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Primeiras impressões sobre a minuta do decreto do Programa Nacional de Descarbonização e Incentivo ao Biometano

Análise da minuta do decreto destaca o CGOB como atributo ambiental essencial à descarbonização e transição energética sustentável no Brasil.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Atualizado em 19 de maio de 2025 13:54

1. Introdução: A consulta pública e o marco do combustível do futuro

Não é por acaso que se encontra, neste momento, aberta à consulta pública a minuta do decreto que regulamenta o Programa Nacional de Descarbonização do Produtor e Importador de Gás Natural e de Incentivo ao Biometano, previsto no capítulo V da lei 14.993, de 8/10/24 - marco legal do denominado combustível do futuro. A iniciativa normativa visa consolidar a inserção do biometano na matriz energética nacional, promovendo previsibilidade, segurança jurídica, estímulo econômico e, sobretudo, integridade ambiental ao novo mercado que se desenha.

2. O "atributo ambiental" como núcleo do CGOB - Certificado de Garantia de Origem do Biometano

Um dos aspectos mais relevantes da minuta encontra-se no inciso V do art. 2º, ao definir o CGOB - Certificado de Garantia de Origem do Biometano a partir de seu "atributo ambiental". Este não se configura como elemento acessório ou complementar, mas sim como o núcleo qualificante que lhe confere existência jurídica e valor econômico. Trata-se de conceito essencial, a ser ressaltado já nas definições normativas, pois delimita o CGOB em relação aos demais instrumentos de mercado voltados à mitigação das emissões de GEE - gases de efeito estufa.

Enquanto créditos de carbono, CBIOs e certificados de remoção operam por equivalência contábil - compensando emissões com reduções ou sequestros certificados - o CGOB, ao contrário, nasce da própria natureza renovável do biometano. Sua autenticidade repousa na rastreabilidade molecular de origem biogênica, qualificando-o como marcador ambiental e energético, não apenas como título de valor.

Essa distinção ontológica reforça a necessidade de se compreender o CGOB como instrumento de qualificação ambiental originária. Sua função jurídica transcende a lógica compensatória: ele legitima o próprio insumo energético e estrutura a confiança regulatória e comercial sobre o biometano como componente limpo da matriz energética brasileira.

3. A expressão "atributo ambiental": Primeiras impressões

Para adentrar no cerne do tema, é fundamental compreender que a expressão "atributo ambiental", presente em um dos dispositivos mais sofisticados da minuta, ultrapassa o mero tecnicismo normativo. Etimologicamente, "atributo" deriva do latim attribuere - conceder, imputar, assinalar - enquanto "ambiental" provém de ambiens, particípio de ambire, significando envolver ou circundar. Assim, "atributo ambiental" exprime uma qualidade intrínseca aos elementos do meio ambiente, configurando-se como vetor de valor e legitimidade jurídica.

Nos principais repositórios doutrinários - como o Dicionário de Direito Ambiental de Édis Milaré (2021) - o termo é empregado para designar propriedades ecológicas relevantes de bens naturais ou processos produtivos, sobretudo em contextos de licenciamento, avaliação de impacto e compensação. Quando juridicamente reconhecido, o atributo ambiental adquire função normativa objetiva, servindo de critério para classificação, proteção e certificação ambiental - como se observa na própria definição da minuta para o CGOB.

4. O precedente do STF (MS 38.387)

A densidade jurídica do conceito de "atributo ambiental" encontra respaldo jurisprudencial no julgamento do MS - Mandado de Segurança 38.387, relatado pela ministra Cármen Lúcia (julgado em 8/3/22). Ali se discutiu a constitucionalidade de dispositivos normativos que disciplinam a classificação de cavidades naturais subterrâneas com base em seus atributos ambientais. O STF reconheceu que tais atributos orientam a gradação da proteção jurídica conferida ao bem natural, com destaque para o §1º do art. 3º do decreto impugnado, que exigia a preservação de cavidades com "atributos ambientais similares" na hipótese de impactos irreversíveis.

Esse precedente é particularmente relevante por afirmar que os atributos ambientais não apenas fundamentam a proteção jurídica de bens ecológicos, mas também constituem critério técnico-científico legítimo para a formulação de políticas públicas.

5. O CGOB como "atributo ambiental" singular e valor regulatório

À luz do exposto, é possível traçar uma analogia entre a fundamentação do STF e a arquitetura jurídica do CGOB. A minuta define este certificado como "atributo de sustentabilidade inerente ao CGOB que atesta a renovabilidade da origem do biometano certificado e assegura a rastreabilidade do conteúdo biogênico da molécula". Diferentemente de créditos de carbono ou instrumentos compensatórios, o CGOB não resulta de uma relação aritmética entre emissões e neutralizações - trata-se de uma qualificação ontológica que acompanha o biometano desde sua origem.

Em termos simbólicos e regulatórios, o "atributo ambiental" do CGOB equivale à sua certidão de nascimento ecológica. Ele confere identidade, rastreabilidade e legitimidade ao biometano perante os agentes de mercado e os órgãos reguladores. Assim como no caso das cavidades subterrâneas, o reconhecimento jurídico do atributo ambiental não implica apenas valorização simbólica, mas impõe proteção e utilização normativa como critério de organização de políticas públicas - neste caso, voltadas à transição energética.

6. Conclusão: Primeiras impressões e convite à participação ativa

A articulação entre técnica, direito e sustentabilidade, mediada por conceitos densos como o de "atributo ambiental", revela um amadurecimento normativo que merece atenção crítica e engajamento ativo. O Programa Nacional de Descarbonização, por meio do CGOB, inaugura um paradigma que alia rastreabilidade, legitimidade e sustentabilidade de forma inédita no setor energético brasileiro.

Dessa forma, a consulta pública ora em curso cumpre papel fundamental ao permitir que a sociedade civil, o setor produtivo, a academia e os especialistas contribuam para o aprimoramento de uma normatização que transcende o plano econômico e se inscreve no horizonte de uma justiça ambiental duradoura e de um progresso verdadeiramente sustentável.

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1 BRASIL. Decreto nº [], de [] de [] de 202[] (Minuta). Regulamenta o Programa Nacional de Descarbonização do Produtor e Importador de Gás Natural e de Incentivo ao Biometano. Decreto: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2025/5/CC56C692D35CF5_DOC-20250517-WA0021_250517_135.pdf

2 BRASIL. Lei nº 14.993, de 8 de outubro de 2024. Institui o Programa Nacional de Combustível do Futuro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 out. 2024.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 38.387/DF. Rel. Ministra Cármen Lúcia. Julgado em 08/03/2022. Publicado em 16/03/2022.

4 MILARÉ, Édis. Dicionário de Direito Ambiental. São Paulo: RT, 2021.

Adalberto Arruda Silva Júnior

Adalberto Arruda Silva Júnior

Advogado associado do Nelson Wilians & Advogados Associados.

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