IA e a escolha estratégica de Arne Slot no Liverpool
Liverpool usou IA e análise de dados na escolha estratégica de Arne Slot. Algoritmos + decisão humana guiaram a sucessão de Klopp. Um case de sucesso e governança para advogados e tech.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Atualizado às 13:58
A transição de liderança técnica no Liverpool Football Club, marcada pela saída anunciada de Jürgen Klopp ao final da temporada 2023-2024, representou um desafio estratégico monumental para a organização. Klopp, uma figura transformadora que recolocou o clube no pináculo do futebol europeu, deixou um legado de sucesso e uma identidade de jogo muito clara, baseada em intensidade, pressão alta e futebol ofensivo.
A busca por seu sucessor não poderia ser, portanto, uma mera substituição, mas sim um processo meticuloso para encontrar um perfil capaz de dar continuidade a essa filosofia, adaptando-a a um novo ciclo e a um elenco em evolução, que havia concluído a campanha da Premier League em terceiro lugar.
Neste cenário complexo, a FSG - Fenway Sports Group, proprietária do clube, reconfigurou sua estrutura de gestão desportiva, promovendo o retorno de Michael Edwards ao recém-criado cargo de CEO de futebol e nomeando Richard Hughes como diretor desportivo. Esta dupla, com um histórico de colaboração prévia, assumiu a responsabilidade central pela identificação e seleção do novo treinador principal ("Head Coach").
O processo, conforme relatado por fontes como a ESPN, foi projetado para ser excepcionalmente rigoroso e orientado por dados ("data-driven"), distinguindo-se pela sua objetividade em comparação com abordagens mais tradicionais observadas em outros grandes clubes europeus. A missão era clara: encontrar o perfil ideal através de uma combinação de análise quantitativa avançada e avaliação qualitativa criteriosa.
A escolha recaiu sobre Arne Slot, técnico holandês proveniente do Feyenoord. Esta decisão, culminar de um processo onde a inteligência artificial e a ciência de dados desempenharam um papel fundamental, provou-se extraordinariamente acertada: Slot conduziu o Liverpool à conquista do título da Premier League na temporada 2024-2025, garantindo o campeonato matematicamente com várias jornadas de antecedência em sua temporada de estreia.
O departamento de pesquisa do clube, liderado por Will Spearman, um físico com doutoramento por Harvard, foi incumbido de desenvolver e aplicar modelos analíticos para avaliar potenciais candidatos, e a nomeação de Slot, seguida pelo sucesso imediato, serve como um estudo de caso relevante sobre a aplicação de metodologias quantitativas no apoio à tomada de decisão estratégica em organizações desportivas de alta performance.
O processo não se limitou a uma análise puramente estatística, mas integrou-a numa avaliação holística. A abordagem do Liverpool procurou traduzir requisitos qualitativos - como um estilo de jogo específico, capacidade de desenvolver jovens talentos e de energizar a base de adeptos - em métricas quantificáveis que pudessem ser processadas por algoritmos.
No entanto, a interpretação desses dados e a ponderação de fatores intangíveis, como a personalidade do treinador e o seu encaixe cultural no clube, permaneceram sob a alçada dos decisores humanos, nomeadamente Edwards e Hughes. Esta simbiose entre análise algorítmica e julgamento especializado caracteriza uma abordagem moderna e sofisticada à gestão desportiva.
Métricas e modelo algorítmico
A metodologia empregue pelo Liverpool para identificar o sucessor de Klopp representou uma evolução significativa em relação às práticas anteriores, incluindo a própria contratação de Klopp em 2015. Naquela época, a análise de dados, liderada pelo antecessor de Spearman, Ian Graham, focou-se em métricas como xG - Expected Goals para demonstrar que a performance do Borussia Dortmund estava subvalorizada pelos resultados. Quase uma década depois, o arsenal analítico do clube tornou-se consideravelmente mais profundo e multifacetado, refletindo os avanços na ciência de dados aplicada ao futebol. Will Spearman e sua equipe desenvolveram algoritmos complexos capazes de avaliar treinadores numa vasta gama de dimensões.
Estes modelos não se limitaram a analisar resultados ou classificações. Foram considerados indicadores detalhados do estilo de jogo, procurando quantificar características como a intensidade defensiva, a altura da linha defensiva, a velocidade das transições e a eficácia na recuperação da posse de bola seguida de criação de perigo (recuperações em 5 segundos, expected threat pós-recuperação, etc.). Fontes como a Significance Magazine ilustraram como o Liverpool de Klopp se destacava nestas métricas específicas (apresentando altos z-scores), e a busca focou-se em treinadores cujas equipas exibissem padrões estatísticos semelhantes. Arne Slot, no Feyenoord, demonstrou consistentemente um desempenho notável nestes indicadores, superando as expectativas dadas as limitações de recursos do clube.
Além da análise tática ao nível da equipa, os algoritmos foram desenhados para avaliar o impacto do treinador no desenvolvimento individual dos jogadores. Métricas que rastreiam a evolução do desempenho de atletas sob a sua orientação foram consideradas cruciais, refletindo a importância dada pelo Liverpool à capacidade do novo técnico de potenciar o talento existente no plantel, incluindo a integração bem-sucedida de jovens da academia. A capacidade de manter os jogadores disponíveis, inferida através de históricos de lesões nas suas equipas anteriores, também foi um fator ponderado, sublinhando a importância da gestão física no futebol moderno de alta intensidade. A compatibilidade do estilo do treinador com as características do plantel atual do Liverpool foi outra dimensão chave da análise preditiva.
Relatos indicam que Slot obteve pontuações excecionalmente altas ("top of the top") nestes modelos internos, um endosso quantitativo que reforçou a sua candidatura, já considerada forte por Edwards e Hughes com base na observação e análise mais tradicional. Embora a arquitetura exata do algoritmo permaneça confidencial, presume-se o uso de técnicas de machine learning combinadas com o conhecimento futebolístico interno. Modelos como o de "pitch control" (controle de espaço), desenvolvido no clube e que quantifica a influência dos jogadores em diferentes zonas do campo, provavelmente forneceram uma base matemática para avaliar objetivamente a implementação tática e a ocupação espacial promovida pelos candidatos, sustentando tanto o recrutamento como o planeamento tático.
Aspectos técnicos: IA explicável e decisão humana
Um aspeto técnico relevante no processo de decisão do Liverpool foi a aparente adesão a princípios de XAI - Inteligência Artificial Explicável. Em vez de depender de um modelo "caixa-preta", cujos mecanismos internos são opacos, o clube parece ter privilegiado uma abordagem onde a metodologia e os resultados pudessem ser compreendidos e auditados pelos decisores. A XAI, como aponta a literatura especializada (e.g., EY), foca-se em tornar os processos algorítmicos transparentes, permitindo que os utilizadores humanos compreendam como uma recomendação ou decisão foi alcançada, fomentando assim a confiança e permitindo uma avaliação crítica dos outputs.
Esta abordagem alinha-se com a manutenção de "human-in-the-loop" (seres humanos no ciclo decisório), um pilar fundamental da estratégia do Liverpool. Michael Edwards e Richard Hughes não delegaram a decisão final ao algoritmo. Pelo contrário, utilizaram as pontuações e análises quantitativas como um poderoso input informativo, mas submeteram-no ao seu próprio escrutínio e conhecimento futebolístico. Analisaram os resultados, discutiram potenciais vieses ou limitações dos dados e equilibraram os insights estatísticos com avaliações qualitativas, como a adequação da personalidade de Slot à cultura do clube e a sua capacidade de comunicação.
A componente humana foi reforçada por diligências adicionais. Richard Hughes, por exemplo, já tinha um conhecimento profundo do trabalho de Slot devido ao seu cargo anterior no Bournemouth, tendo inclusivamente interagido com o Feyenoord em negociações de jogadores como Marcos Senesi. Hughes também realizou contactos para obter referências sobre o caráter e métodos de trabalho de Slot, falando com jogadores e outros profissionais que o conheciam. A opinião favorável de Pep Lijnders, assistente de Klopp e conhecedor do trabalho de Slot, também pesou. A reunião presencial entre Hughes e Slot na Holanda foi um passo crucial para validar as impressões e discutir a visão para o clube.
Este modelo híbrido, onde algoritmos sofisticados auxiliam o julgamento estratégico humano, é considerado uma boa prática em análise preditiva e tomada de decisão complexa. Garante que a eficiência e o alcance da análise de dados são aproveitados, ao mesmo tempo que se mantêm a supervisão ética, a consideração de fatores contextuais não facilmente quantificáveis e a responsabilização final nas mãos de especialistas humanos. A IA funciona como um assistente avançado, ampliando a capacidade de análise, mas não substitui a prerrogativa da decisão informada.
Governança algorítmica e implicações jurídicas
O caso da contratação de Slot pelo Liverpool, sendo um exemplo de decisão estratégica apoiada por análise algorítmica, intersecta-se inevitavelmente com questões de governança algorítmica e suas implicações jurídicas e éticas. Para que decisões baseadas em IA sejam consideradas legítimas e robustas, especialmente em contextos de alto impacto como o recrutamento de pessoal chave, é crucial assegurar princípios como responsabilização (accountability), transparência e equidade (fairness), incluindo a prevenção de vieses discriminatórios ilegais ou antiéticos.
Legislações como a LGPD no Brasil e propostas regulatórias internacionais sobre IA (como o AI Act da União Europeia) enfatizam a necessidade de sistemas automatizados, particularmente os de alto risco, oferecerem explicações razoáveis sobre o seu funcionamento e permitirem auditoria. O uso de perfilamento algorítmico que possa violar direitos fundamentais exige mecanismos de controlo e recurso. Embora a contratação de um treinador de futebol possa não se enquadrar diretamente nas categorias de maior risco regulatório, os princípios subjacentes de boa governança são aplicáveis, especialmente no que concerne à transparência do processo decisório e à prevenção de vieses.
O risco de viés em algoritmos de recrutamento é um desafio bem documentado. Sistemas treinados com dados históricos podem inadvertidamente aprender e perpetuar desigualdades existentes. O exemplo clássico é o da ferramenta experimental de recrutamento da Amazon, que penalizava candidaturas femininas por ter sido treinada predominantemente com currículos masculinos. Outro caso emblemático é o do sistema COMPAS, utilizado no sistema judicial dos EUA para prever risco de reincidência criminal, que demonstrou enviesamento racial, classificando arguidos negros como de "alto risco" com uma frequência significativamente maior do que arguidos brancos em condições semelhantes, conforme exposto pela ProPublica. A falta de transparência nestes sistemas dificulta a contestação dos seus resultados.
Neste contexto, a abordagem do Liverpool parece ter sido estruturada de forma a mitigar estes riscos. Ao não depender exclusivamente do algoritmo e ao sujeitar as suas recomendações à interpretação e validação por especialistas humanos (Edwards e Hughes), o clube introduziu um mecanismo de controlo fundamental. A clareza sobre os critérios de avaliação (estilo de jogo, desenvolvimento de jogadores, etc.), mesmo que as ponderações exatas do algoritmo não sejam públicas, e a integração de avaliações qualitativas ajudam a garantir que a decisão final é fundamentada numa análise multifacetada e não apenas numa pontuação algorítmica potencialmente opaca ou enviesada. Esta supervisão humana é essencial para a responsabilização e para assegurar que fatores subjetivos relevantes não são negligenciados.
Comparativos e casos análogos
A prática de utilizar análise de dados e algoritmos para apoiar decisões de recrutamento e avaliação de desempenho não é exclusiva do futebol, encontrando paralelos em diversas áreas corporativas e institucionais. No recrutamento empresarial automatizado, muitas organizações empregam sistemas baseados em IA para triagem inicial de currículos ou até para fases mais avançadas de seleção. Contudo, a experiência tem demonstrado os perigos inerentes, como a potencial criação de discriminação indireta se os algoritmos filtrarem candidatos com base em palavras-chave correlacionadas com grupos demográficos específicos ou se replicarem padrões de contratação históricos enviesados, como alertado por pesquisas e relatórios (e.g., The Regulatory Review).
No sistema de justiça criminal, a utilização de software de avaliação de risco, como o já mencionado COMPAS, para informar decisões sobre fiança, liberdade condicional ou sentença, gerou controvérsia significativa. O caso exposto pela ProPublica sobre o viés racial do COMPAS ilustra vividamente como algoritmos, mesmo que concebidos com intenções neutras, podem produzir resultados sistematicamente desiguais se não forem cuidadosamente desenhados, validados e monitorizados quanto à equidade. A falta de transparência e a dificuldade em auditar estes sistemas levantam sérias questões sobre devido processo e justiça.
No âmbito da conformidade empresarial (compliance), ferramentas de análise preditiva baseadas em IA estão a emergir para detetar potenciais fraudes, lavagem de dinheiro ou incumprimento de regulamentos. Estes sistemas podem analisar grandes volumes de dados para identificar anomalias ou padrões suspeitos. Embora potencialmente úteis para gerir riscos, a sua implementação também exige forte supervisão humana. Alertas automatizados devem ser investigados por especialistas para evitar falsos positivos e garantir que as ações tomadas estão em conformidade com as normativas aplicáveis, como as leis anticorrupção ou de proteção de dados.
Em todos estes domínios - RH, justiça, compliance e desporto -, a lição recorrente é a mesma: os algoritmos podem ser ferramentas poderosas para aumentar a eficiência, identificar padrões e apoiar a decisão, mas a sua implementação exige uma governança robusta. A ausência de transparência, a falta de validação contínua contra vieses e a delegação excessiva de autoridade a sistemas automatizados podem levar a resultados indesejados, violações de direitos e falhas regulatórias. O caso do Liverpool, com a sua abordagem mista, parece refletir uma compreensão destes desafios, optando por usar a tecnologia como suporte à decisão especializada, em vez de substituto dela.
Práticas responsáveis e aprendizado
O processo que culminou na contratação de Arne Slot pelo Liverpool serve como um exemplo ilustrativo de práticas responsáveis na integração da inteligência artificial e da análise de dados no apoio à decisão estratégica. O clube demonstrou uma clara compreensão de que os dados, por mais sofisticados que sejam os modelos, devem fornecer subsídios objetivos e insights, mas não devem suplantar a autonomia, a experiência e a intuição dos decisores humanos qualificados. A citação da ESPN, "eles sabem o que querem de um técnico e... tentaram descobrir como mensurar isso", encapsula a essência desta abordagem: partir de uma necessidade estratégica clara e usar a ciência de dados para operacionalizá-la e informá-la.
A recomendação gerada pelo algoritmo, que colocou Slot no topo da lista, funcionou como uma poderosa orientação quantitativa, validando e reforçando a sua candidatura. No entanto, a decisão final foi tomada pela liderança de futebol (Edwards e Hughes), que ponderou essa informação juntamente com uma série de fatores qualitativos essenciais: o estilo pessoal de Slot, a sua capacidade de relacionamento com jogadores e staff, a sua adequação à cultura do clube e, potencialmente, até a perceção da base de adeptos. Esta combinação de ciência de dados rigorosa com experiência profissional e julgamento estratégico é frequentemente apontada como o modelo ideal em governança algorítmica.
Manter o juízo humano no centro do processo decisório permitiu ao Liverpool garantir que critérios éticos, culturais e estratégicos de longo prazo fossem devidamente considerados, para além das métricas de desempenho puras. O algoritmo atuou como um assistente, ampliando o alcance da análise e fornecendo uma base objetiva para comparação, mas não como o árbitro final. Esta abordagem mitiga os riscos associados a uma dependência excessiva de sistemas automatizados, como a replicação de vieses ocultos nos dados ou a incapacidade de avaliar fatores contextuais complexos.
Em síntese, a experiência do Liverpool na sucessão de Klopp reforça uma lição fundamental para organizações em qualquer setor que procurem alavancar o poder da IA: a tecnologia deve ser utilizada para enriquecer a análise decisória, aumentar a precisão dos insights e explorar cenários, mas sempre sob supervisão humana e dentro de um quadro de responsabilidade claro. A inteligência artificial é mais eficaz quando potência a inteligência humana, não quando a substitui, especialmente em decisões de elevado impacto estratégico e humano, como a escolha de um líder para guiar o futuro de uma instituição icónica como o Liverpool FC.


