MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Reconstitucionalismo e o habeas corpus coletivo

Reconstitucionalismo e o habeas corpus coletivo

O presente estudo examina a intersecção entre o reconstitucionalismo brasileiro e a emergência do habeas corpus coletivo como instrumento processual contemporâneo de proteção de direitos fundamentais.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Atualizado às 09:48

O constitucionalismo, enquanto movimento intelectual, político e jurídico de valorização da Constituição como norma fundamental do Estado, percorreu uma trajetória histórica significativa até chegar à sua configuração atual. Em sentido amplo, consiste em um movimento que valoriza a Constituição de um Estado, enquanto que, em sentido estrito, refere-se à garantia de direitos e à limitação do poder estatal. Essa concepção teórica apresenta diferentes fases evolutivas que correspondem a distintos momentos históricos e diferentes formas de compreender a relação entre o Estado e os cidadãos, bem como a proteção de direitos fundamentais. 

O constitucionalismo antigo, que se estendeu da antiguidade até o fim do século XVIII, caracterizava-se pela inexistência de leis escritas e pela predominância de constituições costumeiras.

Neste período, já existia, mesmo que timidamente, a ideia de limitações ao poder político, como se observa no Estado teocrático dos hebreus e na democracia grega. Essas primeiras manifestações constitucionais não possuíam as características formais das constituições modernas, mas já indicavam a busca por mecanismos de controle do poder político. 

Com o fim do século XVIII, emerge o constitucionalismo moderno, fortemente influenciado pelas revoluções liberais, que se estendeu até o término da Segunda Guerra Mundial. Este período caracterizou-se pelo surgimento das primeiras constituições formais e escritas, buscando romper com o arbítrio típico do Estado absolutista para implantar um novo modelo de Estado, o Estado liberal, com poderes limitados pela separação dos poderes e por um rol de Direitos e garantias fundamentais mínimos. As primeiras experiências constitucionais modernas materializam-se nas Constituições dos Estados Unidos da América de 1787 e da França de 1791, que concretizaram os ideais iluministas de limitação do poder estatal e proteção das liberdades individuais. 

O constitucionalismo moderno subdivide-se em constitucionalismo clássico (liberal) e social. O constitucionalismo clássico americano, datado de 1787, caracterizou-se por ser a primeira constituição escrita, estabelecendo as primeiras formulações de supremacia, rigidez e formalismo constitucional, além de formular o controle judicial de constitucionalidade. Este modelo consagrou a separação de poderes (teoria de freios e contrapesos), a forma federativa de Estado e o sistema presidencialista, sendo uma constituição de caráter sintético. 

Lado outro, o constitucionalismo clássico francês, de 1789, surgiu em contraposição ao absolutismo reinante e adotou um modelo prolixo ou analítico, diferentemente da constituição americana. Embora desprovido de tanta força normativa quanto o modelo americano, vigorando nele a supremacia do parlamento, o constitucionalismo francês distinguiu poder originário e derivado, consagrando um rol de direitos fundamentais inspirados no ideal de liberdade e reconhecendo o povo como titular legítimo do poder. 

Com a crise do Estado liberal e a necessidade de uma atuação estatal mais positiva, emerge o constitucionalismo social, que se estendeu do fim da Primeira Guerra Mundial até a Segunda Guerra Mundial. Este período caracterizou-se pela ampliação dos direitos fundamentais, o surgimento das garantias institucionais e a crescente intervenção do Estado na ordem econômica e social, buscando corrigir as desigualdades geradas pelo liberalismo clássico. 

O Brasil possui uma rica tradição constitucional, iniciada com a Constituição de 1824 e que se desdobra em sete textos constitucionais ao longo de sua história.

No contexto brasileiro, o constitucionalismo contemporâneo, que podemos denominar também como reconstitucionalismo, começa a florescer a partir da Constituição Federal de 1934 - a terceira Constituição Brasileira. Este momento marca a transição significativa na forma de compreender o papel da Constituição na organização do Estado e na proteção dos direitos fundamentais. 

O reconstitucionalismo brasileiro representa uma revalorização e reinterpretação dos princípios constitucionais clássicos à luz das demandas contemporâneas por efetividade dos direitos fundamentais e democratização do acesso à justiça. Não se trata apenas de uma nova fase do constitucionalismo, mas de uma transformação qualitativa na forma de compreender e aplicar as normas constitucionais, buscando maior eficácia e efetividade na proteção dos direitos. 

A Constituição Federal de 1988, conhecida como "Constituição Cidadã", representa o ápice deste processo de reconstitucionalização do ordenamento jurídico brasileiro, pois houve a consolidação do amplo rol de direitos fundamentais, estabeleceu garantias processuais para sua efetivação e fortaleceu o papel do Poder Judiciário, especialmente do STF, como guardião da Constituição. Esta nova configuração constitucional permitiu o surgimento e desenvolvimento de instrumentos jurídicos mais efetivos para a proteção dos direitos fundamentais, entre os quais se destaca o habeas corpus. O habeas corpus é considerado um dos mais antigos e importantes instrumentos de proteção da liberdade individual. Surgido na Inglaterra e aperfeiçoado ao longo do tempo, este remédio constitucional espalhou-se por códigos criminais e Constituições ao redor do mundo.

No Brasil, o habeas corpus fez parte da Constituição de 1891 e desde então é matéria constitucional, estando atualmente previsto na Constituição de 1988, art. 5º, LXVIII e também no art. 142, § 2º. 

De acordo com o doutrinador Guilherme de Souza Nucci, o habeas corpus é "uma ação constitucional destinada a coibir qualquer ilegalidade ou abuso de poder voltado à constrição da liberdade de ir, vir e ficar, seja na esfera penal, seja na cível". Esta definição evidencia a natureza jurídica do habeas corpus como uma ação constitucional de proteção da liberdade de locomoção, configurando-se como remédio processual célere e eficaz para combater ilegalidades ou abusos de poder que restrinjam a liberdade individual. 

No Código de Processo Penal brasileiro, o habeas corpus encontra sua regulação nos artigos 647 a 667. Esta regulamentação infraconstitucional estabelece os procedimentos e requisitos para impetração do habeas corpus, consolidando-o como instrumento acessível e de trâmite simplificado, características essenciais para sua efetividade na proteção da liberdade individual. 

Tradicionalmente, o habeas corpus foi concebido como instrumento de proteção individual, destinado a tutelar a liberdade de locomoção de uma pessoa específica. No entanto, a evolução do constitucionalismo e a crescente preocupação com a efetividade dos direitos fundamentais levaram a uma reinterpretação deste instituto, permitindo sua aplicação para a proteção de direitos coletivos. 

O habeas corpus coletivo emerge como uma inovação jurídica no contexto do reconstitucionalismo brasileiro, representando uma modalidade de habeas corpus que, em vez de ser individual, aplica-se a um grupo ou coletividade. Este instituto jurídico processual, mesmo não estando expressamente previsto no ordenamento pátrio, está sendo cada vez mais utilizado e pode ser uma ferramenta processual ágil e econômica para a proteção da liberdade de grupos de pessoas que se encontram em situação similar de ilegalidade ou abuso de poder. O reconhecimento do habeas corpus coletivo pelo STF representa uma mudança paradigmática nas decisões em controle difuso de constitucionalidade. Este reconhecimento ocorreu em um caso emblemático, no qual o STF concedeu a ordem em favor de todas as mulheres grávidas e mães de crianças presas cautelarmente, demonstrando a possibilidade de utilização deste instrumento para a proteção de grupos vulneráveis específicos. 

A legitimação do habeas corpus coletivo no Brasil não ocorreu por meio de alteração legislativa, mas através da interpretação evolutiva realizada pelo STF, que reconheceu a necessidade de adaptar os instrumentos processuais tradicionais às demandas contemporâneas por efetividade dos direitos fundamentais. Esta interpretação evolutiva baseia-se na compreensão de que o direito processual deve servir como instrumento para a efetivação dos direitos materiais, não um obstáculo para sua concretização. 

A admissibilidade do habeas corpus coletivo representa importante avanço na democratização do processo constitucional brasileiro, permitindo que grupos vulneráveis, cujos direitos de liberdade frequentemente são violados de forma sistemática, tenham acesso a um instrumento processual adequado para a proteção de seus direitos. Esta democratização do acesso à justiça constitucional é uma característica fundamental do reconstitucionalismo brasileiro, que busca não apenas a formalização dos direitos, mas sua efetiva concretização. 

O habeas corpus coletivo promove uma economia processual significativa, evitando a multiplicação de processos individuais com o mesmo objeto, o que sobrecarregaria ainda mais o já congestionado sistema judiciário brasileiro.

Além disso, este instrumento permite uma resposta judicial mais uniforme e coerente para situações similares, evitando decisões contraditórias e promovendo a segurança jurídica. 

A utilização do habeas corpus coletivo também representa uma forma de controle difuso de constitucionalidade com efeitos que transcendem as partes diretamente envolvidas no processo, aproximando-se, neste aspecto, do controle concentrado de constitucionalidade. Esta relativização do efeito inter partes no controle difuso de constitucionalidade é uma tendência do reconstitucionalismo brasileiro, que busca maximizar a efetividade das decisões judiciais na proteção dos direitos fundamentais. 

O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade caracteriza-se por ser misto, combinando elementos do controle difuso (concreto) e do controle concentrado (abstrato). Tradicionalmente, as decisões proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade produziam apenas efeitos inter partes, ou seja, limitavam-se às partes envolvidas no processo. No entanto, o reconstitucionalismo brasileiro tem promovido uma relativização deste efeito, permitindo que decisões proferidas em controle difuso produzam efeitos mais amplos, aproximando-se dos efeitos tipicamente atribuídos ao controle concentrado de constitucionalidade. Esta relativização do efeito inter partes no controle difuso de constitucionalidade manifesta-se de forma evidente na admissibilidade do habeas corpus coletivo pelo STF. Ao conceder uma ordem de habeas corpus em favor de todas as mulheres grávidas e mães de crianças presas cautelarmente, o STF atribuiu à sua decisão um efeito que transcende as partes diretamente envolvidas no processo, beneficiando um grupo indeterminado de pessoas que se encontram na mesma situação jurídica. 

A abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, fenômeno intimamente relacionado à relativização do efeito inter partes, consiste na atribuição de características típicas do controle abstrato às decisões proferidas em sede de controle concreto. Este fenômeno representa uma evolução do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, buscando maior efetividade e coerência das decisões judiciais. 

O habeas corpus coletivo tem se revelado como instrumento particularmente útil para proteção de grupos vulneráveis, cujos direitos de liberdade frequentemente são violados de forma sistemática. O caso emblemático da concessão de habeas corpus coletivo em favor de mulheres grávidas e mães de crianças presas cautelarmente demonstra o potencial deste instrumento para a proteção de grupos específicos que compartilham uma situação jurídica similar. Tal modalidade de habeas corpus permite uma resposta judicial mais efetiva para violações sistemáticas de direitos, que afetam não apenas indivíduos isolados, mas grupos inteiros.  

No contexto do sistema prisional brasileiro, marcado por graves violações de direitos humanos e superlotação crônica, o habeas corpus coletivo representa um importante avanço na proteção dos direitos fundamentais dos encarcerados. A utilização do habeas corpus coletivo para a proteção de grupos vulneráveis também contribui para a visibilidade de violações de direitos que, muitas vezes, permanecem invisíveis quando tratadas apenas individualmente. Ao reconhecer a dimensão coletiva destas violações, o Judiciário pode formular respostas mais adequadas e estruturais para problemas sistêmicos. 

Do ponto de vista teórico, o habeas corpus coletivo representa uma reinterpretação significativa do instituto tradicional do habeas corpus, ampliando seu escopo de proteção individual para abranger também direitos coletivos. Esta reinterpretação está alinhada com a evolução do constitucionalismo brasileiro, que cada vez mais reconhece a dimensão coletiva dos direitos fundamentais e a necessidade de instrumentos processuais adequados para sua proteção. 

A legitimação do habeas corpus coletivo também implica uma reformulação da teoria geral do processo, tradicionalmente centrada na proteção de direitos individuais. Esta reformulação reconhece a insuficiência dos instrumentos processuais tradicionais para a proteção de direitos coletivos e difusos, propondo novas formas de acesso à justiça que sejam mais adequadas às demandas contemporâneas.

Do ponto de vista prático, o habeas corpus coletivo promove uma economia processual significativa, evitando a multiplicação de processos individuais com o mesmo objeto. Esta economia processual é particularmente relevante no contexto do sistema judiciário brasileiro, caracterizado pela morosidade e pelo elevado número de processos pendentes de julgamento. 

Além disso, o habeas corpus coletivo permite uma resposta judicial mais uniforme e coerente para situações similares, evitando decisões contraditórias e promovendo a segurança jurídica. Esta uniformidade é essencial para a efetividade do controle de constitucionalidade e para a própria legitimidade do Poder Judiciário como guardião da Constituição. 

O habeas corpus coletivo representa uma importante inovação jurídica no contexto do reconstitucionalismo brasileiro, alinhando-se com a tendência de democratização do acesso à justiça constitucional e de busca por maior efetividade na proteção dos direitos fundamentais. Sua legitimação pelo STF, mesmo sem previsão expressa no ordenamento jurídico, demonstra a capacidade de adaptação dos instrumentos processuais tradicionais às demandas contemporâneas por proteção de direitos coletivos. 

A utilização crescente do habeas corpus coletivo para a proteção de grupos vulneráveis sugere a necessidade de sua inclusão formal no ordenamento jurídico brasileiro. Esta inclusão formal contribuiria para a segurança jurídica e para a consolidação deste importante instrumento processual. Provável que o habeas corpus coletivo continue a desempenhar papel relevante na proteção dos direitos fundamentais no Brasil, notadamente em um contexto marcado por violações sistemáticas de direitos que afetam grupos específicos. Sua evolução deverá ser acompanhada de uma reflexão teórica aprofundada sobre os limites e possibilidades deste instrumento, bem como sobre sua adequação aos princípios constitucionais brasileiros. 

O reconstitucionalismo brasileiro, ao legitimar o habeas corpus coletivo, demonstra sua capacidade de reinterpretar e adaptar os institutos jurídicos tradicionais às demandas contemporâneas por efetividade dos direitos fundamentais. Esta adaptação é essencial para que o Direito permaneça como instrumento eficaz para proteção da dignidade humana e para construção de uma sociedade mais justa e igualitária. 

Paulo Cosmo de Oliveira Júnior

Paulo Cosmo de Oliveira Júnior

Bacharel em Direito e Advogado, com especialização em Direito Público.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca