Tributação dos serviços digitais
O ensaio analisa o panorama da tributação dos serviços digitais, explorando os conflitos de competência dos entes federativos, interpretações jurisprudenciais e desafios para efetiva tributação.
quarta-feira, 21 de maio de 2025
Atualizado às 14:51
Vivenciamos uma transformação global impulsionada por novas tecnologias que remodela diversos setores da sociedade, exigindo adaptações em múltiplas áreas, inclusive no direito tributário.
Os serviços digitais, especialmente os de streaming, emergem como novo paradigma de consumo de conteúdo, demandando adequações no sistema tributário brasileiro. A tributação destes serviços tem sido objeto de intensos debates jurídicos, sobretudo pela dificuldade de enquadramento nas hipóteses de incidência tributária tradicionalmente previstas na legislação. A economia digital apresenta características particulares que desafiam os conceitos clássicos do direito tributário: A desmaterialização dos bens e serviços, a dificuldade na determinação da territorialidade, a complexidade na identificação do prestador e do tomador de serviços, além da rápida evolução tecnológica que frequentemente antecede as atualizações legislativas.
Neste contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar o tratamento tributário conferido aos serviços digitais no ordenamento jurídico brasileiro, identificando os principais desafios e controvérsias existentes.
Para compreender adequadamente a tributação dos serviços digitais, é fundamental estabelecer sua conceituação jurídica. Os serviços digitais podem ser entendidos como prestações realizadas por meio de tecnologias da informação e comunicação, sem a necessidade de presença física das partes envolvidas, resultando em utilidades imateriais que satisfazem necessidades do usuário.
No caso específico do streaming, trata-se do fluxo que permite, sem a realização de download, ou seja, sem transferência do arquivo digital para o computador local, assistir vídeos, ouvir músicas ou ler livros de forma contínua. Esta definição é crucial para determinar a incidência tributária, uma vez que evidencia seu caráter híbrido, conjugando obrigações de dar e fazer.
A CF/88 estabelece as competências tributárias dos entes federativos, cabendo aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir o ICMS - Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação e aos municípios a competência para instituir o ISS - Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza. Esta divisão de competências, contudo, tem sido fonte de controvérsias quando aplicada aos serviços digitais, pois sua natureza híbrida por vezes dificulta o enquadramento exclusivo em uma única hipótese de incidência tributária.
No âmbito infraconstitucional, destacam-se a lei complementar 116/03, que dispõe sobre o ISS, e a lei complementar 157/16, que alterou a LC 116/03 para incluir expressamente alguns serviços digitais na lista de serviços tributáveis pelos municípios.
A LC 157/16 incluiu o item 1.09 na lista de serviços anexa à LC 116/03, prevendo a incidência do ISS sobre "disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos", contemplando assim os serviços de streaming. Paralelamente, alguns estados tentaram tributar estes serviços por meio do ICMS, gerando conflito de competência tributária que precisou ser dirimido pelo STF.
O STF, ao julgar as ADIns 5.659 e 5.958, sinalizou pela incidência do ISS sobre os serviços de streaming e disponibilização de conteúdos digitais. Estabeleceu-se o entendimento de que, mesmo envolvendo obrigações mistas ou complexas (dar e fazer), estes serviços caracterizam-se predominantemente como prestação de serviços, estando sujeitos ao ISS e não ao ICMS.
Esta decisão foi fundamentada na compreensão de que estes serviços digitais envolvem obrigações que conjugam de forma inseparável elementos de dar e fazer em um mesmo negócio jurídico, prevalecendo sua tributação pelo ISS conforme precedentes anteriores do próprio Tribunal.
Um dos principais conflitos na tributação dos serviços digitais refere-se à dicotomia entre a incidência do ISS (municipal) e do ICMS (estadual). Esta controvérsia surge principalmente da natureza híbrida de certas operações digitais, que podem envolver tanto elementos de prestação de serviços quanto de circulação de mercadorias ou comunicação.
No caso específico do streaming, a discussão centrou-se na caracterização jurídica da operação: Seria uma prestação de serviço (sujeita ao ISS) ou uma forma de comunicação/circulação de mercadoria digital (sujeita ao ICMS).
O STF, ao analisar a questão, decidiu pela prevalência do ISS, afastando a tributação pelo ICMS nestas operações.
A incidência do ISS sobre os serviços digitais traz consigo importante questão de ordem federativa. Como a regra geral estabelece que o ISS é devido no local do estabelecimento prestador, isso pode resulta significativa concentração de receitas tributárias em poucos municípios, especialmente aqueles onde estão sediadas as grandes empresas de tecnologia. Esta situação potencializa desigualdades regionais e pode desencadear uma guerra fiscal entre municípios, que tentariam atrair estas empresas por meio de incentivos fiscais.
Como alertado na literatura especializada: "Como a regra geral é de que o ISS é devido no local do estabelecimento prestador, isso implicaria que todo o ISS de streaming no Brasil iria para apenas um único município. Fato que poderá desencadear um acirramento das desigualdades regionais e uma guerra fiscal". Os serviços digitais também apresentam desafios quanto à determinação da territorialidade para fins de tributação. Como são prestados em ambiente virtual, muitas vezes por empresas sediadas no exterior, surgem questões complexas sobre o local da ocorrência do fato gerador e o sujeito competente para exigir o tributo. Este aspecto é particularmente relevante quando se trata de serviços digitais transfronteiriços, onde o prestador está localizado em jurisdição distinta daquela onde o serviço é consumido.
Nestes casos, a lei 10.865/04 estabelece a incidência de PIS/Pasep e Cofins sobre a importação de serviços, mas sua aplicação enfrenta dificuldades quanto à definição do "resultado verificado no país".
Os serviços de streaming representam um dos segmentos mais relevantes da economia digital atual.
Conforme análise jurídica recente, "a tributação desses serviços tem sido um tema de debate no Brasil", especialmente quanto ao tributo adequado a incidir sobre estas operações.
A LC 157/16, ao incluir o item 1.09 na lista de serviços tributáveis pelo ISS, contemplou expressamente a disponibilização de conteúdos audiovisuais por meio da internet, enquadrando os serviços de streaming. Contudo, a mesma lei estabeleceu uma exceção para "a distribuição de conteúdo pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado", o que gerou questionamentos sobre possível violação ao princípio da isonomia tributária.
Em termos práticos, isto significa que plataformas de streaming como Netflix, Amazon Prime Video e Spotify estão sujeitas ao ISS, com alíquotas que podem variar de 2% a 5%, dependendo do município onde estiver situado o prestador de serviço.
O licenciamento ou cessão de uso de software também tem sido objeto de controvérsia quanto à incidência tributária.
O STF, no julgamento da ADIn 5.659, firmou entendimento pela incidência do ISS em detrimento do ICMS nestas operações. Esta decisão representou mudança significativa no tratamento tributário deste segmento, pois anteriormente havia uma distinção entre software de prateleira (sujeito ao ICMS) e software personalizado (sujeito ao ISS). Com a evolução tecnológica e o surgimento dos modelos de SaaS - Software as a Service, a jurisprudência evoluiu para reconhecer a preponderância do caráter de serviço nestas operações.
O surgimento do metaverso - ambientes virtuais imersivos onde usuários interagem e realizam transações - representa nova fronteira para tributação digital. Estudos recentes apontam que "a incidência de ISS depende primeiramente do seu enquadramento na LC 157/16, independente de ocorrer no meio físico ou digital". Contudo, "o metaverso ainda é um conceito novo ainda em fase de desenvolvimento, o que pode justificar, de forma genérica, a falta de regulamentos que contemple todas as questões que envolvem este universo". Esta situação demanda análise casuística das operações realizadas nestes ambientes virtuais para determinar a incidência tributária aplicável.
Aspecto crucial da economia digital é o valor gerado a partir da utilização de dados dos usuários. Como destacado na literatura especializada, as grandes empresas digitais geram receitas significativas a partir destes dados, mas os mecanismos tradicionais de tributação enfrentam dificuldades para alcançar adequadamente esta renda. Os estudos indicam que "o regime de retenção na fonte, por si só, não seria suficiente para alcançar essa renda", evidenciando a necessidade de adaptações no sistema tributário para contemplar adequadamente esta nova forma de geração de valor.
A necessidade de modernização do sistema tributário brasileiro tem impulsionado propostas de reforma, como a PEC 110/19, que objetiva criar um imposto único - o IBS - Imposto de Bens e Serviços. Esta proposta poderia simplificar significativamente a tributação dos serviços digitais, eliminando conflitos de competência entre ISS e ICMS.
Na mesma linha, especialistas têm defendido que "a reforma fiscal e tributária, tão desejada pela sociedade, não pode mais esperar e a criação de um imposto único que agrega a cobrança de vários impostos, incluindo o ISS, cujo modelo foca no consumo e não mais na produção é um caminho alternativo que pode trazer segurança para o federalismo fiscal brasileiro".
As discussões internacionais sobre tributação da economia digital, especialmente no âmbito da OCDE, têm influenciado o debate brasileiro. Há uma tendência global de buscar soluções que permitam tributar adequadamente os serviços digitais, especialmente quando prestados por empresas não residentes.
Neste sentido, alguns estudos sugerem "soluções para a tributação ser feita de forma mais justa inspirada em parâmetros internacionais de tributação de consumo de bens e serviços digitais", buscando alinhamento com as melhores práticas globais.
A tributação dos serviços digitais no Brasil enfrenta desafios significativos, decorrentes tanto da natureza inovadora destes serviços quanto das limitações do sistema tributário nacional.
A análise realizada permite concluir que, no atual estágio normativo brasileiro, prevalece a incidência do ISS sobre os principais serviços digitais, como streaming e licenciamento de software, conforme confirmado pela jurisprudência recente do STF.
Contudo, persistem problemas estruturais que merecem atenção, como a concentração de receitas em poucos municípios, dificuldades na tributação de serviços prestados por não residentes e necessidade de adequação normativa para contemplar novas realidades tecnológicas, como o metaverso. A falta de agilidade para resolver as disputas entre os entes federados na determinação da competência para tributar representa sério agravante em um cenário em constante evolução.
A reforma tributária em discussão no país apresenta-se como uma oportunidade para simplificar e modernizar a tributação dos serviços digitais, potencialmente substituindo a dicotomia ISS/ICMS por um imposto único sobre bens e serviços, alinhado com tendências internacionais de tributação da economia digital. Esta mudança poderia oferecer maior segurança jurídica aos contribuintes e garantir uma distribuição mais equitativa das receitas tributárias entre os entes federativos.
Enquanto tais mudanças estruturais não se concretizam, é fundamental que a jurisprudência e doutrina continuem a oferecer interpretações que conciliem a legislação existente com as características peculiares dos serviços digitais, garantindo tanto a arrecadação necessária ao financiamento do Estado quanto o respeito aos princípios constitucionais tributários e a segurança jurídica indispensável ao desenvolvimento econômico.
O sistema tributário brasileiro encontra-se em um momento crucial de transição, buscando adaptar-se às realidades da economia digital. Para que esta adaptação seja bem-sucedida, é necessário que as discussões sobre reforma tributária incorporem efetivamente as peculiaridades dos serviços digitais, evitando que novas tecnologias e modelos de negócio enfrentem os mesmos problemas de enquadramento e conflitos de competência que observamos atualmente.
Ademais, é importante que o Brasil acompanhe e participe ativamente das discussões internacionais sobre tributação da economia digital, buscando soluções coordenadas que evitem tanto a dupla tributação quanto a não tributação destas atividades. Somente com um sistema tributário moderno, eficiente e justo será possível garantir que a economia digital contribua adequadamente para o financiamento do Estado, sem prejudicar a inovação e o desenvolvimento tecnológico nacional.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).
BRASIL. Lei Complementar nº 157, de 2016. Altera a Lei Complementar nº 116/2003 para incluir serviços digitais na lista do ISS.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5.659 e nº 5.958. Julgamento sobre a incidência do ISS sobre serviços digitais.
OCDE. Discussões internacionais sobre tributação da economia digital.


