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Papa Francisco e a justiça humanizada: Para além da punição

Qual era a percepção do Papa Francisco sobre a justiça? Crítica ao sistema penal e ênfase na misericórdia.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Atualizado em 22 de maio de 2025 10:30

O cenário contemporâneo das sociedades revela um paradoxo desconcertante: enquanto se exaltam os direitos humanos e os avanços civilizatórios, assiste-se a uma profunda crise nos sistemas de justiça criminal em diversas partes do globo. Uma das faces mais visíveis dessa crise é o encarceramento em massa, reflexo da consolidação de um "Estado penal" que, frequentemente sob o véu da neutralidade, opera uma gestão seletiva e punitiva da pobreza, marginalizando populações já vulnerabilizadas1. Essa expansão punitiva não raro ignora os limites éticos e jurídicos que deveriam nortear a ação estatal, resultando em sistemas prisionais superlotados, violentos e degradantes, onde a dignidade humana, princípio basilar de qualquer ordem jurídica democrática, é sistematicamente violada. Esta realidade, onde o poder muitas vezes se exerce sobre os corpos de forma minuciosa, parece perpetuar-se e até intensificar-se, desafiando os ideais de ressocialização e justiça apregoados.

A tensão entre a necessidade de resposta ao crime e a garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos, incluindo aqueles que cometeram delitos, é um dilema central. Teorias como o garantismo penal sublinham a importância de um sistema de limites e vínculos rígidos impostos ao poder punitivo do Estado, como forma de salvaguardar a liberdade e a dignidade contra o arbítrio2. No entanto, uma "cultura do controle" parece impulsionar uma lógica securitária que relativiza garantias em nome de uma suposta eficiência no combate à criminalidade, frequentemente alimentada por um discurso de medo e por soluções simplistas que buscam aplacar a opinião pública3. Nesse contexto de crise sistêmica e de debates acalorados, emergem vozes que buscam resgatar fundamentos éticos e propor alternativas ao modelo puramente retributivo ou incapacitador.

Uma dessas vozes influentes foi a do Papa Francisco. Desde o início de seu pontificado, Francisco dedicou atenção particular às "periferias existenciais", categoria na qual inclui frequentemente os encarcerados4. Suas intervenções, seja em discursos a juristas, seja em documentos magisteriais, trouxeram à tona uma crítica contundente aos excessos punitivistas e um apelo constante à centralidade da dignidade humana e da misericórdia. Ele propôs um paradigma de "justiça humanizada", que busca transcender a lógica meramente punitiva. Esta justiça reconhece a dignidade intrínseca de todos os envolvidos - vítimas, ofensores e comunidade -, prioriza a reabilitação e a reinserção social como finalidades essenciais da pena, critica e rejeita práticas que atentem contra essa dignidade - como a pena de morte, a prisão perpétua e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes5 -, compreende o fenômeno criminal em sua complexidade social e mantém viva a esperança na capacidade de mudança do ser humano.

A misericórdia ocupa um lugar absolutamente central neste pensamento, não como sentimentalismo, mas como a viga mestra que sustenta a vida da Igreja e o núcleo do evangelho, sendo chave para interpretar a realidade. O Jubileu Extraordinário da Misericórdia (2015-2016) sublinhou essa centralidade, definindo a misericórdia como "o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro"6. Justiça e misericórdia não se opõem; a segunda eleva e completa a primeira, sendo sua plenitude, numa visão que ecoa a tradição teológica que compreende a misericórdia como a forma superior da justiça7. A misericórdia "exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar [...] Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a num evento superior onde se experimenta o amor, que está na base duma verdadeira justiça"8. Uma justiça informada pela misericórdia busca a recuperação da pessoa e a restauração das relações. Este conceito assenta-se sobre a dignidade inalienável da pessoa humana, fundamento da doutrina social da igreja9. Essa dignidade, que "subsiste (para além de toda circunstância)"10, não pode ser perdida nem mesmo por quem cometeu os crimes mais graves, sendo a base para a crítica a todas as práticas desumanizadora.

Ancorado nesses fundamentos, Francisco desenvolveu um olhar crítico sobre os sistemas penais. Sua rejeição à pena de morte é absoluta, considerada "inadmissível" porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, com um compromisso da Igreja em propor sua abolição mundial11. Os argumentos baseiam-se na dignidade ontológica, na esperança evangélica da possibilidade de conversão e na falibilidade dos sistemas judiciais. Intimamente ligada está a condenação da prisão perpétua, chamada de "pena de morte oculta", pois "priva os condenados da possibilidade de redenção" e representa uma renúncia à esperança, negando a possibilidade de reabilitação e reintegração. As condições frequentemente desumanas do encarceramento (superlotação, violência endêmica, falta de higiene, assistência médica adequada, falta de oportunidades de trabalho e estudo) são denunciadas como transformadoras de prisões em meros "depósitos de carne humana", violando normas internacionais como as regras mínimas da ONU para tratamento de presos (Regras de Mandela)12 e preceitos constitucionais. Francisco também alertou contra o "populismo penal", a tentação de explorar o medo para fins políticos com soluções fáceis e midiáticas, buscando "bodes expiatórios" e criando "inimigos sociais" para desviar a atenção das causas estruturais da violência, alimentando a "cultura do controle"13. Por fim, apontou a seletividade do sistema penal, que frequentemente pune com mais rigor os crimes cometidos pelos mais pobres e marginalizados, enquanto delitos associados aos poderosos (corrupção, evasão fiscal, crimes ambientais) podem receber tratamento mais brando ou escapar à persecução14. A verdadeira prevenção do crime, argumenta, passa necessariamente pela promoção da justiça social15.

Contrapondo-se às críticas, delinearam-se propostas para uma justiça que reabilita e reintegra. A finalidade da sanção penal deve ser redefinida, visando primordialmente à recuperação da pessoa e à sua reinserção na comunidade, não apenas à retribuição ou incapacitação. A punição só encontra legitimidade ética se ordenada a um bem futuro. A prisão deve ser estruturada para oferecer oportunidades reais de mudança e crescimento pessoal, buscando ser um lugar de "reeducação e de reinserção social", como objetiva, normativamente, a lei de execução penal brasileira. A esperança é central: a convicção de que a mudança é possível e que toda pessoa merece vislumbrar um futuro, mesmo após graves erros. Esta perspectiva teológica e psicológica motiva a adesão a processos de reeducação e ajuda a romper ciclos de reincidência. A reintegração social, contudo, não é tarefa exclusiva do Estado, mas exige o envolvimento ativo da comunidade (famílias, associações, empresas) para superar o estigma e acolher egressos, cultivando uma "cultura do encontro" que se contraponha à "cultura do descarte". Muitos desses pronunciamentos convergem com os princípios da justiça restaurativa, que busca reparar os danos causados pelo crime através do diálogo entre vítima, ofensor e comunidade, priorizando a cura das relações sobre a mera punição passiva. A insistência de Francisco na misericórdia, no perdão como possibilidade, na necessidade de olhar para as feridas e buscar a reconciliação dialogou profundamente com a filosofia restaurativa. De forma mais radical, qualquer esforço de humanização seria incompleto sem atacar as causas sociais e econômicas da criminalidade, como as estruturas de desigualdade e a falta de acesso a direitos básicos (educação, saúde, trabalho, moradia).

A implementação desta visão humanizada enfrenta desafios significativos. Existe a tensão teórica e prática entre a natureza potencialmente discricionária da misericórdia e as exigências de normas gerais e objetivas no direito moderno. A proposta não é abandonar regras, mas interpretá-las e aplicá-las com um suplemento de humanidade, reconhecendo a singularidade de cada caso sem ferir a legalidade. Obstáculos práticos incluem subfinanciamento crônico dos sistemas prisionais e de medidas alternativas, superlotação que inviabiliza programas individualizados, e a própria cultura organizacional punitivista. É crucial equilibrar a perspectiva humanizadora voltada para o ofensor com a indispensável atenção às necessidades e direitos das vítimas. A misericórdia busca, em última instância, a restauração de relações fraturadas, o que inclui o reconhecimento do sofrimento da vítima e a busca por reparação, mas encontrar mecanismos institucionais que efetivamente deem conta dessa complexidade é um desafio monumental. A justiça restaurativa oferece pistas metodológicas, mas sua aplicação em larga escala ainda enfrenta resistências. Essas resistências manifestam-se no plano político, com o apelo eleitoral do "populismo penal"; no plano cultural, com sentimentos de vingança exacerbados pela mídia; e no plano social, com o forte estigma associado ao passado criminal. Diante disso, apela-se à coragem e ao compromisso ético dos profissionais do direito - juízes, legisladores, advogados, promotores, defensores, acadêmicos - para resistirem a pressões, aplicarem a lei com discernimento e buscarem soluções que aliem justiça e misericórdia. Apesar das dificuldades, iniciativas como as APACs - Associações de Proteção e Assistência aos Condenados no Brasil, baseadas na coresponsabilidade, valorização humana e envolvimento comunitário, demonstram que métodos alternativos podem apresentar resultados promissores na redução da reincidência, mostrando que uma justiça mais humana é possível.

A reflexão sobre misericórdia e dignidade, promovida pelo Papa Francisco, ofereceu uma perspectiva potencialmente mais eficaz para a construção de sociedades mais seguras e pacíficas a longo prazo do que modelos exclusivamente retributivos. A humanização da justiça não significa impunidade, mas uma compreensão mais profunda da complexidade humana e social, apostando na capacidade de mudança inerente a cada pessoa. Essa transformação exige reflexão crítica e ação coordenada de legisladores, juízes, gestores, acadêmicos e cidadãos, cultivando uma cultura do encontro e da solidariedade. O convite final do Papa Francisco, resumidamente, é para uma conversão do olhar: ver no outro, mesmo naquele que errou, um ser humano digno de uma justiça que não esmague, mas que busque levantar e oferecer um novo começo, construindo pontes onde hoje existem muros e semeando esperança onde prevalece o desespero.

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1 WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: A Nova Gestão da Miséria nos Estados Unidos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

2 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

3 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e Ordem Social na Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

4 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013.

5 PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020.

6 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948.

7 ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: Um Novo Foco sobre o Crime e a Justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.

8 PAPA FRANCISCO. Bula Misericordiae Vultus. 11 abr. 2015. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2015.

9 PAPA FRANCISCO. Discurso aos participantes no XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal. 15 nov. 2019.

10 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005.

11 DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração Dignitas Infinita. 2 abr. 2024. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2024.

12 KASPER, Walter. Misericórdia: Conceito fundamental do Evangelho - Chave da vida cristã. Prior Velho: Paulinas Editora, 2013.

13 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Assembleia Geral. Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela). Resolução 70/175, 17 dez. 2015.

14 FERREIRA, Valdeci Antônio. APAC: A Revolução do Sistema Penitenciário. Belo Horizonte: O Lutador, 2006.

15 BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.

Leonardo Soriano de Souza

Leonardo Soriano de Souza

Escreve sobre Direito Penal e Processo Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Pesquisa da PUC Minas "Mídia e Garantismo Penal".

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