Penalidades aduaneiras: Prescrição intercorrente e responsabilidade objetiva
A responsabilidade objetiva, prevista no § 2º, do art. 94, do decreto-lei 37/66, não tem mais aplicação no âmbito das penalidades aduaneiras.
sexta-feira, 23 de maio de 2025
Atualizado às 14:22
Em 12/3/25, a 1ª seção do E. STJ, julgando o Tema repetitivo 1.293, definiu a seguinte tese: "Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos."
Adaptando o dito popular, afirmamos: "Se tem tema, tem história".
É de conhecimento comum que a paralisação de processos administrativos nos escaninhos das Delegacias da Receita Federal de Julgamento e no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais se tornou prática corriqueira. Podemos elencar, facilmente, processos administrativos referentes à penalidades aduaneiras paralisados por mais de 8 ou 9 anos, sem o julgamento de simples impugnação.
A resposta dada pelo E. STJ, acolhendo a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, §1º, da lei 9.873, de 1999, aos processos administrativos referentes à penalidades aduaneiras, paralisados por mais de três anos, trata-se da resposta certa ao problema da ineficiência da Administração Pública Federal no julgamento dos processos administrativos postos à sua apreciação (o princípio da celeridade processual, administrativa e judicial, foi alçado à garantia individual ainda em 2004, mais de vinte anos atrás).
Contudo, o fato de os processos administrativos de apuração de penalidades aduaneiras restarem paralisados na Administração Pública Federal por mais de três anos, sem movimentação, esconde um problema muito maior, qual seja, a fiscalização aduaneira autua demais e autua mal!
O ex-secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo Maciel, em entrevista, deu uma declaração contundente sobre o assunto:
O processo no Brasil funciona? Não. E tem alguma evidência de quais são os sintomas desse mau funcionamento? Dados do final do ano passado evidenciam que nós temos R$ 3,3 trilhões de litígios tributários. Esse valor corresponde, à época, a mais da metade do PIB brasileiro. Um sistema tributário que, em virtude do seu processo, produz um volume de litígio dessa ordem é completamente não funcional. Ele não funciona, primeiramente, porque os lançamentos tributários em todas as instâncias são lançamentos que não encerram responsabilidade. Dito assim de uma maneira bem simples, eu faço um lançamento, daí para diante - o problema é do contribuinte. Se porventura esse lançamento for considerado improcedente, cair, como se diz na gíria, não haverá nenhuma responsabilidade para o sujeito ativo da obrigação, para o Estado, nem para a autoridade lançadora. Pode ter trazido todo tipo de constrangimento para o contribuinte - custos, danos patrimoniais, danos reputacionais -, nada disso importa, então eu tenho um lançamento sem trava, um lançamento sem culpa.
Pois bem. Listados os fatos acima, passamos ao Direito.
Afirmamos que, no âmbito das penalidades aduaneiras a Receita Federal autua demais e autua mal pois uma enorme gama de autuações lavradas pela fiscalização aduaneira se refere à penalidades que não geram dano ao erário ou ao controle aduaneiro, cometidas sem qualquer intenção fraudulenta. O maior exemplo são as penalidades aplicadas por cumprimento intempestivo de obrigação acessória autônoma (inserção de dados de embarque ou desembarque nos sistemas da Receita Federal do Brasil). Nestes casos, a par da informação devidamente prestada, ainda que intempestiva, a fiscalização entende pelo cometimento da infração, aplicando penalidades pecuniárias aos transportadores e agentes de cargas (não vamos entrar no mérito da necessária aplicação da denúncia espontânea às penalidades aduaneiras neste artigo).
Para tanto, a fiscalização se apoia no disposto no § 2º, do art. 94, do decreto-lei 37/66, que assim dispõe: "Salvo disposição expressa em contrário, a responsabilidade por infração independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato".
De plano, deve-se apontar que a figura do decreto-lei sequer existe mais em nosso ordenamento jurídico. O decreto-lei tratava-se de ato normativo expedido pelo presidente da República com força de lei, em regime semelhante às atuais MPs e quem foram utilizados durante dois períodos da história no Brasil: de 1937 a 1946 e de 1965 a 1988, respectivamente, durante a Ditadura de Getúlio Vargas (Estado Novo) e durante a Ditadura Militar. Ou seja, sem dificuldade, já se observa que a responsabilidade objetiva prevista no decreto-lei 37/66 reflete características de um período marcado por um regime autoritário e repressivo.
Em comentário às penalidades aduaneiras, o E. desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, alertou para o fato de legislação aduaneira indicar hipóteses de "responsabilidade objetiva, de impossível elisão, a fazer incidir sobre o contribuinte significativa perda, malferido os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade"1.
De tal modo, afirmamos que a fiscalização aduaneira autua mal e autua demais, principalmente em situações em que não há intuito fraudulento por parte dos contribuintes, fundada em uma suposta responsabilidade objetiva previsto em uma espécie normativa que não existe mais no ordenamento jurídico nacional, editada em época de pouca ou nenhuma democracia.
Afirmamos que a fiscalização aduaneira autua mal e autua demais com a convicção que o nosso ordenamento jurídico já não mais contempla tal responsabilidade, ao menos no âmbito aduaneiro.
Obviamente, se não existisse em nosso ordenamento jurídico limitação ao disposto no § 2º, do art. 94, do decreto-lei 37/66, as penalidades aduaneiras aplicadas em situações em que não há dano ao erário ou ao controle aduaneiro, cometidas sem qualquer intenção fraudulenta, as autuações lavradas pela fiscalização aduaneira, por mais abusivas que fossem, ainda teriam algum respaldo.
Contudo, desde 2018, encontra-se em vigência o Acordo sobre a Facilitação do Comércio, incorporado ao ordenamento jurídico nacional através do decreto 9.326, de 3/4/18.
O art. 6º, do referido tratado elenca "Disciplinas sobre taxas e encargos incidentes sobre a importação ou exportação, ou em conexão a estas, e sobre penalidades". Por sua vez, o item 3.6, do referido tratado dispõe:
Quando uma pessoa espontaneamente revelar à administração aduaneira de um membro as circunstâncias de uma violação de suas leis, regulamentos ou atos normativos procedimentais de caráter aduaneiro antes da descoberta dessa violação pela administração aduaneira, o membro é incentivado a considerar, quando for o caso, este fato como potencial circunstância atenuante ao estabelecer uma penalidade para essa pessoa.
Também desde 2020, encontra-se em vigência a Convenção de Quioto Revisada, incorporada ao ordenamento jurídico nacional através do decreto 10.276, de 13/3/20.
O Capítulo 3, do Apêndice II, da Convenção de Quioto Revisada trata da "LIBERAÇÃO E OUTRAS FORMALIDADES ADUANEIRAS". Por sua vez, o item 3.6, deste tratado dispõe:
Erros
3.39. Norma
As Administrações Aduaneiras não aplicarão penalidades excessivas em caso de erros, se ficar comprovado que tais erros foram cometidos de boa-fé, sem intenção fraudulenta nem negligência grosseira. Quando as Administrações Aduaneiras considerarem necessário desencorajar a repetição desses erros, poderão impor uma penalidade que não deverá, contudo, ser excessiva relativamente ao efeito pretendido.
Ou seja, ambos os tratados acima dispõem que, no âmbito das penalidades aduaneiras, não se aplica a "responsabilidade objetiva, de impossível elisão", não sendo possível afirmar mais que no Brasil "a responsabilidade por infração independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato". Muito pelo contrário.
Conforme dispõem o Acordo sobre a Facilitação do Comércio e a Convenção de Quioto Revisada, as administrações aduaneiras, antes da aplicação das penalidades, deverão considerar eventual intenção fraudulenta, negligência grosseira, proporcionalidade da pena em relação à conduta típica e, considerar também a revelação espontânea da infração como circunstância atenuante sobre a eventual penalidade a ser aplicada.
Portanto, a simples responsabilidade objetiva, prevista no § 2º, do art. 94, do decreto-lei 37/66, não tem mais aplicação no âmbito das penalidades aduaneiras. Na aplicação das penalidades aduaneiras, devem sim ser consideradas a intenção do agente, a efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.
Ora, acerca dos tratados internacionais, o CTN, em seu art. 98, dispõe que: "Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha".
Neste sentido, recentemente, foi aprovada a lei 14.651, de 2023, alterando o procedimento de aplicação e julgamento da pena de perdimento, veículo e moeda, visando garantir a esta penalidade o duplo grau de jurisdição administrativa. Até então, o decreto-lei 1.455, de 1976 determinava o julgamento deste tipo de penalidade pela instância administrativa em instância única.
O PL 2.249, de 2023, que deu origem à lei 14.651, de 2023, apresentou as seguintes justificativas para a referida mudança:
5. Ocorre que o Brasil é signatário do AFC - Acordo sobre a Facilitação do Comércio da OMC - Organização Mundial do Comércio, promulgado pelo decreto 9.326, de 3/4/18, e da CQR - Convenção de Quioto Revisada da OMA - Organização Mundial de Aduanas, promulgada pelo decreto 10.276, de 13/3/20.
6. O AFC/OMC, já vigente e aplicável no Brasil, em seu art. 4.1, prevê a possibilidade de "recurso administrativo a uma autoridade administrativa superior ou independente da autoridade ou repartição que tenha emitido a decisão", como alternativa ou complemento a uma revisão judicial da decisão. A norma 10.5 do anexo geral da CQR/OMA é mais enfática, assegurando o acesso recursal administrativo a uma autoridade independente da Aduana: "Quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras seja indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira".
Portanto, se observa que, o duplo grau de jurisdição administrativa em relação à pena de perdimento, não se encontrava previsto pelo decreto-lei nº 1.455, de 1976, sendo tal previsão legal adotada no Brasil a partir da lei 14.651, de 2023. Por sua vez, a referida alteração legislativa foi proposta visando atender as determinações contidas no Acordo sobre a Facilitação do Comércio e a Convenção de Quioto Revisada, tratados internacionais que o Brasil foi signatário.
Logo, em relação à responsabilidade objetiva prevista no § 2º, do art. 94, do decreto-lei 37/66 e aplicada às penalidades aduaneiras, observa-se que esta também deve ser revogada, posto que contrária ao disposto no Acordo sobre a Facilitação do Comércio e a Convenção de Quioto Revisada, internalizados no Brasil através do decreto 9.326, de 3/4/18 e decreto 10.276, de 13/3/20.
Ora, para todos os efeitos: "Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé"; conforme dispõe o art. 26, do decreto 7.030, de 14/12/09, que promulgou no Brasil a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
O Acordo sobre a Facilitação do Comércio e a Convenção de Quioto Revisada são normas originadas da OMC - Organização Mundial do Comércio e da OMA - Organização Mundial de Aduanas, respectivamente, e se o Brasil deseja ter uma posição maior de destaque no comércio internacional, deve respeitar os tratados internacionais. A revisão da responsabilidade objetiva no âmbito das penalidades aduaneiras seria um passo importante nesta jornada.
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1 TRF4, AC 2000.70.08.000153-3, PRIMEIRA TURMA, Relator para Acórdão LUIZ CARLOS DE CASTRO LUGON, DJ 02/10/2002.


