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Grandes empreendimentos e mobilidade urbana: Impactos jurídicos no uso do solo

O artigo analisa os impactos viários dos empreendimentos imobiliários e o papel do licenciamento, dos TACs e da judicialização na preservação da mobilidade urbana e da legalidade urbanística.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Atualizado às 13:35

Direito imobiliário e mobilidade urbana: Os reflexos dos grandes empreendimentos no trânsito e no transporte público

Introdução

O crescimento desordenado das cidades não se mede apenas pelo espraiamento horizontal ou pela verticalização agressiva do espaço urbano. Ele se manifesta, sobretudo, na tensão silenciosa entre o avanço dos empreendimentos imobiliários e a capacidade das cidades de suportar esse avanço - especialmente no que diz respeito ao trânsito e ao transporte coletivo. A expansão urbana, quando mal planejada, atropela o fluxo viário, sobrecarrega corredores estruturais e compromete a qualidade de vida da população.

O que antes se apresentava como uma questão de engenharia urbana, hoje se revela um desafio jurídico de primeira ordem. A implantação de grandes empreendimentos - como condomínios, centros comerciais ou edifícios corporativos - carrega consigo impactos diretos sobre a mobilidade urbana, exigindo do Poder Público, dos incorporadores e dos órgãos licenciadores uma atuação integrada, responsável e, acima de tudo, juridicamente fundamentada.

Neste contexto, o licenciamento urbanístico passa a desempenhar papel central, não apenas como exigência formal, mas como filtro de racionalidade e justiça no uso do espaço urbano. A exigência de RIT - Estudos de Impacto de Trânsito, a assinatura de TACs - Termos de Ajustamento de Conduta e a judicialização crescente das obras que ignoram esses mecanismos revelam a face jurídica de um problema que afeta o cotidiano de milhões.

Este artigo examina os reflexos jurídicos da relação entre Direito Imobiliário e mobilidade urbana, analisando os mecanismos legais de mitigação, a responsabilidade dos incorporadores e o crescente protagonismo do Judiciário no controle da legalidade urbanística. Afinal, mais do que um debate técnico, trata-se de uma questão de cidadania, acesso à cidade e prevalência do interesse público sobre a especulação desmedida.

Impactos dos empreendimentos sobre o trânsito e o transporte coletivo

A construção de grandes empreendimentos imobiliários - como condomínios verticais, shopping centers, polos comerciais e complexos corporativos - representa mais do que a ocupação de um terreno. Cada novo edifício que se ergue carrega consigo a potencial geração de centenas ou milhares de deslocamentos diários, seja por veículos particulares, transporte público, aplicativos de mobilidade ou mesmo a pé.

Esse efeito é conhecido no urbanismo como "geração de viagens": a capacidade de um empreendimento de atrair deslocamentos em seu entorno, alterando significativamente o fluxo viário, a ocupação das vias e a demanda por transporte coletivo. A depender do porte e da localização da obra, os reflexos podem ser massivos, resultando em engarrafamentos sistemáticos, sobrecarga de linhas de ônibus ou metrô e degradação do entorno urbano.

Nas regiões centrais ou em áreas de adensamento acelerado, os efeitos são ainda mais evidentes. Em muitos casos, a infraestrutura urbana não é previamente ampliada ou adaptada para comportar o aumento de tráfego, resultando em conflitos viários, aumento no tempo de deslocamento e comprometimento da qualidade ambiental urbana, inclusive com aumento da poluição sonora e atmosférica.

O impacto, no entanto, não se limita ao transporte individual. O transporte coletivo também sofre consequências diretas da má articulação entre urbanismo e mobilidade. O aumento da população flutuante em determinadas zonas da cidade gera pressão sobre linhas de ônibus e metrô, muitas vezes sem qualquer reforço ou redistribuição do sistema, agravando a superlotação e desincentivando o uso de alternativas sustentáveis ao carro.

O problema se agrava quando os empreendimentos são aprovados sem o devido planejamento integrado, sem a exigência de RIT - Estudos de Impacto de Trânsito ou sem a imposição de obrigações mitigadoras ao incorporador. Nessas hipóteses, o resultado é uma externalização indevida dos custos urbanísticos para a coletividade, enquanto os lucros permanecem privados.

A constatação desses efeitos justifica a atuação cada vez mais exigente do Poder Público no processo de licenciamento urbanístico e o crescimento da litigiosidade envolvendo obras de grande porte. A cidade, afinal, é um organismo coletivo - e sua mobilidade não pode ser comprometida por decisões isoladas.

Licenciamento urbanístico e exigências de mitigação

O licenciamento urbanístico deixou de ser uma mera formalidade burocrática para se tornar um instrumento de controle jurídico e técnico sobre os efeitos concretos da expansão urbana. Diante dos impactos que grandes empreendimentos exercem sobre a mobilidade das cidades, especialmente em zonas já saturadas, o processo de licenciamento precisa cumprir uma função preventiva, garantindo que a implantação de novos edifícios seja compatível com a infraestrutura urbana existente - ou que esta seja adequada antes da conclusão da obra.

Entre as exigências mais relevantes nesse contexto está a apresentação do RIT - Relatório de Impacto de Trânsito. Esse documento técnico, previsto em diversos planos diretores e legislações municipais, tem por objetivo identificar, quantificar e propor soluções para os efeitos que o empreendimento causará no tráfego local. Trata-se de uma medida que traduz, em linguagem urbanística, o princípio da função social da propriedade: o uso privado do solo urbano deve respeitar os limites do interesse coletivo e da sustentabilidade viária

Decisões administrativas e judiciais recentes têm reafirmado a obrigatoriedade do RIT, mesmo quando exigido por normas supervenientes. O entendimento consolidado, como demonstra o REsp 1.918.198/DF (STJ), é de que a dispensa indevida de estudos de impacto, por decreto local, contraria normas federais como o Estatuto da Cidade e o Código de Trânsito Brasileiro, e autoriza a invalidação de alvarás, habite-se e licenças concedidas sem observância desses requisitos essenciais.

Além disso, a jurisprudência tem sido firme em afastar a alegação de caso fortuito quando o incorporador tenta justificar o atraso na entrega do imóvel pela posterior exigência de RIT ou de outras medidas mitigadoras. O entendimento é claro: trata-se de risco inerente à atividade empresarial, que deve ser internalizado pelo empreendedor desde a concepção do projeto, não podendo ser repassado à coletividade nem aos adquirentes dos imóveis.

Nessa lógica, o licenciamento se torna não apenas um requisito para construção, mas uma etapa de responsabilidade ambiental e social. O não cumprimento das condicionantes impostas nesse processo - como a execução de obras viárias, a construção de baias de ônibus, ciclovias, calçadas e outros ajustes estruturais - tem sido causa suficiente para a suspensão de obras, cassação de licenças e até ações civis públicas com repercussão econômica significativa.

A eficiência e legalidade do licenciamento, portanto, são o primeiro filtro para garantir que o desenvolvimento urbano não se transforme em colapso viário. E o advogado que atua na área imobiliária deve dominar essas exigências com profundidade, tanto para orientar preventivamente os incorporadores quanto para identificar vícios que ensejem responsabilização futura.

TAC's e obrigações acessórias dos incorporadores

A mitigação dos impactos viários não se limita à fase prévia de licenciamento. Frequentemente, o Poder Público e os empreendedores firmam TACs - Termos de Ajustamento de Conduta ou outras obrigações acessórias como forma de compatibilizar a implementação do empreendimento com as necessidades de infraestrutura urbana.

Os TACs urbanísticos se consolidaram como mecanismos eficientes para formalizar compromissos do incorporador quanto à realização de obras compensatórias, execução de ajustes viários, ampliação de calçadas, construção de baias de ônibus, instalação de passarelas ou mesmo aportes financeiros destinados a intervenções públicas nas áreas afetadas. Esses instrumentos extrajudiciais são, muitas vezes, exigência de órgãos ambientais, de mobilidade e do Ministério Público, sobretudo quando se trata de polos geradores de tráfego.

A validade jurídica dos TACs está respaldada pela lei 7.347/85 (lei da ação civil pública), que autoriza sua celebração em matéria de interesse difuso, coletivo ou ambiental, como é o caso dos impactos sobre a mobilidade urbana. Além disso, esses acordos representam uma alternativa concreta à judicialização e um caminho para viabilizar a obra sem prejuízo à cidade - desde que cumpridos integralmente.

O inadimplemento das obrigações previstas no TAC, por sua vez, pode gerar consequências severas, incluindo a suspensão de alvarás, embargo da obra, execução forçada do compromisso e responsabilização cível e administrativa do incorporador. Em diversos precedentes, os tribunais têm reafirmado que a simples concessão de alvará ou habite-se não exime o empreendedor de cumprir as obrigações assumidas, sobretudo quando há condicionantes expressas atreladas à mitigação de impacto viário.

Vale mencionar o caso do Centrad - Centro Administrativo do Distrito Federal, cuja entrega foi considerada inválida judicialmente devido ao descumprimento de medidas mitigadoras impostas no licenciamento, conforme reconhecido em ação civil pública decidida pela 5ª turma Cível do TJ/DFT (Acórdão 1.317.949). O empreendimento foi considerado irregular mesmo após conclusão física das obras, revelando que o cumprimento formal de etapas administrativas não suprime o dever de observância material das contrapartidas exigidas.

Em síntese, o TAC e os compromissos urbanísticos acessórios são instrumentos de justiça urbana, funcionando como ponto de equilíbrio entre o direito de construir e o dever de proteger a cidade. Para o advogado que atua no setor, conhecer os limites, as obrigações típicas e os riscos jurídicos desses instrumentos é indispensável para prevenir litígios e assegurar a regularidade plena dos empreendimentos.

Judicialização dos grandes empreendimentos

A crescente judicialização dos empreendimentos imobiliários não é fruto de um sistema jurídico excessivamente intervencionista, mas sim de um modelo de urbanização que frequentemente ignora limites técnicos, legais e sociais. Quando os empreendedores negligenciam os impactos urbanos - especialmente sobre o trânsito e o transporte coletivo -, e o Poder Público se omite na fiscalização ou flexibiliza indevidamente as exigências legais, o Judiciário é chamado a agir como instância de contenção.

Hoje, é cada vez mais comum a proposição de ações civis públicas, ações populares e embargos administrativos ou ambientais com o objetivo de suspender obras, anular licenças e responsabilizar incorporadoras que descumpram medidas mitigadoras ou atuem à revelia de estudos técnicos obrigatórios.

Casos como o do REsp 1.918.198/DF (STJ) evidenciam esse cenário: o STJ reconheceu a ilegalidade de um decreto distrital que dispensava a exigência de RIT e LC para polos geradores de tráfego, autorizando, assim, a anulação de licenças e atos subsequentes - como alvarás e habite-se - emitidos com base em regras incompatíveis com o ordenamento jurídico nacional.

Outro exemplo emblemático é o julgamento do REsp 1.820.792/RN, no qual o STJ validou a anulação administrativa de uma licença de construção já concedida, diante da omissão de aspectos críticos como impacto paisagístico e de trânsito em área ambientalmente sensível. Mesmo com a obra em andamento, prevaleceu o entendimento de que o direito coletivo à regularidade urbanística e ambiental não cede à pretensão de continuidade da obra fundada em ato viciado.

O que se observa nesses precedentes é a reafirmação do poder-dever da Administração Pública de rever seus próprios atos ilegais, nos termos da súmula 473 do STF, e o reconhecimento de que a legalidade urbanística é condição para a validade da ocupação do solo urbano. A concessão de licenças sem cumprimento das exigências técnicas ou mitigadoras não gera direito adquirido ao erro.

Essa tendência tem implicações diretas para os negócios imobiliários. A insegurança jurídica gerada por licenças irregulares, a paralisação de obras e os bloqueios de repasses financeiros - como no caso do Centrad no DF - afetam diretamente a viabilidade econômica do empreendimento e podem comprometer sua entrega.

Por isso, a judicialização, longe de ser vista apenas como ameaça, deve ser compreendida como um sinal de alerta sistêmico: onde faltam planejamento, legalidade e responsabilidade, o Judiciário será chamado a intervir. O papel do operador do Direito, nesse cenário, é antecipar riscos, promover conformidade e atuar de forma estratégica na mediação entre o interesse privado e os limites do interesse público urbano.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1918198/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, j. 16 ago. 2022, DJe 22 ago. 2022.

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1820792/RN, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 5 dez. 2019, DJe 22 out. 2020.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS (TJDFT)

3 TJDFT. Acórdão 1390443, Processo nº 0704515-61.2016.8.07.0016, Rel. Juiz Gilmar Tadeu Soriano, Terceira Turma Recursal, j. 7 dez. 2021, DJe 15 dez. 2021.

4 TJDFT. Acórdão 1387810, Processo nº 0707606-68.2020.8.07.0001, Rel. Desa. Maria de Lourdes Abreu, 3ª Turma Cível, j. 18 nov. 2021, DJe 7 dez. 2021.

5 TJDFT. Acórdão 1345370, Processo nº 0701022-31.2020.8.07.0018, Rel. Desa. Leila Arlanch, 7ª Turma Cível, j. 2 jun. 2021, DJe 30 jun. 2021.

6 TJDFT. Acórdão 1317949, Processo nº 0052081-12.2014.8.07.0018, Rel. Des. Josaphá Francisco dos Santos, 5ª Turma Cível, j. 24 fev. 2021, DJe 4 mar. 2021.

7 TJDFT. Acórdão 1290280, Processo nº 0710879-60.2017.8.07.0001, Rel. Desa. Leila Arlanch, 7ª Turma Cível, j. 14 out. 2020, DJe 23 out. 2020.

8 TJDFT. Acórdão 1289475, Processo nº 0040842-44.2014.8.07.0007, Rel. Desa. Maria de Lourdes Abreu, 3ª Turma Cível, j. 30 set. 2020, DJe 15 out. 2020.

Gabriel de Sousa Pires

VIP Gabriel de Sousa Pires

Advogado, ex-Conselheiro Seccional e atual membro da Comissão de Seleção da OAB-DF. Especialista em Direito Contratual, Imobiliário e Empresarial. Sócio da J Pires Advocacia & Consultoria

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