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Segurança jurídica e justiça desportiva

O texto analisa a importância da segurança jurídica e da jurisprudência uniforme, destacando o papel do STJD na padronização das decisões no esporte.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Atualizado em 26 de maio de 2025 09:20

A segurança jurídica é um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito brasileiro, garantindo previsibilidade e confiança na aplicação da lei. A propósito, o art. 5º, XXXVI, da CF/88, estabelece com propriedade que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"1

A segurança jurídica ganha especial relevância no âmbito do sistema de resolução de disputas, em que a manutenção de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente é indispensável para assegurar a igualdade entre os cidadãos e a efetividade do sistema jurídico. A "busca pela coerência e pela estabilidade jurisprudencial, como forma de prestigiar a segurança jurídica, é o que garante efetividade aos direitos fundamentais do jurisdicionado, inerentes à atuação do Poder Judiciário".2 

Nesse sentido, o art. 926 do CPC prevê expressamente, como um claro dever jurisdicional, que os "tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente".3 Esse dispositivo, que instituiu uma "tarefa contínua"4, busca mitigar a jurisprudência lotérica, evitando decisões conflitantes para casos análogos que possam gerar incertezas ou comprometer a confiança na Justiça brasileira5.

No âmbito do Direito Processual Civil, o CPC destaca certos instrumentos para fazer valer essa louvável pretensão do legislador brasileiro, que atribuiu elevada importância ao direito jurisprudencial no Brasil. O art. 927 elenca um rol de provimentos judiciais que, por imposição legal, têm eficácia vinculante, mais ou menos forte. 

O referido artigo prevê que os juízes e os tribunais "observarão": (i) as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade; (ii) os enunciados de súmula vinculante; (iii) os acórdãos em IAC ou de IRDR, bem como em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (iv) os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional; e (v) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados6. Como diferente não poderia ser, esse rol não altera em nada as disposições constitucionais já existentes antes da promulgação do CPC/15, que igualmente se fiaram à vinculatividade apriorística do provimento jurisdicional como parâmetro para tutelar a segurança jurídica no direito brasileiro7.

O CPC faz referência a outros tantos termos no contexto da proteção da segurança jurídica através da necessidade de se manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente (e.g., "jurisprudência dominante", "jurisprudência pacificada", "modulação dos efeitos"). Além disso, incorrendo em evidente confusão terminológica, mas certamente com as melhores das intenções, o § 5º do art. 927 do CPC impõe aos tribunais o dever de conferir "publicidade a seus precedentes", os quais deverão ser organizados por questão jurídica decidida e divulgados, "preferencialmente, na rede mundial de computadores".

Embora o CPC seja uma lei Federal geral comumente aplicada aos processos judiciais (e, quando compatível, também aos processos arbitrais), é certo que o mesmo racional de uniformização da jurisprudência para afiançar a segurança jurídica e, com isso, prestigiar a isonomia, também se encontra presente no contexto do processo desportivo, "instrumento pelo qual os órgãos da Justiça Desportiva aplicam o Direito Desportivo aos casos concretos".8 

A prova cabal disso está no próprio CBJD - Código Brasileiro de Justiça Desportiva, norma editada pelo CNE - Conselho Nacional de Esportes e aplicável aos julgamentos disciplinares desportivos. De acordo com seu art. 25, VI, compete ao Tribunal Pleno do STJD, órgão máximo da Justiça Desportiva da respectiva modalidade, "uniformizar a interpretação deste Código e da legislação desportiva a ele correlata, mediante o estabelecimento de súmulas de jurisprudência predominante, vinculantes ou não, editadas na forma do art. 119-A". Ou seja: o CBJD confere ao Tribunal Pleno do STJD o poder (rectius: poder-dever) de uniformizar a interpretação das normas aplicáveis aos casos que lhe são submetidos a julgamento mediante a criação de enunciados sumulares de "jurisprudência dominante", que podem ou não ser vinculantes.

Para que isso aconteça, como dito, os auditores do Tribunal Pleno deverão recorrer ao procedimento estipulado no art. 119-A do CBJD. Consta do referido dispositivo que o Tribunal Pleno do STJD "poderá, após reiteradas decisões sobre matéria de sua competência, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na forma do art. 40, poderá ter efeito vinculante em relação a todos os órgãos judicantes da respectiva modalidade, nas esferas nacional e regional, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento". Aqui, desponta oportuno salientar dois aspectos. Primeiro: tal como sucede com a súmula vinculante no Supremo, a edição de um enunciado de súmula pelo STJD só será possível "após reiteradas decisões sobre matéria de sua competência". Segundo: a vinculação, que é opcional no caso, abrangerá todos os órgãos judicantes da respectiva modalidade, em âmbito nacional e regional, permitindo-se a uniformização pretendida.

A edição de um enunciado sumular dependerá da aprovação de dois terços dos membros do Tribunal Pleno do STJD. Essa mesma regra aplica-se para a revisão e o cancelamento de enunciado sumular. À luz do § 2º do art. 119-A do CBJD, o objeto da súmula será a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, "acerca das quais haja controvérsia que acarrete insegurança jurídica e multiplicação de processos sobre questão idêntica". O texto normativo evidencia a mais não poder que a edição de súmula na Justiça Desportiva igualmente se pauta em critérios relativos à (in)segurança jurídica. Conquanto a súmula tenha eficácia imediata, o Tribunal Pleno poderá, também por decisão de dois terços de seus membros, "excluir ou restringir os efeitos vinculantes, bem como decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse do desporto", na forma do § 5º do art. 119-A. 

Adotando-se o procedimento disciplinado no art. 119-A do CBJD, o Tribunal Pleno do STJD do Futebol editou, em 26/1/14, a súmula vinculante 1, que cuida do atraso de equipes para a entrada no campo de jogo. Essa súmula vinculante possui dois comandos que são adotados até hoje, mais de dez anos depois, nos julgamentos das Comissões Disciplinares e do Tribunal Pleno do STJD do Futebol: "1. Quando a equipe ingressar com atraso no campo de jogo, descumprindo o Regulamento Geral das Competições, mas sem ocasionar atraso no início da partida, deve[m] ser aplicadas as sanções previstas no artigo 191, I do CBJD"; "2. Quando a equipe ocasionar o atraso no início ou no reinício da partida, independente de ter obedecido ou não o Regulamento Geral das Competições, aplicar-se-á a infração do artigo 206 do CBJD".

Com efeito, assim como cabe "ao Superior Tribunal de Justiça, em razão da sua função constitucional, nos termos do art. 926 do CPC/15, uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, a fim de resguardar os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia",9 também compete ao STJD realizar essa mesma tarefa uniformizadora, com vistas a permitir que aqueles que se submetem ao CBJD, em todo o território nacional, na forma do art. 1º, § 1º, I a VII, possam ter uma maior previsibilidade quanto às decisões da Justiça Desportiva, reconhecendo que os sujeitos ali indicados possam orientar suas condutas com base na interpretação segura das "regras do jogo", isto é, das normas que dispõem sobre infrações disciplinares desportivas e definem suas sanções. A respeito disso, já se disse que o "Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) desempenha um papel fundamental na criação de precedentes e na uniformização do entendimento sobre o sentido e o alcance de[] norma[s]".10 

Verifica-se, pois, que o CBJD - norma antiga, que carece de atualização - já confere relevantes instrumentos ao STJD para zelar pela uniformidade da jurisprudência desportiva. A edição de súmula com eficácia vinculante para fixar teses que determinam a interpretação a ser conferida a determinada norma com reiterada discussão no STJD é um passo importante, no contexto específico da Justiça Desportiva, em direção à uniformidade da jurisprudência. Mas isso não basta. No caso do STJD do Futebol, particularmente, tem-se - ao menos desde o início da nova gestão - envidado grandes esforços no sentido de tornar o repositório jurisprudencial da Corte mais completo, transparente e acessível a quem possa interessar, o que se perceberá com maior evidência com o inovador sítio eletrônico do STJD do Futebol, em vias de ser lançado.

É claro que o STJD não deve apenas uniformizar a sua jurisprudência internamente, mas também ficar atento às orientações jurisprudenciais dos Tribunais Superiores, a exemplo do STF e do STJ. A despeito de a Justiça Desportiva ser independente e autônoma, não se pode olvidar que, consoante a CF/88, são tais Cortes as responsáveis, respectivamente, pela guarda da lei Federal constitucional e infraconstitucional. Isso significa que, se em algum momento alguma questão decidida pelos Tribunais Superiores for aplicável ao STJD, o órgão julgador encarregado de processar e julgar a causa deverá adotar o entendimento dos órgãos máximos do Poder Judiciário, notadamente quando se tratar de provimentos judiciais vinculantes com eficácia forte (e.g., decisões em controle concentrado de constitucionalidade e acórdãos em recurso especial repetitivo).

O compromisso do STJD do Futebol com a segurança jurídica promove a igualdade e assegura que o direito desportivo seja um instrumento de justiça e estabilidade social no contexto de competições desportivas. O STJD, seja ou não do Futebol, deve sempre zelar pela harmonia de suas decisões, vendo na segurança jurídica um valor grandioso a ser atingido incessantemente.

______________

1 A respeito da coisa julgada, o STF já decidiu o seguinte: "A coisa julgada, como garantia constitucional erigida a cláusula pétrea, confere estabilidade às decisões judiciais que dirimem conflitos de interesses, sendo portanto, essencial à segurança jurídica exigida em um Estado Democrático de Direito". (AR 2966 ED-AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 06-11-2024).

2 Rcl 64202, Relator(a): GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão: ANDRÉ MENDONÇA, Segunda Turma, julgado em 21-05-2024.

3 "Não se olvida que os Tribunais, sobretudo com o advento do novo Código de Ritos, têm o dever de manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente (art. 926 do CPC/2015)". (AgInt na PET no AREsp n. 1.730.365/MS, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/5/2022, DJe de 26/5/2022); "Considerando a necessidade de uniformização da jurisprudência deste Tribunal e de mantê-la estável, íntegra e coerente - conforme determina o art. 926 do CPC/2015 [...]" (EAg n. 1.316.190/PR, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 27/10/2021, DJe de 4/11/2021); "O art. 926 do CPC impõe ser dever dos tribunais uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente". (AgInt no AREsp n. 1.881.052/RJ, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 25/10/2021, DJe de 28/10/2021); "[E]m homenagem ao comando do art. 926 do CPC de 2015, o qual impõe aos tribunais uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, deve ser aplicado o mesmo entendimento à hipótese em apreço". (CC n. 168.767/DF, relator Ministro Raul Araújo, Corte Especial, julgado em 16/6/2021, DJe de 5/8/2021); "Nos termos do que dispõe o art. 926 do CPC/2015, é dever dos tribunais uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente". (REsp n. 1.849.225/PR, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 14/5/2020).

4 AgInt nos EAREsp n. 1.821.054/RJ, relator Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, julgado em 30/3/2022, DJe de 24/6/2022.

5 "A notória instabilidade jurisprudencial, que recebeu da doutrina a alcunha de jurisprudência lotérica, causa grave insegurança jurídica, pois dificulta, para não falar que impede, por completo, a previsão sobre o resultado da controvérsia, ao mesmo tempo em que afronta o princípio da isonomia, dado que uma questão jurídica idêntica, já sedimentada pelos tribunais, tem grandes chances de ser dirimida de maneira distinta em diversos processos, envolvendo múltiplas partes. Essa instabilidade também gera uma reação em cadeia: quanto menos forem levadas a sério as decisões dos tribunais, principalmente as proferidas pelos Tribunais Superiores, maior será o índice quantitativo de postulações que baterão às portas do Poder Judiciário, o que será considerado pelos jurisdicionados, em geral, e pelos litigantes contumazes, em particular, um sinal verde para tentar a sorte na postulação da tutela de seu interesse perante o Estado-juiz (por meio de petição inicial ou pela via recursal). Do mesmo modo que toda modificação abrupta de entendimento judicial consolidado tem o condão de provocar nova onda de litigância". (Georges Abboud e Gustavo Favero Vaughn, Notas críticas sobre a reclamação e os provimentos judiciais vinculantes do CPC, Revista de Processo, vol. 287, 2019, pp. 409-441).

6 A parte que deduzir em juízo pedido contrário a alguma dessas hipóteses, por exemplo e na forma do dispositivo a seguir citado, terá seu pedido liminarmente rejeitado: "Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local".

7 "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal".; "Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei".

8 Paulo Marcos Schmitt, Curso de justiça desportiva, São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 115.

9 REsp n. 1.767.010/SP, relator Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do Trf-5ª Região), Primeira Turma, julgado em 22/6/2021, DJe de 30/6/2021.

10 Paulo Dantas e Gustavo Lisboa, Erro de direito da arbitragem de futebol, Consultor Jurídico, 2 de novembro de 2024.

Gustavo Favero Vaughn

Gustavo Favero Vaughn

Sócio de Cesar Asfor Rocha Advogados, em São Paulo e Brasília, Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com LL.M. pela Columbia Law School. Auditor da 4ª Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) do Futebol. Professor do IDP Online. Foi International Lawyer no escritório Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP, em Nova Iorque.

Luís Otávio Veríssimo Teixeira

Luís Otávio Veríssimo Teixeira

Auditor Presidente do STJD do Futebol. Advogado.

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