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Caso ramagem: Câmara x STF. Quem tem razão?

O Parlamento quer esticar a corda da democracia. É uma manobra. Gera tensão entre os Poderes.  Não cola o argumento retórico de que invadiu à separação dos Poderes.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Atualizado às 11:11

Tensão entre a Câmara dos Deputados e o STF. O deputado Ramagem foi denunciado na ação penal 2.668/DF, batizada de "trama golpista".

Uma pausa: Aliás, recentemente, foram divulgados áudios, encontrados no notebook da Polícia Federal, onde um agente diz: "O Alexandre de Moraes realmente tinha que ter tido a cabeça cortada". "Pó, matar meio mundo". "Não ia ter posse, cara, nós não íamos deixar"

Pois é. O geral fato é que, sim, estivemos pertinho de um golpe de Estado.  

Seria a barbárie. Um atentado à democracia. Um golpe sangrento: cabeças cortadas. Queriam sangue. A tortura. A censura. A ditadura que traz morte.

Voltando. O STF recebeu a denúncia em desfavor do deputado Ramagem pelos supostos crimes:  

  • Dano qualificado;
  • Deterioração de patrimônio tombado;
  • Abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
  • Golpe de Estado;
  • Organização criminosa.

Câmara suspende a ação penal

Ocorre que, em 7/5/25, a Câmara dos Deputados fez a resolução 18/25, dispondo o seguinte:

"Art. 1º Fica sustado, nos termos do art. 53, § 3º, da Constituição Federal, o andamento da ação penal contida na petição 12.100, em curso no STF"

Reação do STF

Não obstante, a 1ª turma do STF, por unanimidade, em sessão virtual extraordinária realizada 9/5/25 e 13/5/25, suspendeu parcialmente a ação penal 2668, somente em relação aos crimes praticados após a diplomação do deputado Ramagem, que foi em dezembro de 2022, ou seja:

  • Dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima (art. 163, parágrafo único, I, III e IV, do CP)
  • Deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da lei 9.605/1998), até o término do mandato"

Entretanto, decidiu, o STF, ainda, pelo prosseguimento da ação penal 2668, normalmente, em relação às demais infrações penais, alegando terem sido supostamente praticados por Ramagem, antes da diplomação como deputado (dezembro de 2022):

  • Organização criminosa (art. 2º, caput, §§ 2º e 4º, II, da lei 12.850/13);
  • Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359- L do CP);
  • Golpe de Estado (art. 359-M do CP), em face da inaplicabilidade do §3º, do art. 53 da Constituição Federal aos crimes praticados antes da diplomação.

E agora, José? Quem tem razão?

Contra-ataque da Câmara

A mesa da Câmara dos Deputados, por ter legitimidade, distribuiu no STF, ADPF - arguição de descumprimento de preceito fundamental em face acórdão da 1ª turma do STF, que, afastou parcialmente a aplicação da resolução da Câmara dos Deputados 18/25.

A Câmara pondera que a decisão do STF violou os preceitos fundamentais:  separação de Poderes (art. 2º da CF) e da imunidade parlamentar formal (art. 53, § 3º CF), vale dizer, processual.

Há o cabimento da ADPF?

Tem jurista que diz que não cabe. Discordo. Cabe, sim, uma ação constitucional. O nome é ADPF.

Pense-se, por exemplo: Se a 1ª turma do STF se afasta, totalmente, da resolução da Câmara, não caberia nenhum instrumento apto a tutelar o direito?

Por favor: não confundir com recurso que são meios de impugnação expressamente previstos, taxativamente, no art. 994 do CPC.

Porém, falamos da ação constitucional ADPF que tem outra natureza jurídica.  

Mas, poderia ter, em tese, embargos de declaração para a Primeira Turma, o que seria um recurso e não ação constitucional.

O constituinte originário criou mecanismo de controle de constitucionalidade dos atos normativos. O § 1º do art. 102, CF/88, prevê a ADPF - arguição de descumprimento de preceito fundamental, julgada pelo STF, na forma da lei 9.882/1999, que regulamentou o dispositivo constitucional.

À vista disso, o art. 1º da lei 9.882/1999, estabelece que:

"A arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o STF, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público"

Cumpre destacar, por necessário, que sendo relator o eminente ministro Gilmar Mendes, na ADPF 33/PA, foi decidido pelo STF:

"E, ao fazê-lo, assinalo que a arguição de descumprimento de preceito fundamental, instituída pela própria Constituição (art. 102, § 1º) e disciplinada pela lei 9.882/1999, qualifica-se como típica ação constitucional destinada a proteger e a preservar a integridade de preceitos fundamentais revestidos, em decorrência de sua natureza mesma, de um claro sentido de essencialidade, configurando "modalidade de integração entre os modelos de perfil difuso e concentrado no Supremo Tribunal Federal"

O que é preceito fundamental?

Importante: a CF e a lei infraconstitucional não definem o que seja preceito fundamental. Assim, esse papel cabe à doutrina e, ao STF, por último.

Por óbvio, são preceitos fundamentais: os arts. 1º ao 4º da CF (princípios fundamentais), os direitos e garantias fundamentais (art. 5º, CF), o art. 34, VII (princípios constitucionais sensíveis), as garantias constitucionais dos membros do Congresso Nacional (art.53§ 3º), art. 60, § 4 (cláusulas pétreas), dentre outros.

Logo, não há dúvidas:  a independência dos poderes (art. 2º CF) é um preceito fundamental.

O que é ato do Poder Público?

 O ato do Poder Público é de qualquer esfera. É um conceito bem elástico. Por exemplo: atos administrativos, normas municipais (ADPF 731), normas pré-constitucionais (ADPF 336)

Mas, é possível que seja proposta ADPF contra decisão judicial?

A resposta é sim. Quando a lei 9.882/1999 fala em ato do poder público, engloba as leis ou atos normativos, porém também outros atos do poder público, como uma decisão judicial.

Nesse sentido, assim decidiu o STF, sendo relator o culto e eminente ministro Celso de Mello, ADPF 249-AgR/DF:

"Se mostra processualmente viável a impugnação, em sede de arguição de descumprimento de preceito fundamental, de interpretações judiciais alegadamente violadoras de preceitos fundamentais, cuja suposta transgressão decorreria de decisões emanadas de órgãos diversos do Poder Judiciário, desde que tais decisões judiciais ainda não tenham transitado em julgado"

O que a doutrina diz?

Defendem, por exemplo, a viabilidade do manejo da ADPF contra interpretação judicial de que possa resultar lesão a preceito fundamental sem o trânsito em julgado: Alexandre de Moraes1, Fabio Cesar dos Santos Oliveira2 , Sylvio Motta e Gustavo Barchet3.

Por fim, é preciso ressaltar, a lição magistral do professor Gilmar Mendes:

"Pode ocorrer lesão a preceito fundamental fundada em simples interpretação judicial do texto constitucional. Nesses casos, a controvérsia não tem por base a legitimidade ou não de uma lei ou de um ato normativo, mas se assenta simplesmente na legitimidade ou não de uma dada interpretação constitucional. No âmbito do recurso extraordinário essa situação apresenta-se como um caso de decisão judicial que contraria diretamente a Constituição (art. 102, III, 'a'). Não parece haver dúvida de que, diante dos termos amplos do art. 1º da lei 9.882/1999, essa hipótese poderá ser objeto de arguição de descumprimento - lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público -, até porque se cuida de uma situação trivial no âmbito de controle de constitucionalidade difuso. Assim, o ato judicial de interpretação direta de um preceito fundamental poderá conter uma violação da norma constitucional. Nessa hipótese, caberá a propositura da arguição de descumprimento para afastar a lesão a preceito fundamental resultante desse ato judicial do Poder Público, nos termos do art. 1º da lei 9.882/1999.

Em consequência, sim, cabe ADPF contra decisões judiciais.

Um ponto: vale rememorar o caráter subsidiário ou residual da ADPF. De outro modo: a lei veda a ADPF quando houver qualquer outro meio capaz de sanar a lesividade. O STF entendeu, entretanto, em face do princípio da subsidiariedade, receber ADPF como ADI - ação direta de inconstitucionalidade, presentes alguns requisitos.  

Pela análise da ADPF proposta pela Mesa da Câmara, nota-se que a causa de pedir é que:

"A decisão objeto da ADPF violou os preceitos fundamentais descritos nos arts. 2º (princípio da separação de poderes) e 53, § 3º (imunidade parlamentar formal), ambos da Constituição Federal"

Onde aduz a Câmara:

"Na espécie, identifica-se como ato violador de preceitos fundamentais o acórdão da 1ª turma do STF na questão de ordem na ação penal 2.668/DF, que, após receber a resolução 18/25, afastou parcialmente a sua aplicação"

Observa-se, também, que a partir da leitura da petição inicial e dos documentos que instruem a ADPF, foram cumpridos os requisitos do art. 319 do CPC e regras regimentais. Ou seja: a) indicou o preceito fundamental que considera violado; b) indicou o ato questionado; c) juntou prova da violação do preceito fundamental; d) fez o pedido.

Não há que se falar em indeferimento do inicial já que não é inepta, há interesse processual e a Mesa da Câmara tem legitimidade para propor ADPF, existindo pedido e causa de pedir.

Por conseguinte, presentes os requisitos da petição inicial da ADPF devendo, dessa maneira, ser conhecida e analisada o mérito no STF.

Cláusula de reserva de plenário-art.97 da CF

Para o autorizado magistério do professor Alexandre de Moraes 4:

"A inconstitucionalidade de qualquer ato normativo estatal só pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta da totalidade dos membros do Tribunal ou, onde houver, dos integrantes do respectivo órgão especial, sob pena de nulidade da decisão emanada do órgão fracionário (turma, câmara ou seção), em respeito à previsão do art. 97 da Constituição Federal. Esta verdadeira cláusula de reserva de plenário atua como verdadeira condição de eficácia jurídica da própria declaração jurisdicional de inconstitucionalidade dos atos do Poder Público, aplicando-se para todos os Tribunais, via difusa, e para o STF, também no controle concentrado"

Além do que, cabe lembrar que, pelo RISTF - Regimento Interno do STF, compete ao plenário julgar, nos termos do art. 6º, II, a: as arguições de inconstitucionalidade suscitadas nos demais processos.

Pergunta: mas, quem vai julgar a ADPF? É a turma ou o pleno do STF? Pelo art. 97 da CF e o RISTF deveria a turma, também, levar o assunto à Corte, considerando a posição de todos os ministros.

Repito: se a Mesa da Câmara tivesse interposto embargos de declaração, à turma que deveria apreciar em razão do regimento Interno do STF.

O raciocínio é simples. Nota-se que falar que não caberia nenhum recurso, não é bem assim...

Quem tem razão?

Até a edição da EC - emenda constitucional 35/01, os parlamentares somente poderiam ser processados se houvesse autorização expressa de sua Casa parlamentar. É o que se chama de imunidade formal quanto ao processo.

Na prática, raramente, a licença para processar era concedida pelo Parlamento. Daí a observação de Flavio Martins5

"Essa regra propiciava mais do que uma imunidade parlamentar, mas uma "impunidade parlamentar". Isso porque a licença da Casa praticamente nunca era concedida. A Casa recebia o pedido por parte do STF, mas não deliberava acerca do pedido. Era o chamado "embargo de gaveta". Inexistindo deliberação (favorável ou negativa) sobre o pedido, o parlamentar ficava impune"

Com advento da EC 35/01, a Constituição criou uma regra, consoante art. 53, § 3º:

"Recebida a denúncia contra o senador ou deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o STF dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação".

Podemos resumir assim: antes da diplomação o processo continua normalmente. Após a diplomação a Casa poderá suspender o processo- que tem natureza política e não jurídica. A ideia seria evitar perseguição preservando a liberdade e autonomia do legislativo.

No caso de Ramagem, assiste razão ao STF. Não se está indo contra à separação dos poderes.  

Por quê? Porque não se aplica o art. 53, § 3º, da CF, aos supostos crimes praticados antes da diplomação, não havendo falar em imunidade formal e, assim, podendo ser o parlamentar processado

O art. 53 § 3º, da CF, é bem claro! Alguma dúvida?

Conclusão

Ora, cada um no seu quadrado já dizia um filósofo. O Parlamento quer esticar a corda da democracia. É uma manobra. Gera tensão entre os Poderes. Não cola o argumento retórico de que invadiu à separação dos Poderes.  

Não, mesmo!

Por sinal, quando o STF diz que uma lei é inconstitucional não está jamais interferindo no Poder Legislativo, não é?  Está exercendo jurisdição constitucional. Simples assim.

Existe prerrogativa da Câmara de suspender os crimes depois na diplomação, mas antes, não!

Há uma pedra no caminho que se chama Constituição!

O STF acertou!

________

1 MORAES, Alexandre, Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional", p. 2.280, item n. 5.1, 8ª ed., 2011

2 OLIVEIRA, Fabio Cesar dos Santos Oliveira, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental", p. 144/145, item n. IV.2, 2004, Lumen Juris

3 MOTTA Sylvio e BARCHET, Gustavo, Curso de Direito Constitucional", p. 885, item n. 10, 2007, Elsevier

4 MORAES, Alexandre, Direito Constitucional, 2017, p.769

5 MARTINS, Flavio, Curso de Direito Constitucional, 2018, p. 1496, 2ª edição.

Renato Otávio da Gama Ferraz

VIP Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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