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Imprudência consciente: De espécie a gênero, uma classificação necessária

Neste artigo sustento que a imprudência consciente exige gradação normativa: Gravíssima, grave e leve. Esta classificação técnica evita arbitrariedades e assegura proporcionalidade na imputação penal.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Atualizado às 14:21

A imprudência consciente não é um espaço de transição entre o dolo e a culpa. Trata-se de uma forma autônoma de imputação, que exige tratamento normativo próprio. A insistência da dogmática penal tradicional em aproximá-la do dolo - sobretudo por meio do conceito de dolo eventual - apenas distorce a estrutura da imputação e compromete a coerência do sistema penal.

Em minha obra Fundamentos de la Teoría Significativa de la Imputación - 2ª Ed. (Bosch - 2025), proponho uma classificação técnico-constitucional da imprudência consciente em três níveis: gravíssima, grave e leve. Cada uma dessas categorias decorre da análise dos caracteres significativos e permite distinguir com rigor a gravidade da violação do dever de cuidado, a partir da aplicação dos 7 quesitos significativos.

A imprudência consciente gravíssima, por exemplo, caracteriza-se por uma aceitação concreta do risco, a partir de uma previsibilidade necessária da ocorrência do resultado danoso. Sob outro prisma, trata-se do caso em que o agente prevê com certeza a ocorrência de um resultado acessório, ainda que não o deseje. Por isso, demanda resposta penal severa, ainda que distinta daquela aplicável ao dolo. Já a imprudência consciente grave está ligada à indiferença diante do risco previsto - previsto não como necessário, mas como eventual -, o que exige sanção penal intermediária. A imprudência consciente leve, por sua vez, traduz uma conduta em que o agente prevê o risco, mas acredita sinceramente que poderá evitá-lo, exigindo resposta penal branda. Essa última categoria aproxima-se do que a dogmática tradicional denomina de culpa consciente.

A diferença entre aceitar e ser indiferente ao resultado previsto não é meramente retórica. O quinto e o sexto quesitos significativos, desenvolvidos na mencionada obra, permitem ao julgador distinguir entre essas condutas com base em elementos concretos da ação e de sua linguagem. A aceitação manifesta uma adesão tácita ao resultado, enquanto a indiferença revela uma postura de descaso, ambas dotadas de gravidade própria e distintas da simples confiança.

Essa gradação não é um exercício doutrinário especulativo, ou "mais do mesmo": ela tem implicações práticas relevantes. Além de alçar a imprudência consciente à condição de gênero da imputação, e não mais somente espécie, permite ao julgador imputar com base em critérios objetivos, evitando a ficcionalização da vontade e respeitando os limites normativos da culpabilidade. Cada grau de imprudência consciente corresponde a um tipo de desvalor da ação e deve ser tratado conforme sua gravidade específica, sob pena de se comprometer o princípio da proporcionalidade.

O segundo quesito significativo também exerce papel crucial nessa distinção: exige-se que o agente tivesse, ou pudesse ter, o conhecimento do risco que sua conduta representava ao bem jurídico protegido. Trata-se de uma verificação objetiva, e não psicológica, que delimita os casos nos quais a imprudência consciente se faz presente e pode ser validamente imputada.

Nesse contexto dogmático, a Teoria Significativa da Imputação propõe que a análise da imprudência consciente seja orientada pelos quesitos significativos e pelos caracteres que compõem a estrutura da imputação penal. Não se trata, no entanto, de examinar a intenção presumida, mas sim de avaliar, com base em critérios linguísticos e normativos, se o resultado típico estava previsto como possível e, como disse, se o agente o aceitou, foi indiferente a ele, ou acreditou sinceramente que poderia evitá-lo, ou seja, que não ocorreria. São esses os elementos que distinguem os três níveis de imprudência consciente.

Além disso, a classificação proposta estabelece distinções operacionais claras entre imprudência consciente e imprudência inconsciente. Esta última, por ausência de previsão, pode eventualmente ser excluída do âmbito penal, dependendo das circunstâncias e dos demais caracteres significativos apurados. Já a imprudência consciente, ao conter a previsão do resultado (necessário ou eventual), exige sempre resposta penal - graduada conforme os demais caracteres significativos verificados.

A ausência dessa gradação compromete a proporcionalidade das decisões penais. Em muitos casos, a imputação genérica por culpa resulta em sanções desajustadas, que tratam igualmente condutas muito distintas quanto ao grau de negligência, descuido ou desprezo pelo bem jurídico protegido. A proposta que formulo permite romper com esse modelo uniforme e impreciso, oferecendo ao julgador parâmetros mais precisos, verificáveis e coerentes com o princípio da legalidade.

Essa classificação também tem implicações pedagógicas e institucionais: contribui para a formação crítica de operadores do Direito, auxilia na delimitação da responsabilidade penal objetiva e fortalece o princípio da culpabilidade. Ao afastar categorias ambíguas e valorativas, como o dolo direto de segundo grau e o dolo eventual, o modelo proposto reforça a previsibilidade das decisões penais e fortalece a função garantidora do tipo penal, evitando interpretações arbitrárias, tão prejudiciais aos imputados e à sociedade.

Ademais, a ausência de previsão legislativa dessa gradação revela uma lacuna técnico-constitucional que não pode ser preenchida com ficções. A classificação proposta nasce da Constituição e do princípio da legalidade estrita. A imprudência consciente não é um artifício intermediário, mas uma categoria legítima da imputação penal, que exige rigor técnico e rejeita atalhos interpretativos.

Nesta seara, a Teoria Significativa da Imputação rejeita a ideia de uma zona cinzenta entre dolo e culpa - o que denomino, a exemplo de boa parte da doutrina internacional, de imprudência. O que existe, em verdade, é a necessidade de reconhecer a complexidade da ação humana e de construir imputações fundadas em critérios verificáveis. A classificação da imprudência consciente cumpre esse papel: afasta arbitrariedades, preserva a legalidade penal e consolida uma dogmática coerente com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, a partir de um garantismo benéfico concreto, não midiático ou de fachada.

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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