A ata notarial como prova judicial: Técnica qualificada ou formalismo exagerado?
A ata notarial ganha destaque como prova robusta, mas exige uso técnico e crítico para não se tornar mero formalismo desvinculado do contraditório e da verdade dos fatos.
segunda-feira, 19 de maio de 2025
Atualizado às 11:05
Introdução: A ata notarial em tempos de volatilidade probatória
Em um ambiente processual cada vez mais marcado por provas digitais, alta litigiosidade e narrativas construídas com elementos fragmentários, a ata notarial ressurge como meio de prova qualificado e de fé pública, capaz de conferir densidade técnica e segurança jurídica à instrução probatória.
Contudo, seu uso crescente impõe uma análise crítica: quais são os reais limites de sua eficácia probatória? Em que medida a ata, lavrada por notário à vista de uma parte, pode ser considerada prova suficiente? E quando seu uso, desprovido de método, transforma-se em um ritual formal carente de substância?
Este artigo propõe uma reflexão técnico-jurídica sobre o papel da ata notarial no processo judicial contemporâneo, especialmente no campo da prova digital, analisando sua natureza, força probatória e riscos decorrentes de seu uso irrefletido.
Natureza jurídica da ata notarial: Fé pública e imparcialidade institucional
A ata notarial é instrumento público previsto no art. 384 do CPC e regulamentado, quanto à atuação do notário, pela lei 8.935/1994 (arts. 7º e 22). Lavrada por tabelião de notas a requerimento da parte interessada, tem por objeto a constatação da existência e do modo de ser de fatos presenciados ou apresentados ao notário.
Dotada de fé pública, goza de presunção relativa de veracidade, vinculada à presunção de imparcialidade e à confiança institucional do serviço notarial. Conforme aponta a doutrina, trata-se de prova pré-constituída que não depende, a priori, de validação judicial para produção de efeitos, mas que está sujeita ao contraditório e à livre apreciação do juiz (CPC, art. 371).
Valoração probatória: Robustez técnica, mas não absolutismo
A jurisprudência nacional tem atribuído elevado valor probatório à ata notarial, especialmente quando utilizada para documentar fatos digitais, como mensagens de WhatsApp, postagens em redes sociais ou condutas verificáveis em ambiente eletrônico.
No acórdão 1987464/25 (TJ/DFT), por exemplo, a ata foi reconhecida como elemento suficiente para afastar o indeferimento da petição inicial, com fundamento em sua aptidão para comprovar a existência do fato constitutivo da demanda:
"A ata lavrada por tabelião pode atestar ou documentar a existência e o modo de existir de algum fato, a requerimento do interessado."
A mesma linha é seguida pelo STJ no REsp 1.820.607/RO, ao afirmar que, embora relevante, a ata não afasta a necessidade de avaliação do conjunto probatório pelo magistrado, o que reforça seu valor como prova qualificada, mas não excludente do contraditório.
Prova digital e a ata como mecanismo de estabilização da narrativa
O crescimento da litigância baseada em elementos digitais - imagens, vídeos, áudios e mensagens extraídas de aplicativos - tornou a ata notarial um recurso estratégico para estabilizar a narrativa inicial da parte. Quando corretamente elaborada, a ata é capaz de preservar o conteúdo original, verificar metadados, vincular a informação a um contexto e impedir adulterações futuras.
A jurisprudência tem reconhecido essa utilidade. No processo 0001079-92.2023.5.10.0102 (TRT-10), por exemplo, a ausência de ata notarial para autenticar prints de conversas levou ao indeferimento de pedido de horas extras em regime de home office, por ausência de autenticidade e individualização probatória.
Por outro lado, no processo 0000361-10.2024.5.10.0022 (TRT-10), mesmo sem a ata, a prova digital foi admitida, em razão da confissão da parte adversa quanto à avença verbal documentada pelas mensagens. A lição que se extrai é clara: a ata qualifica a prova digital, mas não a substitui quando há reconhecimento judicial de sua autenticidade por outros meios.
Limites do custo probatório e o uso estratégico voluntário
Não raras vezes, a parte que lavra a ata requer reembolso dos custos da diligência, especialmente quando obtém êxito na ação. Contudo, os tribunais têm firmado posição no sentido de que a confecção da ata notarial constitui ato voluntário e estratégico da parte, não podendo ser convertida, por si só, em prejuízo processual à parte contrária.
O acórdão 1985361 (TJ/DFT, 2025) é categórico:
"Inviável a condenação à devolução do valor pago pela ata notarial, pois se trata de meio complementar de prova utilizado voluntariamente pela parte para garantir maior segurança jurídica às suas alegações."
Desconsideração da ata e negativa de prestação jurisdicional
A relevância da ata, quando regularmente produzida e integrada aos autos, impõe ao magistrado o dever de enfrentá-la na fundamentação. Sua desconsideração injustificada configura violação ao dever de motivação e ao contraditório, como reconhecido pelo TST no RR 1000543-66.2015.5.02.0264, ao anular acórdão que ignorou a existência da ata notarial juntada nos memoriais:
"Constatada omissão relativa à existência da ata notarial [...] recurso conhecido por violação do art. 93, IX, da Constituição."
Na mesma direção, o STJ no AgInt no AREsp 2.090.707/MT reafirmou a validade da prova notarial, mesmo quando não abrange a totalidade do conteúdo discutido, desde que a parte contrária não impugne o conteúdo de forma substancial, reconhecendo sua utilidade como elemento de boa-fé objetiva.
O risco do uso ritualístico e a necessidade de rigor técnico
Ainda que revestida de formalidade, a ata notarial não deve ser instrumentalizada como ato protocolar vazio ou como substituto da prova processual efetiva. Seu uso desmedido, para situações de pouca complexidade ou com ausência de cautelas técnicas na coleta, pode esvaziar sua finalidade e banalizar sua força.
A crítica aqui não é ao instrumento, mas ao uso ritualístico e destituído de rigor, que compromete sua credibilidade e pode levar à sua rejeição judicial, sobretudo quando utilizada sem observância da cadeia de custódia, da origem do conteúdo e da imparcialidade do tabelião.
Conclusão: Uma prova que exige respeito técnico e interpretação contextual
A ata notarial deve ser compreendida como instrumento probatório de altíssimo valor, especialmente em ambientes digitais instáveis, mas sua eficácia não pode ser reduzida ao carimbo da fé pública. Sua força reside na credibilidade do notariado, na metodologia empregada na lavratura e na interpretação judicial contextualizada, sempre sob o crivo do contraditório.
Sua valorização é desejável, mas deve vir acompanhada de critérios técnicos, ponderação judicial e responsabilidade ética na sua utilização. Entre a fé pública e a prova unilateral, a ata notarial se impõe como um meio robusto, mas não absoluto, cuja relevância está diretamente ligada à qualidade de sua produção e à coerência do seu uso no processo.
__________
TJDFT. 2ª Turma Cível. Apelação Cível 0721732-84.2024.8.07.0001. Rel. Des. Álvaro Ciarlini. Julgado em 02/04/2025. Publicado no DJe em 29/04/2025.
Reconhecimento da ata notarial como prova apta à instrução da petição inicial e valoração nos termos do art. 384 do CPC.
TJDFT. 2ª Turma Criminal. Apelação 0706792-46.2022.8.07.0014. Rel. Des. Jair Soares. Julgado em 03/04/2025. Publicado no DJe em 12/04/2025.
Discussão sobre validade de provas digitais sem ata notarial e análise da suficiência de prints de redes sociais.
TJDFT. Primeira Turma Recursal. Recurso Inominado 0779629-25.2024.8.07.0016. Rel. Des. Rita de Cássia de Cerqueira Lima Rocha. Julgado em 28/03/2025. Publicado no DJe em 14/04/2025.
Indeferimento de pedido de reembolso dos custos com a lavratura da ata notarial, por se tratar de meio complementar de prova utilizado voluntariamente.
TRT da 10ª Região. 1ª Turma. RO 0000361-10.2024.5.10.0022. Rel. Des. Luciana Maria do Rosario Pires. Assinado em 18/03/2025.
Aceitação de prints digitais não acompanhados de ata notarial em razão da confissão da parte adversa.
TRT da 10ª Região. 1ª Turma. RO 0001079-92.2023.5.10.0102. Rel. Des. Luiz Henrique Marques da Rocha. Assinado em 07/02/2025.
Indeferimento de pedido de horas extras por ausência de prova técnica (ata notarial) e dificuldade de aferição de autenticidade das mensagens.
TST. RR 1000543-66.2015.5.02.0264. Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte. 3ª Turma. Julgado em 12/06/2019.
Reconhecimento de nulidade por negativa de prestação jurisdicional diante da omissão quanto à existência de ata notarial nos autos.
STJ. AgInt no AREsp 2.090.707/MT. Rel. Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em 17/10/2022.
Reconhecimento da validade de ata notarial como prova parcial e aplicação dos princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao comportamento contraditório.
STJ. REsp 1.820.607/RO. Rel. Min. Herman Benjamin. 2ª Turma. Julgado em 03/03/2020.
Fixação de que a ata notarial não isenta o juiz da apreciação do conjunto probatório.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Processo Civil Moderno: parte geral e processo de conhecimento. 2. ed. São Paulo: RT, 2011.
ASSIS, Araken de. Prova no Processo Civil. São Paulo: RT, 2013.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.
DUBOC, Luciane. A Prova Digital no Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
TOLEDO, Roberto Senise Lisboa. O valor probatório da ata notarial: um estudo à luz do processo contemporâneo. Revista de Processo, vol. 315, São Paulo: RT, 2021.


