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Precatórios e colapso fiscal - Entre o dever de pagar e a tentação de adiar

Risco fiscal com precatórios em 2027 exige soluções estruturais que conciliem responsabilidade orçamentária e respeito à coisa julgada, evitando nova crise de confiança institucional.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Atualizado às 10:45

A arquitetura financeira do Estado brasileiro se aproxima de um ponto de inflexão crítico. A partir de 2027, finda o regime excepcional inaugurado pela EC 113/21-que impôs limitação, por contagem decrescente, ao dispêndio anual com precatórios-e retorna a imperativa obrigação de quitação integral dessas dívidas dentro dos limites estabelecidos pelo novo arcabouço fiscal. A combinação entre compressão orçamentária estrutural e um passivo judicial crescente ameaça, de forma concomitante, a solvabilidade macroeconômica e a credibilidade das instituições jurídicas.

Os dados projetados na lei de diretrizes orçamentárias são deveras eloquentes. Para 2027, estimam-se R$ 124,3 bilhões em precatórios; em 2028, R$ 132 bilhões; e, em 2029, R$ 144 bilhões. No primeiro desses exercícios, após a alocação desse montante, restarão apenas R$ 122,2 bilhões para despesas discricionárias - dos quais R$ 56,5 bilhões já se encontram vinculados sob a rubrica de emendas impositivas. O país se encaminhará, portanto, para uma situação de asfixia orçamentária, na qual o espaço fiscal efetivo para saúde, educação, infraestrutura e investimento público se tornará residual, com reflexos imediatos sobre a percepção de risco soberano e o custo médio da dívida.

O precedente legislativo que estabeleceu esse cenário de risco iminente foi a mencionada EC 113/21, alcunhada de "PEC dos Precatórios". Ao postergar pagamentos para exercícios futuros - economizando cerca de R$ 90 bilhões em 2022 - o constituinte derivado obteve alívio fiscal de curto prazo, mas ao custo de macular a força normativa da coisa julgada e de premiar o inadimplemento como solução de conveniência. Tal manobra sinalizou, para credores e analistas, que direitos reconhecidos pelo Poder Judiciário podem ser reconfigurados por maiorias circunstanciais, corroendo a segurança jurídica que sustenta o ambiente de negócios.

Se o expediente já se mostrava questionável em 2021, o panorama que se avizinha para 2027 é ainda mais grave. A rigidez orçamentária terá comprometido cerca de 94% das despesas primárias, e a LDO de 2026 antecipa um passivo judicial potencial superior a R$ 2,6 trilhões - aproximadamente um quarto do PIB. A convergência de passivos pressionando o teto e receitas pouco elásticas transforma o risco de uma "PEC dos Precatórios 2.0" em uma possibilidade concreta, com efeitos deletérios sobre a confiança pública e sobre o próprio pacto federativo.

Reiterar a postergação ou o contingenciamento de precatórios seria renegar não apenas o princípio da separação de Poderes, mas também a cláusula pétrea da coisa julgada. A dívida pública judicial é uma obrigação de Estado, não passível de relativização oportunista sem graves consequências reputacionais. A cada adiamento, intensifica-se a percepção de que o Poder Executivo Federal administra suas finanças às expensas de credores vulneráveis, sob o pretexto de urgências fiscais recorrentes - uma prática incompatível com a boa-fé que deve nortear a atuação estatal. É crucial ressaltar que a confiança na capacidade do Estado de honrar seus compromissos é fundamental para a estabilidade econômica e social.

Diante desse impasse, torna-se imperativo conceber soluções sustentáveis que respeitem a integridade das decisões judiciais sem comprometer a governabilidade macrofiscal. A criação de fundos garantidores, alimentados por receitas extraordinárias ou participações acionárias da União; a securitização condicionada de parcelas vincendas; e a vinculação de percentuais fixos de receitas correntes para um fundo de equalização podem compor um conjunto de instrumentos de engenharia financeira menos traumáticos do que novas emendas constitucionais ad hoc. Em paralelo, o aprimoramento da atuação da advocacia pública e o uso criterioso de mecanismos de resolução consensual de litígios podem conter o fluxo de novos passivos. Essas medidas, se implementadas de forma eficaz, podem mitigar os riscos e preservar a credibilidade do Estado.

Precatórios não são meras rubricas contábeis: representam a materialização jurisdicional de direitos suprimidos. Desconsiderar-lhes a precedência compromete a legitimidade do Estado, afasta o investimento produtivo e alimenta a descrença social na eficácia das instituições. A convergência entre responsabilidade fiscal e respeito à ordem jurídica exige, portanto, uma solução estrutural antes que o relógio de 2027 marque a hora do colapso. A busca por essa solução é um imperativo para a manutenção da estabilidade e do desenvolvimento do país.

Nicole Dubut Cruz

Nicole Dubut Cruz

Mestre em Direito Internacional pela Miami University of Science and Technology, especialista em Direito Tributário, fundadora do Dubut Advocacia e CEO do Jusneural.

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