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Progressividade tributária como mecanismo de justiça social

O presente artigo analisa como a progressividade tributária opera no contexto brasileiro, sua fundamentação constitucional e limitações práticas.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Atualizado às 13:09

A CF/88 estabeleceu arcabouço normativo que legitima e fundamenta a adoção da progressividade tributária como mecanismo de concretização da justiça fiscal. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, expressos no art. 3º, destacam-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a redução das desigualdades sociais, metas que encontram na tributação progressiva um instrumento privilegiado para sua realização. O princípio da capacidade contributiva, previsto no art. 145, §1º da CF, estabelece que "sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte". Este dispositivo evidencia a opção constitucional por uma tributação que considere as condições econômicas individuais dos contribuintes, impondo maior carga tributária àqueles com maior capacidade econômica. Tal princípio representa a materialização da isonomia tributária, exigindo tratamento diferenciado para contribuintes em situações econômicas distintas. A aplicação da progressividade tributária revela-se como mecanismo crucial na mitigação das disparidades socioeconômicas e na salvaguarda dos preceitos constitucionais, conforme aponta a doutrina especializada. Ao estabelecer alíquotas crescentes em função da base de cálculo, a progressividade permite que a contribuição ao financiamento do Estado seja proporcionalmente maior por parte daqueles que detêm maior riqueza, concretizando a equidade vertical no sistema tributário. 

A progressividade tributária no sistema constitucional brasileiro manifesta-se em diferentes dimensões, podendo ser classificada como fiscal ou extrafiscal. A progressividade fiscal está diretamente relacionada à capacidade contributiva e visa a distribuição mais equitativa da carga tributária. Já a progressividade extrafiscal utiliza o tributo como instrumento para alcançar finalidades não arrecadatórias, como a função social da propriedade ou a proteção ambiental. No âmbito dos impostos Federais, destaca-se a previsão constitucional do IGF - Imposto sobre Grandes Fortunas, presente no art. 153, VII, da CF/88, que, embora ainda não implementado, representaria importante instrumento de progressividade fiscal. O Imposto de Renda, por sua vez, apresenta progressividade estabelecida por meio de alíquotas crescentes conforme a renda, embora limitações nas deduções e na tabela progressiva possam comprometer sua efetividade como instrumento de justiça fiscal. 

Em relação aos impostos estaduais, o ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação tem recebido atenção especial após o posicionamento do STF, que ratificou a constitucionalidade de sua aplicação de forma progressiva, representando avanço significativo na utilização deste tributo como instrumento de justiça social. No âmbito municipal, o IPTU pode apresentar progressividade fiscal ou extrafiscal, esta última vinculada ao cumprimento da função social da propriedade urbana. 

A progressividade tributária transcende a mera técnica de arrecadação fiscal, configurando-se como verdadeiro pilar da equidade fiscal e instrumento de promoção da justiça social. Tomando como base as contribuições do economista francês Thomas Piketty e do jurista brasileiro Ricardo Lodi Ribeiro, é possível compreender a tributação progressiva como mecanismo crucial na redução das desigualdades socioeconômicas.  

Conforme aponta a literatura especializada, a progressividade tributária opera como vetor de redistribuição de riquezas, permitindo que o Estado arrecade proporcionalmente mais daqueles que possuem maior capacidade econômica e utilize esses recursos para financiar políticas públicas que beneficiem a coletividade, especialmente os segmentos sociais mais vulneráveis. Esse círculo virtuoso de arrecadação progressiva e aplicação redistributiva dos recursos públicos representa elemento fundamental para a concretização dos objetivos constitucionais.

A implementação efetiva da progressividade tributária revela-se, portanto, não apenas como instrumento de justiça fiscal, mas também como mecanismo de justiça social, uma vez que contribui para redução das desigualdades e para promoção de maior equilíbrio socioeconômico.  

Nesse sentido, a progressividade não constitui mera opção de política fiscal, mas verdadeiro imperativo constitucional derivado dos valores fundamentais inscritos na Carta Magna. 

Nas últimas décadas, estudos econômicos têm demonstrado correlação direta entre sistemas tributários progressivos e redução das desigualdades sociais. Thomas Piketty, em suas análises sobre a concentração de renda e riqueza, aponta para a necessidade de tributação progressiva sobre o patrimônio como ferramenta essencial para conter o crescimento das desigualdades em escala global. 

No contexto brasileiro, Ricardo Lodi Ribeiro tem defendido a importância do sistema tributário que priorize a progressividade como mecanismo para concretização da justiça fiscal, argumentando que a regressividade do sistema atual contraria os princípios fundamentais estabelecidos na CF/88. Essas contribuições teóricas oferecem substancial embasamento para defesa de reformas no sistema tributário nacional que ampliem os mecanismos de progressividade. A relação entre tributação progressiva e justiça social ganha ainda mais relevância no atual cenário de acentuadas desigualdades sociais.  

Conforme demonstram estudos recentes, o sistema tributário pode atuar como instrumento de perpetuação ou de redução dessas desigualdades, a depender de sua configuração regressiva ou progressiva.  

No caso brasileiro, a predominância de tributos sobre o consumo e a modesta progressividade dos impostos sobre renda e patrimônio contribuem para a manutenção do quadro de concentração de renda e riqueza. 

Apesar do arcabouço constitucional favorável à progressividade tributária, o sistema fiscal brasileiro caracteriza-se por uma estrutura predominantemente regressiva, que contraria os princípios de justiça social.  

Estudos empíricos demonstram que a carga tributária brasileira onera de forma desproporcional as camadas sociais menos favorecidas, contribuindo para a perpetuação e agravamento das desigualdades sociais. Pesquisas recentes revelam que há uma alta regressividade no ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, principal tributo estadual brasileiro, afetando de forma desproporcional os mais pobres, negros e famílias chefiadas por mulheres, especialmente mães solteiras. Essa regressividade manifesta-se tanto do ponto de vista da equidade vertical (níveis de renda), quanto horizontal (gênero e raça), configurando um sistema tributário que agrava as desigualdades preexistentes. A preponderância da tributação indireta sobre bens e serviços na composição da carga tributária brasileira explica, em grande parte, esse caráter regressivo.  

Diferentemente dos tributos diretos, que incidem sobre renda e patrimônio e podem ser facilmente estruturados de forma progressiva, os tributos indiretos têm suas alíquotas embutidas nos preços dos produtos e serviços, afetando proporcionalmente mais o orçamento das famílias de baixa renda. 

Dados da Pesquisa de Orçamento Familiar de 2017-2018, evidenciam que as famílias de baixa renda comprometem parcela significativamente maior de seus recursos com o pagamento de tributos indiretos, como o ICMS, em comparação com famílias de rendimentos mais elevados. Esse fenômeno ocorre porque as famílias de baixa renda destinam praticamente toda sua renda ao consumo, enquanto famílias mais abastadas conseguem poupar e investir, reduzindo proporcionalmente sua exposição à tributação sobre o consumo. A situação torna-se ainda mais grave quando considerados recortes de gênero e raça. Famílias chefiadas por mulheres negras enfrentam uma carga tributária proporcional ainda maior, evidenciando que o sistema tributário brasileiro reproduz e aprofunda desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Esse quadro contradiz frontalmente os princípios constitucionais da igualdade, da capacidade contributiva e da justiça social.  

No âmbito dos tributos diretos, como o IRPF - Imposto de Renda da Pessoa Física, a progressividade é limitada por fatores como a defasagem da tabela de alíquotas, o tratamento privilegiado concedido a determinados rendimentos (como dividendos) e as limitações às deduções que beneficiam principalmente contribuintes de renda mais elevada. Tais características comprometem a efetividade do IRPF como instrumento de justiça fiscal e social, apesar de seu potencial progressivo. 

A superação do caráter regressivo do sistema tributário brasileiro exige reformas estruturais que ampliem a progressividade e promovam maior justiça fiscal. Diversas propostas têm sido apresentadas nesse sentido, desde alterações pontuais em tributos específicos até reformas abrangentes de todo o sistema. 

No campo dos tributos sobre o patrimônio, destaca-se a decisão do STF que reconheceu a constitucionalidade da aplicação de alíquotas progressivas para o ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, abrindo caminho para a utilização desse tributo como efetivo instrumento de justiça fiscal. Essa decisão representa importante avanço jurisprudencial na interpretação dos princípios tributários constitucionais, fortalecendo a tese da progressividade como elemento intrínseco ao sistema tributário brasileiro. Outra proposta relevante refere-se à implementação do IGF - Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto no art. 153, VII, da CF/88, mas ainda não regulamentado.  

O PLP 183/19, busca instituir esse imposto, incidindo sobre o patrimônio líquido das pessoas físicas detentoras de grandes fortunas e poderia representar significativo avanço na progressividade do sistema tributário brasileiro. A experiência internacional demonstra que a tributação sobre grandes patrimônios pode constituir importante instrumento de redução das desigualdades sociais. 

No cenário internacional, observa-se crescente preocupação com a concorrência fiscal predatória entre países e erosão das bases tributárias, fenômenos que comprometem a capacidade dos Estados de implementar sistemas tributários progressivos. Em resposta a esses desafios, têm surgido propostas de cooperação internacional em matéria tributária, como o imposto global sobre o patrimônio e o registro financeiro global. Essas iniciativas, inspiradas nas teorias de Thomas Piketty e Gabriel Zucman, buscam estabelecer mecanismos de tributação que transcendam as fronteiras nacionais, combatendo a evasão fiscal e a transferência artificial de riquezas para jurisdições com tributação favorecida.  

A implementação de tais propostas depende de ampla cooperação internacional, mas representaria importante avanço na construção de sistemas tributários mais progressivos e justos em escala global. No contexto brasileiro, a lei 14.663/23 introduziu modificações na política de reajuste do salário-mínimo e na tabela do IRPF - Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, demonstrando possibilidades de avanços pontuais na direção de maior progressividade tributária. A análise dessa legislação indica seu potencial para promover uma tributação mais alinhada ao princípio da capacidade contributiva, embora reformas mais profundas sejam necessárias para superar o caráter regressivo do sistema como um todo.  

A efetiva implementação de um sistema tributário progressivo no Brasil enfrenta diversos desafios de natureza política, econômica e jurídica. A compreensão desses obstáculos é fundamental para a formulação de estratégias que viabilizem reformas tributárias comprometidas com a justiça social.  

No plano político, verifica-se que a progressividade tributária tem sido uma "agenda negligenciada" no debate público brasileiro. Interesses econômicos organizados frequentemente se opõem a iniciativas de ampliação da tributação progressiva sobre renda e patrimônio, exercendo significativa influência sobre o processo legislativo. A ausência de regulamentação do IGF, passadas mais de três décadas desde sua previsão constitucional, exemplifica essa resistência política às medidas de progressividade tributária.  

No âmbito jurídico, debates sobre a interpretação dos princípios constitucionais tributários muitas vezes resultam em entendimentos restritivos quanto às possibilidades de implementação da progressividade. A tensão entre princípios como a legalidade tributária estrita e a capacidade contributiva pode dificultar a aplicação de mecanismos progressivos, especialmente quando prevalece uma visão formalista do Direito Tributário. 

Diante do cenário atual de expressivas desigualdades sociais, torna-se imperativo repensar o papel do sistema tributário como instrumento de justiça social. 

Conforme demonstram estudos empíricos, o Brasil apresenta uma das maiores concentrações de renda e riqueza do mundo, quadro que é agravado por um sistema tributário predominantemente regressivo. A superação desse cenário exige não apenas reformas tributárias técnicas, mas também uma mudança de paradigma na compreensão do papel dos tributos na sociedade brasileira. É necessário fortalecer a percepção de que a tributação progressiva não constitui mera opção de política fiscal, mas imperativo de justiça derivado dos compromissos constitucionais com a redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade mais justa e solidária. As experiências internacionais e as contribuições teóricas contemporâneas oferecem importantes subsídios para esse processo de transformação.  

A obra de Thomas Piketty, por exemplo, demonstra empiricamente como sistemas tributários progressivos contribuíram historicamente para redução das desigualdades em diversos países, evidenciando o potencial transformador da tributação progressiva quando adequadamente implementada. 

A análise da relação entre progressividade tributária e justiça social no contexto brasileiro revela significativa disparidade entre o arcabouço constitucional, que estabelece princípios favoráveis à tributação progressiva e a realidade regressiva do sistema tributário nacional. Essa contradição contribui para a manutenção e agravamento das desigualdades sociais, comprometendo a efetivação dos objetivos fundamentais da República estabelecidos na CF/88.  

A superação desse quadro exige reformas estruturais que ampliem a progressividade do sistema tributário brasileiro, priorizando a tributação direta sobre renda e patrimônio em detrimento da excessiva dependência dos tributos indiretos sobre o consumo. Propostas como a implementação do imposto sobre grandes fortunas e o fortalecimento da progressividade de tributos já existentes, como o ITCMD e o IRPF, representam passos importantes nessa direção.  

Além das reformas específicas, é necessária uma mudança de paradigma na compreensão do papel da tributação na sociedade brasileira, fortalecendo a percepção de que a progressividade tributária constitui elemento essencial para a concretização da justiça social. Essa transformação depende do comprometimento político com os valores constitucionais e da superação de resistências baseadas em interesses econômicos particulares.  

As experiências internacionais e as contribuições teóricas contemporâneas, especialmente aquelas desenvolvidas por autores como Thomas Piketty e Ricardo Lodi Ribeiro, oferecem importantes subsídios para esse processo, demonstrando empiricamente a correlação entre sistemas tributários progressivos e redução das desigualdades sociais. A incorporação dessas perspectivas ao debate jurídico e político brasileiro pode contribuir significativamente para a construção de um sistema tributário mais justo e alinhado aos princípios constitucionais. 

Portanto, a efetiva implementação da progressividade tributária representa não apenas uma questão técnica de política fiscal, mas verdadeiro imperativo de justiça social derivado dos compromissos fundamentais assumidos pela sociedade brasileira na CF/88. Sua concretização constitui passo fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e igualitária.  

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1 ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA LEI Nº 14.663/2023 COM VISTAS AO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. 2024.  

2 A INCONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO RESTRITIVA DAS ISENÇÕES DE IRPF PREVISTAS NO ART. 6º, XIV DA LEI 7.713/88. 2022. 

3 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NO SISTEMA PRISIONAL: 2024 

4 (IN)EXISTÊNCIA DE REVISÃO INFLACIONÁRIA DA BASE DE ISENÇÃO E APLICAÇÃO DE ALÍQUOTAS DO IMPOSTO DE RENDA DAS PESSOAS FÍSICAS (IRPF). 2023. 

5 LAWFARE COMO MANOBRA DE GUERRA CONTRA A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS MIGRANTES NO GOVERNO BOLSONARO: 2024.  

6 O CONTRASSENSO NAS PROPOSTAS DE ELEVAR A ISENÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA PESSOA FÍSICA (IRPF): CUSTO FISCAL E EFEITOS DISTRIBUTIVOS. 2020. 

7 PIKETTY E A REFORMA TRIBUTÁRIA IGUALITÁRIA NO BRASIL. 2015. 

8 PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO PLURIANUAIS: MECANISMOS COMPLEMENTARES OU SUBSTITUTOS? 2020. 

9 POSSÍVEIS IMPACTOS ECONÔMICOS CAUSADOS PELA DEFASAGEM DO IRPF. 2021. 

10 PROGRESSIVIDADE TRIBUTÁRIA COMO REALIZAÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL: A POSSIBILIDADE DE SE ESTABELECER ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS PARA O ITCMD E A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA TRIBUTÁRIA. 2024.

Paulo Cosmo de Oliveira Júnior

Paulo Cosmo de Oliveira Júnior

Bacharel em Direito e Advogado, com especialização em Direito Público.

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