Dolo e imprudência: Para além das ficções jurídicas
Distinguir dolo de imprudência exige critério técnico, não ficções dogmáticas. Neste artigo defendo a extinção do dolo eventual e a reconstrução normativa a partir da teoria significativa.
segunda-feira, 12 de maio de 2025
Atualizado às 13:54
As confusões entre dolo e imprudência têm custado caro à justiça penal. Parte do problema está na persistência de conceitos ambíguos, que, ao invés de orientar, confundem. Em minhas obras Sobre a Estrutura do Dolo e da Imprudência e Fundamentos de la Teoría Significativa de la Imputación, argumento que tais categorias precisam ser reconstruídas com base em critérios técnico-constitucionais.
O dolo pressupõe um agir orientado por um significado: quem age dolosamente representa a realização do tipo penal. Não se trata apenas de saber ou prever o resultado, mas de que o resultado faça parte do sentido da ação. Já a imprudência, especialmente a consciente, revela um agir que aceita, ignora ou não aceita o risco, isto é, a previsibilidade do resultado, mas sem desejar esse resultado típico previsto. A diferença não é subjetiva, mas linguística e normativa.
A doutrina tradicional, ao introduzir o dolo eventual como uma espécie de transição entre dolo e culpa, criou uma zona cinzenta que mais confunde do que esclarece. Essa ficção, como demonstro nas referidas obras, prejudica a segurança jurídica e abre caminho para decisões arbitrárias. A consequência prática é visível: condutas que deveriam ser enquadradas como imprudência consciente acabam sendo indevidamente tratadas como dolosas, com penas desproporcionais e efeitos devastadores sobre os acusados e a sociedade.
O caso da Boate Kiss, por exemplo, é emblemático. A tentativa de imputar dolo eventual a figuras públicas e responsáveis técnicos demonstrou como a falta de critérios objetivos transforma o dolo em um instrumento político de imputação. O mesmo se verificou em Mariana e Brumadinho, tragédias em que a ausência de uma teoria sólida de imputação gerou debates estéreis sobre a intenção, desviando o foco da análise normativa para a especulação psicológica.
Esse panorama revela a fragilidade da dogmática penal tradicional, ainda dependente de categorias psicologizantes e incompatíveis com o modelo normativo exigido pela CF/88. A substituição dessas ficções por uma análise fundada na estrutura significativa da ação é condição necessária para restabelecer a coerência do sistema penal com os princípios do Estado Democrático de Direito.
A teoria significativa da imputação rompe com esse modelo. Ao propor a classificação objetiva da imprudência consciente em três graus ou níveis - gravíssima, grave e leve -, sustenta uma análise técnica, orientada pela linguagem, pelo contexto e pelos sentidos atribuídos às ações. Isso assegura maior precisão normativa e compatibilidade com o princípio da legalidade. Ao agir de forma imprudente consciente, o agente não afirma o resultado, todavia, negligencia deveres de cuidado que podem - e devem - ser graduados conforme o risco assumido.
Essa gradação permite ao juiz avaliar o grau de reprovabilidade da conduta com base em critérios verificáveis. A imprudência consciente gravíssima, por exemplo, exige resposta penal severa, mas distinta daquela reservada às ações dolosas. A imprudência consciente grave, por sua vez, justifica uma sanção penal intermediária, proporcional à violação dos deveres de cuidado assumidos, sendo caracterizada por uma indiferença concreta diante do risco previsto, e para com o bem jurídico protegido. Já a imprudência consciente leve exige resposta penal branda, compatível com o risco assumido, mas ainda no âmbito do Direito Penal, por se tratar de uma imprudência consciente.
Esse modelo rompe com a lógica binária da dogmática tradicional e oferece uma solução compatível com os direitos fundamentais. Ele reforça a função garantidora da estrutura típica e evita a expansão desmedida da imputação dolosa. Além disso, fornece ao julgador instrumentos objetivos para distinguir entre diferentes níveis de imprudência, sem recorrer a presunções ou à manipulação conceitual do dolo.
A distinção entre dolo e imprudência, portanto, não pode continuar refém de categorias psicológicas ou presunções de vontade. Deve basear-se na significação da conduta e no modo como o agente se posiciona linguisticamente diante do resultado. Os chamados "caracteres significativos" e "quesitos significativos", que desenvolvo na teoria, são ferramentas técnicas que permitem essa avaliação com precisão e transparência. Por exemplo, o primeiro quesito exige a demonstração da vontade de obter o resultado; sua ausência exige que se analisem os demais caracteres para definir se a conduta é imprudente consciente, e em que grau.
O modelo proposto também permite harmonizar o Direito Penal com outros ramos do Direito, como o civil e o administrativo, ao delimitar com clareza o que é penalmente imputável e o que deve ser tratado sob outras formas de responsabilidade. Essa distinção não é apenas teórica: tem implicações práticas na dosimetria da pena, na admissibilidade de ação penal e na delimitação do injusto penal. Ela permite que o sistema funcione com racionalidade, sem recorrer à abstração ou ao simbolismo punitivo.
Só assim o Direito Penal deixará de punir intenções presumidas para julgar ações significativas. Essa é a base da teoria significativa da imputação, que proponho como alternativa técnico-constitucional aos modelos tradicionais - uma teoria que rejeita ficções, respeita a linguagem e se compromete com a CF/88.


