A inconstitucionalidade da "taxa para recorrer" no CNJ
Analisa-se a constitucionalidade do art. 42, § 7º, do RICNJ - regimento interno do CNJ, que condiciona ao prévio pagamento de multa por litigância de má-fé.
sexta-feira, 23 de maio de 2025
Atualizado às 11:11
1. Introdução
O CNJ, órgão de controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário, desempenha um papel fundamental na fiscalização e aprimoramento da prestação jurisdicional. No exercício de suas atribuições, o CNJ, por meio de seu RICNJ, regimento interno, estabelece as normas que disciplinam seus procedimentos. Contudo, uma das disposições desse regimento, o art. 42, § 7º, tem suscitado profundos debates acerca de sua compatibilidade com os fundamentos e princípios constitucionais que regem o sistema de Justiça brasileiro.
O referido dispositivo faculta ao plenário e ao relator a condenação do litigante de má-fé ao pagamento de multa, condicionando, ademais, "a propositura de novo procedimento, recurso ou requerimento junto a este Conselho à comprovação do pagamento desse montante". É precisamente essa condição impeditiva ao acesso que se revela problemática, erigindo-se como uma potencial afronta a garantias constitucionais pétreas. O presente trabalho busca analisar a natureza inconstitucional de tal dispositivo, com base nos princípios do acesso à justiça e do devido processo legal, essenciais à manutenção do Estado Democrático de Direito.
2. O art. 42, § 7º do RICNJ e sua aplicação concreta
O art. 42, § 7º do RICNJ, em sua literalidade, confere ao CNJ a prerrogativa de coibir a litigância de má-fé por meio de sanção pecuniária. A sanção em si, quando devidamente fundamentada e dentro dos limites da razoabilidade e proporcionalidade, é um instrumento legítimo para disciplinar as partes e assegurar a boa-fé processual. O problema surge com a segunda parte do parágrafo: a restrição ao acesso a futuras demandas no CNJ.
A aplicação prática desse dispositivo tem resultado em situações em que o cidadão, ao ter uma conduta interpretada como litigância de má-fé, vê-se impedido de apresentar novos pleitos, recursos ou requerimentos ao próprio órgão de controle. A sanção pecuniária, que deveria ter caráter punitivo e pedagógico, transforma-se em uma barreira intransponível, impedindo o jurisdicionado de buscar a tutela do CNJ para questões futuras, ainda que legítimas e distintas do processo originário que gerou a multa. A decisão proferida em processos como o PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS 0008526-43.2024.2.00.0000, onde a requerente foi condenada ao pagamento de multa e teve o acesso condicionado, ilustra a materialização dessa restrição.
3. O princípio do acesso à Justiça: Uma garantia fundamental inafastável
O art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, é categórico ao dispor que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Este é o pilar do princípio do acesso à Justiça, também conhecido como princípio da inafastabilidade da jurisdição. Sua abrangência não se limita à mera permissão de ingresso em juízo, mas se estende à garantia de um processo justo, eficaz e sem óbices injustificados.
O CNJ, embora não seja um órgão jurisdicional no sentido estrito de solucionar lides entre particulares, exerce funções de controle administrativo e disciplinar sobre o Poder Judiciário, sendo uma via essencial para o cidadão que busca a correta aplicação das normas que regem a magistratura e a estrutura judicial. Restringir o acesso a esse órgão em razão de uma multa anterior, mesmo por litigância de má-fé, configura uma violação direta ao espírito do art. 5º, XXXV, da CF.
A inafastabilidade do controle judicial (ou, no caso, administrativo-judicial) é uma garantia que visa proteger o indivíduo contra abusos e omissões do Estado e de seus agentes. A imposição de uma barreira financeira para o acesso a novos procedimentos, independentemente de sua natureza ou mérito, equivale a uma "taxa de acesso" prévia, o que é incompatível com a gratuidade e universalidade que devem permear, em princípio, o acesso aos órgãos de controle e à própria justiça. A mera existência da multa já cumpre o papel sancionatório; a imposição de um "pedágio" para acesso futuro transcende a finalidade da penalidade.
4. O devido processo legal: Limites à autonomia regimental
O devido processo legal, assegurado pelo art. 5º, LIV, da CF ("ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"), é um princípio basilar que informa todo o ordenamento jurídico. Ele se desdobra em aspectos formais (garantia de contraditório, ampla defesa, juiz natural) e substantivos (razoabilidade e proporcionalidade das normas e atos).
O art. 42, § 7º do RICNJ, ao condicionar o acesso, parece violar o aspecto substantivo do devido processo legal. A sanção imposta, de cerceamento de acesso, revela-se desproporcional e irrazoável. Enquanto a multa por litigância de má-fé visa coibir comportamentos processuais inadequados dentro de um processo específico, a vedação ao acesso a futuros procedimentos, de natureza potencialmente diversa, extrapolaria os limites da proporcionalidade. A punição pela má-fé deve estar circunscrita ao processo em que ela ocorreu, sem prejudicar o direito fundamental de buscar o amparo do CNJ em outras ocasiões.
Ademais, o RICNJ, por ser um ato normativo infralegal, deve conformar-se à Constituição Federal e às leis. A autonomia regimental do CNJ não é ilimitada; ela encontra suas balizas nos princípios e garantias constitucionais. Um regimento interno não pode criar óbices ao exercício de direitos fundamentais que a própria Constituição assegura de forma ampla.
5. O papel do CNJ e a distinção com órgãos jurisdicionais típicos
O CNJ, conforme o art. 103-B da CF, é um órgão administrativo-judicial de cúpula do Poder Judiciário. Sua finalidade precípua é zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados, cabendo-lhe o controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Não se confunde com um tribunal que julga litígios entre particulares em primeira ou segunda instância.
A litigância de má-fé, embora reprovável em qualquer contexto processual, não pode ser utilizada como justificativa para excluir o cidadão do âmbito de atuação de um órgão de controle que é, por essência, uma porta de acesso para a cidadania na fiscalização do sistema de justiça. A medida do Art. 42, § 7º, transforma o CNJ, que deveria ser um facilitador da fiscalização e aprimoramento judicial, em um obstáculo punitivo, deturpando sua função constitucional.
6. Considerações
Diante do exposto, é imperioso concluir que o art. 42, § 7º, do regimento interno do CNJ, ao condicionar a propositura de novos procedimentos, recursos ou requerimentos ao prévio pagamento de multa por litigância de má-fé, padece de inconstitucionalidade.
Tal dispositivo representa uma grave afronta ao princípio do acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, ao criar uma barreira financeira e arbitrária à tutela de direitos perante um órgão de controle fundamental do Poder Judiciário. Adicionalmente, viola o devido processo legal, notadamente em sua vertente substantiva, ao impor uma sanção desproporcional e irrazoável que transcende o âmbito do processo em que a má-fé foi constatada.
A autonomia regimental do CNJ, como qualquer outra, não é absoluta, encontrando limites nos direitos e garantias fundamentais. É urgente que o STF, em seu papel de guardião da Constituição, seja provocado a declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo, garantindo que o CNJ continue a ser um instrumento de cidadania e controle social do Poder Judiciário, acessível a todos, sem óbices que maculem a essência do Estado Democrático de Direito.


