criado a figura dos precedentes vinculantes, dizendo que nada mais havia de natural e harmônico com o nosso sistema em se obedecerem e respeitarem as decisões dos tribunais superiores, a respeito de casos concretos, vem caindo por terra, principalmente porque o STF tem exercido um poder extremamente semelhante ao do legislador, quando redige "teses"... vagas e abstratas, como se fossem enunciados de lei. 

Teses são bem-vindas, mas não se pode esquecer de que o que delas devem constar é apenas o que se decidiu para resolver aquele caso concreto, que passa a ser vinculante para todos os outros idênticos ou semelhantes. Devem ser redigidas a posteriori, já que serão o espelho da decisão.

Remanescem dúvidas: estes textos serão "teses"? O que é uma "Questão de Ordem"

Gostaria de ter mais motivos para continuar defendendo com unhas e dentes que os Tribunais Superiores tenham participação na construção do Direito, às vezes até como protagonistas. Venho examinando a jurisprudência dos Tribunais Superiores diuturnamente para encontrar lá elementos que justifiquem o meu entusiasmo com a adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, da polêmica figura dos precedentes vinculantes. Felizmente, tenho-me frequentemente deparado com decisões que alimentam esse meu entusiasmo, bem como com a lucidez de muitos ministros no sentido de perceber problemas sérios que reclamam imediata solução.

____________

1 STJ, EAREsp 600.811/SP (2014/0261478-0), Corte Especial, Rel. Min. OG Fernandes, j. em 04/12/2019, DJ 07/02/2020.

2 Vê-se, portanto, que diante do apertado placar, a divergência ainda se revela dentro da própria Corte Especial. 

3 BARIONI, Rodrigo. Ação rescisória e recursos para os tribunais superiores. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 100-101.

Teresa Arruda Alvim

Teresa Arruda Alvim

Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

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