Autoblindagem parlamentar X erosão da jurisdição penal do STF
Análise da autoblindagem parlamentar e seus efeitos na jurisdição penal do STF, revelando um conflito institucional e riscos à democracia.
terça-feira, 13 de maio de 2025
Atualizado às 10:23
1. Imunidade parlamentar processual: Limites constitucionais e jurisprudenciais
A emenda constitucional 35/2001 reformulou significativamente o regime das imunidades parlamentares, conferindo à Casa Legislativa o poder de interromper a ação penal apenas quando a acusação se referir a crime ocorrido após a diplomação do parlamentar. Trata-se de uma prerrogativa de natureza funcional, não pessoal, cuja aplicação é estritamente limitada
A Constituição, em seu art. 53, §3º, dispõe:
"Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o STF notificará a Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, interromper o andamento da ação."
A jurisprudência do STF é clara: a SAP não alcança crimes anteriores à diplomação e tampouco pode ser ampliada a corréus sem mandato parlamentar. Como destacou o STF no AI 769.867 AgR, rel. min. Cármen Lúcia1: "A norma inscrita no atual §3º do art. 53 da Constituição aplica-se somente a crimes ocorridos após a diplomação." Da mesma forma, no Inq 1603, rel. min. Marco Aurélio2, foi expressamente determinado o desmembramento da ação penal para excluir corréus não parlamentares, reconhecendo que a suspensão da prescrição só se aplica ao parlamentar com foro.
A súmula 245 do STF reforça essa interpretação, estabelecendo que "a imunidade parlamentar não se estende ao co-réu sem essa prerrogativa". O entendimento é pacífico: o benefício da interrupção não pode ser usado como instrumento de proteção coletiva, nem como pretexto para suspender ação penal contra réus sem mandato.
2. A interrupção parlamentar como ato de autoproteção institucional
A suspensão de ação penal aprovada pela Câmara, no caso de Alexandre Ramagem, foi conduzida de maneira sumária e sem previsão regimental, com inclusão repentina na pauta, proibição ao debate e aprovação por rito fechado. Tal procedimento contraria os princípios do devido processo legislativo e compromete a legitimidade democrática do ato.
Mais grave ainda é a tentativa de estender os efeitos a corréus como Jair Bolsonaro, militares e ex-ministros que não possuem prerrogativa de foro. Essa ampliação inconstitucional revela-se uma verdadeira manobra de autoproteção institucional, que busca impedir o curso regular da jurisdição penal.
A tentativa de justificar a extensão da SAP com base na alegada permanência dos crimes é falaciosa. A narrativa de que crimes como organização criminosa ou golpe de Estado teriam natureza permanente e, portanto, se estenderiam no tempo até o pós-diplomação ignora o fato de que a caracterização típica e o vínculo subjetivo com a ação dolosa se estruturam antes do início formal do mandato. Como bem alertado por ministros do STF, o marco da diplomação delimita a incidência da imunidade processual. A interpretação extensiva, sob a justificativa de continuidade delitiva, colide com o princípio da legalidade estrita e da responsabilidade penal individual.
3. A separação de poderes e o conflito institucional deliberado
A medida da Câmara representa um ataque frontal à separação de poderes. Ao tentar sobrepor-se à jurisdição do STF - que já recebeu a denúncia, declarou sua competência e delimitou os marcos temporais e subjetivos da aplicação da imunidade - o Legislativo promove um conflito institucional deliberado.
O STF tem reiteradamente afirmado a impossibilidade de interferência parlamentar no curso de ações penais contra crimes anteriores à diplomação. Ao promover essa interrupção genérica, a Câmara atua fora de seu campo de competências constitucionais, extrapolando sua função política para invadir o núcleo da função jurisdicional.
4. Perspectivas: O STF diante da tentativa de subversão da jurisdição penal
A expectativa é que o STF:
- Declare a inconstitucionalidade da SAP em relação aos corréus não parlamentares, especialmente Jair Bolsonaro e os demais integrantes do "núcleo 1" da petição 12.100;
- Restrinja os efeitos da suspensão apenas aos crimes supostamente cometidos após a diplomação de Ramagem, como o dano qualificado e a deterioração do patrimônio público, vinculados aos atos do dia 8/1/23;
- Reafirme os limites materiais e subjetivos da imunidade processual, sustentando sua jurisprudência histórica pós-EC 35/2001 e os fundamentos da súmula 245.
5. Considerações finais: Entre a representação popular e o privilégio pessoal
A tentativa de proteção parlamentar em benefício de terceiros e de crimes alheios ao mandato atual fere os pilares do Estado Democrático de Direito. A imunidade parlamentar não é instrumento de impunidade, mas sim uma garantia da função representativa. O uso distorcido dessa prerrogativa transforma a Câmara dos Deputados em escudo contra a responsabilização penal de atores que conspiraram contra a ordem democrática. Ao STF caberá a função de reafirmar os limites constitucionais, resguardando a integridade da separação de poderes e a credibilidade da jurisdição penal no enfrentamento de ameaças institucionais graves.
Este é, portanto, um momento crítico para a democracia brasileira. O que está em jogo não é apenas a legalidade da sustação de andamento de ação penal, mas a própria autonomia do Judiciário e a responsabilidade penal por crimes contra o Estado de Direito.
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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AC 700 AgR, rel. min. Ayres Britto, j. 19-4-2005, 1ª T, DJ de 7-10-2005.] AI 769.867 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-2-2011, 1ª T, DJE de 24-3-2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=620956 Acesso em 9/5/25.
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão no Inquérito nº 1603/GO. Relator Min. Marco Aurélio. Publicação: 29/11/2000. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho77524/false Acesso em 9/5/25.
Gabriel Rangel
Doutorando em Direito (UFF), Mestre em Direito (UNESA), Pós-graduado em Direito Público e Privado (EMERJ), e Eleitoral (IDP), advogado público e privado. e-mail: [email protected]


