Dolo eventual: Uma herança autoritária incompatível com o Estado de Direito
O dolo eventual é uma ficção jurídica. Defendo sua extinção e a adoção de uma imputação técnico-constitucional fundada na vontade e nos caracteres significativos da ação.
terça-feira, 20 de maio de 2025
Atualizado às 10:39
O dolo eventual, tal como consagrado na dogmática penal brasileira, é uma ficção jurídica. Em vez de esclarecer, confunde. Em vez de garantir, fragiliza. Em minha obra Sobre a Estrutura do Dolo e da Imprudência, sustento que sua permanência compromete o princípio da legalidade e permite a expansão arbitrária do poder punitivo, chancelando o estereótipo de Estado policialesco.
O art. 18, inciso I, do CP brasileiro prevê que o crime doloso pode ocorrer quando o agente, mesmo sem querer o resultado, assume o risco de produzi-lo. Essa formulação ambígua cria um paradoxo: permite punir como dolosa uma conduta que não foi, em sentido estrito, orientada pela vontade de realizar o tipo penal. O resultado típico, nesse contexto, não foi desejado pelo agente. Ainda assim, a imputação se faz como se houvesse dolo.
Esse é o cerne da crítica: o dolo, na tradição do Direito Penal moderno, é categoria ligada à vontade, à previsão, ao conhecimento e à decisão. Dizer que alguém agiu com dolo é dizer que sua ação teve como finalidade a realização do tipo penal. O dolo eventual rompe com essa estrutura, ao permitir imputações baseadas em previsões genéricas, percepções subjetivas e construções retroativas da vontade. Isso subverte a lógica do Estado de Direito, transformando o julgador em intérprete da mente alheia, sem critérios objetivos verificáveis.
A origem histórica do dolo eventual no Brasil também merece atenção. A figura foi importada do Código Rocco, elaborado sob o regime fascista italiano e introduzida silenciosamente no CP de 1940, durante o Estado Novo. Essa genealogia autoritária não é detalhe irrelevante: ela explica por que a presunção de culpabilidade e a fluidez conceitual estão embutidas na própria estrutura do dolo eventual. Trata-se de um dispositivo que resiste à racionalidade constitucional e que, por isso, permanece incompatível com a matriz democrática do Estado de Direito.
O chamado paradoxo de Hungria ilustra bem o problema: ao admitir a punição por dolo mesmo sem intenção, o sistema inverte o ônus da prova e impõe ao acusado a tarefa de demonstrar que não quis o resultado - uma prova impossível. Tal presunção ofende diretamente os princípios da legalidade, da culpabilidade e da presunção de inocência.
A permanência do dolo eventual também se justifica, na prática, por um desconforto dogmático: diante de fatos trágicos, há quem recorra a essa figura como meio de ampliar a resposta penal sem reformar os critérios da imputação. Mas essa solução aparente escapa ao dever de coerência normativa. O Direito Penal não pode ser regido por indignações morais ou simbolismos punitivos. Seu compromisso deve ser com a legalidade, com o rigor técnico e com o respeito às garantias constitucionais.
A aplicação do dolo eventual tem servido, em diversas decisões judiciais, como meio de ampliar o espaço da imputação dolosa a condutas nitidamente imprudentes conscientes. Em vez de apurar com rigor técnico os elementos da ação, recorre-se à ficção do risco assumido para preencher lacunas probatórias. Esse expediente permite antecipar juízos de valor e contornar os limites do tipo penal, comprometendo as garantias processuais e produzindo insegurança jurídica.
A teoria significativa da imputação propõe a extinção do dolo eventual e sua substituição por uma classificação técnico-constitucional da imprudência consciente, em três níveis: gravíssima, grave e leve. Cada nível corresponde ao grau de violação do dever de cuidado assumido pelo agente e à intensidade do risco tolerado. Essa estrutura evita subjetivismos e permite respostas proporcionais, verificáveis e compatíveis com a CF/88.
Além disso, a teoria substitui critérios psicológicos por critérios linguísticos e normativos. O primeiro quesito significativo, por exemplo, conforme menciono em Sobre a Estrutura do Dolo e da Imprudência, formula-se nos seguintes termos: o agente agiu com vontade de obter o resultado advindo? Se a resposta for negativa, não há falar em dolo, e deve-se investigar a presença de imprudência consciente e classificá-la conforme os demais caracteres significativos verificados.
Punir alguém com base em suposições sobre o que teria aceitado ou previsto, sem que se verifique a vontade de obter o resultado, e os demais caracteres significativos, é subverter a lógica do Direito Penal garantista. O dolo eventual não é apenas tecnicamente deficiente: é incompatível com os fundamentos constitucionais da imputação penal e com os critérios normativos exigidos por um Estado Democrático de Direito.