Há 40 anos Heleno Fragoso nos deixava órfão
Com a morte de Heleno Fragoso há 40 anos a ciência penal ficou mais pobre. Fragoso deixou órfão os amantes do Direito Penal comprometido com os direitos humanos e os princípios fundamentais.
quarta-feira, 14 de maio de 2025
Atualizado às 09:56
No próximo dia 18 de maio completará 40 anos que a ciência penal ficou mais pobre. O jurista, professor e advogado Heleno Cláudio Fragoso deixou órfãos os amantes do Direito Penal comprometido com os direitos humanos e os princípios fundamentais que norteiam o Estado Democrático de Direito.
Heleno Cláudio Fragoso, para os mais íntimos simplesmente Heleno, foi professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito Cândido Mendes, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e livre-docente na Faculdade de Direito da UFRJ.
Advogado criminalista, conselheiro da seccional da OAB, do antigo Estado da Guanabara, além de Conselheiro Federal da Ordem. Heleno Fragoso também se destacou com coragem, firmeza e, invejável, cultura jurídica na defesa de vários presos políticos durante a ditadura militar. Perante os tribunais militares, o advogado Heleno não poupava duras críticas às leis que serviam de sustentação ao regime de exceção.
Em sua obra Advocacia da Liberdade,1 Heleno Fragoso além de apresentar sua visão critica do período que se iniciou com o golpe militar de 1964, nos brinda com a narrativa de defesas por ele realizadas em diferentes períodos dos anos de chumbo.
Nesta obra ímpar, Heleno Fragoso adverte que "A defesa nos processos nessa época, apresentava dificuldades enormes e não se exercia sem risco pessoal". Dentre os inúmeros desafios da defesa - que sofria com inúmeras restrições diante das arbitrariedades, impedidos de ter acesso aos autos dos "inquéritos" e até mesmo de acompanhar os interrogatórios de seus clientes que eram mantidos incomunicáveis -, era o de tentar localizar os presos e desqualificar as confissões obtidas sob tortura.
Necessário lembrar que com a edição do ato institucional 5, a garantia do habeas corpus foi suspensa o que resultou em "virtual autorização para o constrangimento ilegal". Segundo Heleno Fragoso,
A partir dos tempos ominosos do governo Médici, o sistema reagiu de forma mais brutal e violenta. A repressão não conheceu limites. A tortura se institucionalizou e passou a ser rotina da investigação criminal, levada a cabo por serviços especiais das três armas. Ninguém tinha garantia alguma. As prisões se faziam sob forma de sequestro e o preso ficava desaparecido por longo espaço de tempo".2
Neste abominável período da história que deve ser sempre lembrado para que jamais se repita, como desejam alguns, vários advogados de presos políticos foram também presos, inclusive o próprio Heleno Cláudio Fragoso.
Em artigo em memória de Heleno, publicado no extinto Jornal do Brasil (6/9/1987), o professor emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Nilo Batista, um dos seus maiores e principais discípulos, observa que Heleno Fragoso, advogado das liberdades públicas, "da tribuna de defesa iluminava, como um relâmpago, a causa e o tribunal", tratava-se de professor que permanentemente contestava os dogmas além de comprometimento perene com a defesa dos direitos humanos.
Em entrevista simulada com Heleno Fragoso (depois de sua morte), Nilo Batista, com toda genialidade, nos traz as lições de Heleno Fragoso sobre "violência, tráfico de drogas, favelados, miséria e justiça".
Revelando suas posições críticas e sua constante preocupação social, "indagado" por Nilo Batista a propósito de suas colocações sobre o direito penal e os pobres, Heleno Fragoso é categórico em afirmar que
O Direito Penal é, realmente, direito dos pobres, não porque os tutele e proteja, mas porque sobre eles, exclusivamente, faz recair sua força e o seu dramático rigor. A experiência demonstra que as classes sociais mais favorecidas são praticamente imunes à repressão penal, livrando-se com facilidade, em todos os níveis, inclusive pela corrupção. Os habitantes dos bairros pobres é que estão na mira do aparato policial-judiciário repressivo e que, quando colidos, são virtualmente massacrados pelo sistema.3
Entre as obras de Heleno Fragoso destacam-se: Advocacia da Liberdade; Direito Penal e Direitos Humanos; Terrorismo e Criminalidade Política; Lei de Segurança Nacional: uma experiência antidemocrática, além das suas preciosas lições de Direito Penal atualizadas, depois de sua morte em maio de 1985, pelo seu saudoso filho, brilhante advogado e professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, Fernando Fragoso.
Na primeira edição da parte geral de suas lições de Direito Penal de 1976, editada pela Forense, Heleno Fragoso já alertava para a necessidade de uma política criminal orientada para a descriminalização e a desjudicialização, no sentido de "contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas antissociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais".4
Em discurso proferido no IAB - Instituto dos Advogados do Brasil, em homenagem a Heleno pelo 25º aniversário de sua morte, Nilo Batista, com seu privilegiado conhecimento, explica que talvez o ano da virada, na vida intelectual de Heleno, tenha sido 1976. Como já vimos, neste ano vem a lume a 1ª edição da Parte Geral das Lições de Direito Penal, que foi o primeiro manual brasileiro completo a adotar, na teoria do delito, a estrutura típica complexa proposta por Welzel, com as demais consequências. Pois é também de 1976 seu relatório ao IX Congresso Internacional de Defesa Social, realizado em Caracas - o outro relator era simplesmente Alessandro Baratta! - intitulado Aspectos Jurídicos da Marginalidade Social. Nesse texto, a radicalidade da crítica liberal empurra Heleno para a crítica social, e ele não titubeia. Ele nunca recuaria desse novo horizonte. Tanto mais Heleno conheceu a realidade histórica dos sistemas penais e sua chocante seletividade estrutural, tanto mais as teorias legitimantes da pena não o satisfaziam.
Crítico da pena privativa de liberdade e da sua filosofia correcional, Heleno Fragoso referia-se a prisão como instituição total (conceito elaborado por Erwin Goffman) que "necessariamente deforma a personalidade, ajustando-se à subcultura prisional (prisonização). A reunião coercitiva de pessoas do mesmo sexo num ambiente fechado, autoritário, opressivo e violento, corrompe e avilta ...". A prisão proclamava Heleno Fragoso, "constitui realidade violenta, expressão de um sistema de justiça desigual e opressivo, que funciona como realimentador. Serve apenas para reforçar valores negativos, proporcionando proteção ilusória. Quanto mais graves são as penas e as medidas impostas aos delinquentes, maior é a probabilidade de reincidência". Com toda sua autoridade Heleno Fragoso proclamava que "o sistema será, portanto, mais eficiente, se evitar, tanto quanto possível, mandar os condenados para a prisão, nos crimes pouco graves, e se, nos crimes graves, evitar o encarceramento demasiadamente prolongado".5
Em tempos sombrios da cultura punitiva embalada pelo populismo penal, espécie de mantra de inúmeros políticos - tanto do executivo como do Legislativo - que se utilizam do discurso oco da impunidade e da propagação do medo que se traduz no uso abusivo e sistemático da pena privativa de liberdade e que tem levado ao encarceramento em massa, notadamente, dos mais vulneráveis (jovens negros, pobres, de baixa escolaridade e residentes das periferias e das favelas); em tempos da influência midiática nos processos seletivos de criminalização e, de igual modo, nos processos penais; tempos em que a prisão provisória se transforma em antecipação da pena em nítida violação à presunção de inocência; em tempos sombrios de propostas indecorosas e inconstitucionais como a redução da imputabilidade penal e da prisão perpétua etc., revelam, mais do que nunca, a falta que a mente lúcida e crítica do professor Heleno Fragoso, por tudo que ele representou e continua representando através de suas eternas obras, nos faz.
Para além da dogmática penal, sempre atento as questões políticas e sociais, em suas preciosas lições de Direito Penal Heleno Fragoso alerta que
A legislação penal da América Latina, fortemente repressiva, reflete a crise generalizada em hoje se defronta o Direito Penal e a inadequação às realidades nacionais. O fenômeno da criminalidade, nesta parte do mundo, está intimamente relacionado com as condições de uma estrutura social opressiva, profundamente injusta e desigual.6
Em artigo publicado pelo IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, por ocasião dos 20 anos do seu falecimento, o humanista Heleno Fragoso destaca que
A igualdade de todos perante a lei é apenas um mito. A justiça toda é desigual.... Os direitos humanos só serão observados nos países do Terceiro Mundo quando houver justiça social e sociedades autenticamente democráticas.7
Não tive a honra de conhecer pessoalmente o professor Heleno Cláudio Fragoso, nem de ter estudado nas prestigiosas faculdades em que o Mestre lecionou, mas tive a satisfação de - em tempos da proliferação de manuais de Direito Penal e de esquematização da doutrina com exclusiva finalidade comercial - estudar em suas valiosas e permanentes lições de Direito Penal, portanto, modestamente, ouso dizer que me considero seu eterno aluno.
Felizmente, como diz o ditado, "os frutos não caem longe da árvore", de tal modo que Christiano Falk Fragoso e Rodrigo Falk Fragoso, filhos do saudoso professor e advogado Fernando Fragoso e netos de Heleno Cláudio Fragoso, continuam honrando o legado da família.
Por tudo, obrigado Professor Heleno Cláudio Fragoso.
Belo Horizonte, 18 maio de 2015 - (40º Aniversário da morte de Heleno Cláudio Fragoso).
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1 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984.
2 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984.
3 BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
4 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral, 12ª ed., rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
5 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral, 12ª ed., rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
6 Idem.
7Direitos humanos e justiça criminal in Boletim IBCCRIM - Ano 13 - nº150 - maio de 2015.


