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Sorria, sua foto será postada: Limites do consentimento

Consentimento é comumente utilizado, mas inadequadamente. O artigo discute a adequação do consentimento com base legal para uso da imagem em redes sociais institucionais de entes públicos.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Atualizado às 15:00

Sorria, sua foto será postada: Limites do consentimento para uso de imagens pelo Poder Público nas redes sociais

1. Introdução

A utilização das redes sociais vem sendo cada vez mais massificada, seja por pessoas ou instituições. O Poder Público também é atingido por essa tendência, sendo cada vez mais comuns os perfis institucionais de entes públicos, especialmente para dar visibilidade às políticas públicas. À luz da Lei Geral de Proteção de Dados, quais os desafios para que as imagens sejam utilizadas de maneira apropriada nos perfis institucionais de órgãos e entidades públicas? É o que se discutirá no artigo a seguir.

2. Consentimento: Limites à autodeterminação informativa

Uma das bases legais mais comumente utilizadas para o tratamento de dados pessoais é o consentimento, incluindo para o uso de dados pessoais sensíveis. Contudo, o consentimento é frequentemente utilizado de forma pouco apropriada, uma vez que o titular não pode exercê-lo como uma manifestação livre, informada e inequívoca, conforme dispõe o art. 5o, XII, da LGPD, mas sim como uma espécie de obstáculo que impede o titular de acessar a política pública, ou sistema ou o serviço desejado caso ele não consinta com tudo.

Esse tipo de construção não permite que o titular de dados pessoais faça escolhas efetivas sobre os tratamentos dos seus dados, uma vez que se presume que ou há um aceite completo de todos os usos realizados pelo controlador ou não se pode ter acesso a nada da política pública, ou do sistema, ou do serviço prestado. O quadro se agrava no atual cenário em que, com as novas tecnologias, é cada vez mais comum que sejam empreendidos usos secundários para os dados pessoais, sem que o titular possa de fato compreender o que será feito a partir do aceite dos termos de uso e dos avisos de privacidade.

Como bem esclarece o professor Bruno Bioni:

Em que pese ter sempre havido dúvidas em torno da racionalidade e do poder de barganha dos titulares dos dados pessoais, para que eles empreendessem um controle efetivo sobre os seus dados pessoais, o consentimento permaneceu sendo o elemento nuclear da estratégia regulatória da privacidade informacional.(...) O saldo desse percurso é apostar no indivíduo como um ser capaz, racional e hábil para controlar as suas informações pessoais. (grifos nossos)

Dessa forma, coloca-se sob os ombros do titular de dados pessoais o ônus de, através do consentimento, autorizar diversas utilizações - muitas das quais o titular nem sequer compreende do que se trata, dada a assimetria informacional entre o titular e o controlador ou operador de dados. Destaque-se que, com o desenvolvimento das novas tecnologias, tais utilizações de dados são cada vez mais complexas e menos compreensíveis, especialmente com o uso de tecnologias baseadas em aprendizado de máquina e inteligência artificial.

Embora o consentimento surja como uma hipótese legal confortável para o agente de tratamento - porque legitima tudo o que ele faz com os dados -, pela perspectiva do titular é uma base legal capciosa, já que frequentemente o titular se vê obrigado a concordar com tudo para ter acesso ao serviço, ou sistema, ou política pública, ainda que não entenda perfeitamente as consequências do aceite que ele está ofertando, frustrando o caráter negocial (como formalização de um negócio jurídico) do consentimento.

É de se pontuar as lições de Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, de que o negócio jurídico "são fatos jurídicos em cujos suportes fáticos existem atos humanos voluntários", sendo que "a vontade das partes, nesse caso, é importante não apenas para sua formação, mas também para a determinação de seus efeitos".

Ressalte-se, por oportuno, que, de acordo com o art. 104 do CC, a validade do negócio jurídico requer o preenchimento dos seguintes elementos: (i) agente capaz; (ii) objeto lícito, possível e determinado ou determinável; e, (iii) forma prescrita ou não proibida em lei.

Em outras palavras, "não há negócio jurídico sem vontade", e, nesse contexto, a vontade das partes é algo de extrema relevância, e, no que tange ao consentimento, tal ação deverá ser entendida não como um simples ato de clicar em uma pequena caixa de uma página de Internet, mas sim, como uma parte fundamental de toda a relação jurídica relativa ao tratamento de dados pessoais.

Exemplificando, da mesma forma em que em um negócio jurídico de compra e venda há a necessidade da clareza e da transparência quanto ao objeto, preço, forma de pagamento e demais condições, no tratamento de dados pessoais, considerando a autodeterminação informativa estabelecida no art. 2º, II da LGPD, o titular dos dados necessita de informações prévias e claras, a fim de promover o eventual consentimento, como manifestação livre, informada e inequívoca do titular.

Ademais, consoante o § 5º do art. 8º da LGPD, o consentimento poderá ser revogado a qualquer momento mediante manifestação expressa do titular. Igualmente, de acordo com o § 2º do art. 9º da LGPD, na hipótese em que o consentimento for requerido, se houver mudanças da finalidade para o tratamento de dados pessoais não compatíveis com o consentimento original, o controlador deverá informar previamente o titular sobre as mudanças de finalidade, podendo o titular revogar o consentimento, caso discorde das alterações.

Esse desafio se torna ainda mais complexo quando se trata do uso de dados pessoais pelo Poder Público. Será que é razoável colocar o consentimento como um pré-requisito para acessar serviços públicos ou ser beneficiário de políticas públicas? Especialmente quando o dado pessoal em questão for o uso da imagem para a divulgação de serviços e políticas públicas pelo Poder Público? Conforme se verá a seguir, a divulgação das imagens é parte fundamental da atuação dos entes governamentais, e o consentimento como elemento central da autodeterminação informativa, talvez não faça sentido nesse cenário.

3. A divulgação da imagem como parte fundamental e constitutiva para a execução de políticas públicas 

A atuação estatal frequentemente se manifesta através da formulação, implementação, execução e avaliação de políticas públicas. Existem diversos conceitos de políticas públicas, mas um dos mais comumente utilizados é o trazido pelo professor Enrico Saraiva, que define políticas públicas da seguinte forma:

Com uma perspectiva mais operacional, poderíamos dizer que [a política pública] é um sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou vários setores da vida social, por meio da definição de objetivos e estratégias de atuação e da alocação dos recursos necessários para atingir os objetivos estabelecidos. (grifos nossos)

Assim, se a atuação estatal se pauta por um fluxo de decisões públicas destinadas a alcançar objetivos considerados socialmente relevantes, é exigido pela sociedade que seja dada a devida publicidade dos processos constitutivos das políticas públicas. De uma forma geral, entende-se que o cumprimento deste requisito se dá mediante a realização dos ritos de formalidade do ato administrativo, através da publicação do ato administrativo no Diário Oficial do respectivo ente público - o que é suficiente para cumprir os requisitos de formalidade, mas talvez não seja para a construção da legitimidade da atuação estatal no fluxo de decisões que constitui as políticas públicas.

Tem-se observado que a atuação do Estado como executor de políticas públicas vem sendo questionada quanto à sua legitimidade, em especial diante das demandas sociais crescentes em um mundo complexo, volátil, incerto e cheio de ambiguidades (mundo VUCA). Críticas quanto à centralização da tomada de decisões, em grande maioria prevista por força de lei, e quanto à comunicação burocrática, que não utiliza linguagens mais simples, levam ao crescimento constante da insatisfação da população, dificultando uma relação mais próxima entre o governo e o cidadão. Tais questionamentos levantam debates sobre a capacidade estatal de representar legitimamente os interesses e o bem-estar das pessoas. Diante disto, é importante refletir não só sobre a legitimidade institucional, mas também representativa e substantiva da ação do Estado para o cidadão contemporâneo.

Para Pierre Rosanvallon, a legitimidade do Estado moderno deve ser compreendida não só pela via da legalidade eleitoral, mas pela construção contínua de confiança e reconhecimento dos cidadãos nas instituições públicas. Isso implica considerar fatores como a participação da sociedade na transparência das ações governamentais, com uma linguagem mais acessível e não tecnocrata, o que funciona como elemento construtivo de uma atuação legítima, pois, quando esta dimensão é fragilizada, a atuação estatal nas decisões públicas destinadas a alcançar objetivos considerados socialmente relevantes passa a ser objeto de contestação, tanto política como social.

Dessa forma, a questão da comunicação é central para a legitimidade da atuação estatal e para a construção de políticas públicas. Em termos de fontes de informação para a comunicação, é de se destacar que atualmente, os cidadãos se informam mais sobre a realidade através das redes sociais do que por jornais impressos ou pela televisão. Pesquisa recente divulgada pela Exame informa que mais de 90% da população considera as redes sociais fundamentais para a disseminação de informações e notícias. Assim, também os governos devem se modernizar e se comunicar através das redes sociais. O objetivo, mais do que dar visibilidade à atuação de indivíduos, é o de divulgar as atividades que um órgão ou entidade pública vem realizando, justamente para mostrar à população o que está sendo feito. 

Portanto, a divulgação da atuação estatal nas redes sociais é uma etapa fundamental do fluxo de decisões que constitui uma política pública, uma vez que influenciará a opinião pública acerca do atingimento (ou não) de um determinado objetivo almejado pela sociedade.

Em tempos em que a atuação estatal vem sendo tão questionada, a divulgação nas redes sociais das políticas públicas executadas é fundamental para conferir-lhes legitimidade. Aumenta a confiança dos cidadãos ver, em fotos publicadas nas redes sociais, imagens de pessoas sendo atendidas por agentes públicos, equipamentos públicos em boas condições de uso, explicações acerca dos direitos que podem ser exercidos, detalhamento dos serviços que estão disponíveis - e de que forma podem ser acessados -, entre outras informações de interesse público. Portanto, a divulgação das imagens em redes sociais é parte constitutiva das políticas públicas, essencial para garantir a legitimidade do fluxo de decisões públicas que levam à atuação estatal.

4. Hipóteses legais possíveis para utilização das imagens nas redes sociais pelo Poder Público

Conforme se destacou anteriormente, a divulgação das imagens em redes sociais é parte constitutiva da execução das políticas públicas, pois confere legitimidade à atuação estatal. Dessa forma, afasta-se, a característica negocial que envolve o consentimento. Conforme bem descreve a professora Chiara de Teffé:

A expressão do consentimento livre implica uma verdadeira escolha e controle para o titular dos dados. Se ele não puder exercer uma verdadeira escolha, se se sentir coagido a dar o consentimento ou sofrer consequências negativas injustificadas caso não consinta, então o consentimento não será válido. (grifou-se)

Assim, o consentimento só deve ser usado se houver uma verdadeira escolha por parte do titular de dados pessoais, o que não ocorre de fato nas diversas situações em que a imagem é capturada para conferir legitimidade à atuação estatal na execução de políticas públicas. Até porque existe uma impossibilidade fática de coleta do consentimento em diversas situações em que as imagens são capturadas: inaugurações de equipamentos públicos; demonstração, por grupos de pessoas, sobre como serviços públicos podem ser acessados; divulgação dos cidadãos sendo beneficiados por uma política pública; visibilidade para espaços públicos sendo utilizados; entre outras.

Observe-se que não se trata de um "cheque em branco" para o Poder Público utilizar as imagens dos titulares de dados como bem entender, mas sim uma impossibilidade de utilização do consentimento como hipótese legal válida quando a finalidade for a divulgação de políticas públicas. A propósito, tanto no art. 7º quanto no art. 11 da LGPD constam outras hipóteses legais para tratamento dos dados pessoais, entre as quais a execução de políticas públicas. Esse requisito encontra-se intimamente ligado à previsão estabelecida no art. 23 da LGPD, que estabelece requisitos para que o tratamento de dados pessoais seja realizado pelas pessoas jurídicas de direito público. Portanto, a divulgação das imagens em redes sociais pelo Poder Público, quando a base legal for a execução de políticas públicas, precisa estar intimamente ligada a finalidades públicas, concatenadas com as competências legais do ente público, cumprindo requisitos de legalidade e finalidade.

Dessa forma, a utilização das imagens dos titulares de dados pessoais nas redes sociais para fins de divulgação de políticas públicas deve ter uma finalidade pública claramente estabelecida, não podendo ser utilizadas para fins pessoais, como, por exemplo, para divulgação de propaganda de um político. Além disso, o uso das imagens deve estar claramente conectado com as competências específicas daquele ente público, com o objetivo de dar maior visibilidade à sua atuação.

Contudo, para dar cumprimento ao art. 11, §2º, da LGPD, que dispõe que será dada publicidade à referida dispensa de consentimento, é importante informar a finalidade da utilização das imagens disponibilizadas nas redes sociais institucionais do ente público. Não se vislumbra a necessidade de esclarecimento específico para cada postagem, mas sim a possibilidade de contato com o encarregado de dados claramente disponível, para que o encarregado possa ser acionado e possa esclarecer ao titular de dados, no caso em concreto, a adequação da finalidade e a compatibilidade do uso daquela imagem usada no perfil institucional em cada postagem específica, caso o titular deseje esclarecimentos. 

5. Conclusão

Embora as redes sociais tragam desafios para a comunicação, especialmente pelo Poder Público, a divulgação das informações nas redes sociais pode servir também para agregar valor à atuação dos entes estatais, aumentando a visibilidade dos governos e permitindo que os serviços públicos sejam mais acessíveis e as políticas públicas mais visíveis para o cidadão, permitindo, assim, maiores ganhos para toda a sociedade.

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1 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção Dos Dados Pessoais: A Função e os Limites do Consentimento. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32 ed. São Paulo: Atlas, 2019.

3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 38ª Edição 2025. 38. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025.

4 FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil - Volume único. 9a. ed. São Paulo. Editora Juspodivm, 2024.

5 ROSANVALLON, Pierre. La legitimidad democrática: imparcialidad, reflexividad y proximidad. Tradução de Heber Cardoso. Barcelona: Paidós, 2010.

6 SARAVIA, Enrico. Introdução à Teoria da Política Pública. In: Políticas públicas: coletânea. Org.: Enrique Saravia e Elisabete Ferrarezi. Brasília: ENAP, 2006.

7 SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, 2006.

8 TEFFE, Chiara Spadaccini de. Seção II: Do Tratamento de Dados Pessoais Sensíveis. In: Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados: Lei 13.709/2018. Org: Guilherme Magalhães Martins, João Victor Rozatti Longhi, José Luiz de Moura Faleiros Júnior. 2ª Ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024.

Ana Paula Vasconcellos da Silva

Ana Paula Vasconcellos da Silva

Doutora em Estratégias, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo PPED/UFRJ, Mestre em Direito pelo PPGD/UERJ e pós-graduada em Direito e Novas Tecnologias pelo ITS/UERJ.

Silvio Maciel e Silva Junior

VIP Silvio Maciel e Silva Junior

Advogado Certificação EXIN PDPELGPD e CERTIPROOF.Analista de Proteção de Dados da PCRJ. LL.M em Proteção de Dados Pessoais (LGPD_GDPR) e Direito Digital (FMP/RS e Univ Lisboa). http://tiny.cc/SilvioJr

Hannah Mendonça Pires da Luz

Hannah Mendonça Pires da Luz

Gestora Pública pela UFRJ, Encarregada de Dados Pessoais na Sec. de Integridade e Transparência e Secretária-Geral no Conselho Mun. de Proteção de Dados e da Privacidade da Pref. do Rio de Janeiro

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