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A legalidade da cessão de espaço em bases de distribuição para armazenagem de etanol e biodiesel por produtores de biocombustíveis: Uma análise jurídico-regulatória

Análise jurídica defende a legalidade da cessão de espaço em bases de distribuição por produtores de biocombustíveis, visando segurança e eficiência.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Atualizado em 28 de maio de 2025 11:48

1. Introdução

ANP - Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis encontra-se atualmente na etapa final de revisão da regulamentação aplicável aos produtores de biocombustíveis, no bojo da consulta e audiência públicas 9/24, que visa atualizar e substituir a vigente resolução ANP 734/18 aplicável ao setor. Este processo regulatório foi deflagrado com o objetivo de modernizar o marco normativo, adequá-lo à evolução do mercado e sanar lacunas identificadas na prática regulatória dos últimos anos.

Entre os temas em análise, destaca-se uma oportunidade particularmente relevante: corrigir o entendimento adotado pela ANP a partir de 2022, que passou a vedar a celebração de contratos de cessão de espaço destinados a permitir que produtores de biocombustíveis complementem sua capacidade de armazenamento utilizando a tancagem disponível em bases de distribuição de combustíveis líquidos. Essa restrição, fundada em interpretação administrativa excessivamente restritiva da normativa então vigente, resultou na negação de novos pleitos de homologação e na revisão de contratos anteriormente aprovados, impondo entraves logísticos relevantes e suscitando questionamentos jurídicos de agentes econômicos e entidades representativas.

Em linha com este entendimento, a minuta originalmente proposta pela ANP no âmbito consulta e audiência públicas 09/24 não previu expressamente a permissão - ou mesmo a vedação - dessa possibilidade de armazenamento. Coube a diversos agentes do setor sugerir alterações no sentido de deixar expressamente prevista a possibilidade de complementação de capacidade de armazenamento por produtores de biocombustíveis em bases de distribuição por meio de contratos de cessão de espaço. As propostas visam nada mais do que restabelecer o modus operandi que historicamente vigorou no mercado, bem como reafirmar o entendimento anteriormente adotado pela própria ANP.

Neste momento crucial, ao revisar sua regulamentação, a Agência tem a oportunidade de restabelecer a segurança jurídica e a eficiência logística no setor de biocombustíveis, corrigindo um equívoco interpretativo que trouxe incerteza e insegurança para investimentos e operações.

Historicamente, a ANP admitia a homologação de contratos de cessão de espaço em bases de distribuição para produtores de biocombustíveis, prática respaldada pela ausência de restrição expressa nas normas vigentes, notadamente a resolução ANP 58/14 (posteriormente substituída pela resolução ANP 950/23 ) e a resolução ANP 784/19 (posteriormente substituída pela resolução ANP 960/23), que regula as instalações de armazenamento.

Esse cenário começou a se alterar em junho de 2022, quando a Raízen (distribuidor de combustíveis líquidos) protocolou pedido de homologação de contrato de cessão de espaço em favor da Inpasa (produtor de biocombustíveis), envolvendo etanol hidratado em uma base de Rondonópolis (MT). O pedido visava renovar a cessão, considerando a continuidade da relação comercial e a demanda logística existente.

O pleito foi analisado pela SDL - Superintendência de Distribuição e Logística da ANP, que, por meio do ofício 1632/2022/SDL-CRAT/SDL/ANP-RJ, indeferiu a solicitação. Neste ofício, a SDL introduziu uma nova interpretação regulatória, sustentando que, à luz dos dispositivos da resolução ANP 58/14, a complementação de capacidade de armazenagem só poderia ocorrer nas hipóteses taxativamente previstas - entre elas, cessão de espaço apenas entre distribuidores, para terminais autorizados, fornecedores de etanol anidro ou refinarias de petróleo.

Em outras palavras, a SDL estendeu aos produtores de biocombustíveis uma restrição de complementação de armazenagem aplicável somente aos distribuidores, com base em uma resolução destinada a regulamentar apenas a atividade de distribuição. Em nenhum momento o órgão invocou uma vedação expressa de complementação de armazenamento de produtores de biocombustíveis em bases de distribuição, seja com fundamento na resolução ANP 734/18, seja na resolução ANP 58/14 ou em qualquer outro ato normativo.

Inconformada com a mudança de entendimento, a Raízen apresentou pedido de reconsideração, fundamentando que: (i) não havia vedação expressa na regulamentação para cessões em favor de produtores de biocombustíveis; (ii) existiam precedentes da própria ANP que confirmavam a prática; e (iii) a nova interpretação violaria os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima.

Apesar das razões apresentadas, a SDL reafirmou seu posicionamento e, por meio do ofício 1888/2022/SDL-CRAT/SDL/ANP-RJ , negou o pedido de reconsideração. Na sequência, a Agência passou a adotar medidas de revisão de contratos já homologados, revisando, entre outros, o contrato então vigente entre a Raízen e a Inpasa, bem como determinando a reavaliação de cessões similares firmadas por outras distribuidoras, como a Petroluz.

A controvérsia, então, foi levada à apreciação da Diretoria Colegiada da ANP. Em setembro de 2024, a Diretoria julgou o recurso administrativo interposto pela Raízen e, em decisão definitiva, manteve o indeferimento da homologação pretendida.

O voto condutor dessa decisão foi proferido pelo diretor-relator Daniel Maia Vieira. Alinhado ao novo entendimento da Superintendência de Distribuição e Logística, o diretor-relator argumentou em seu voto que, nos termos do art. 31 da resolução ANP 58/14, a complementação da capacidade de armazenagem seria admissível apenas nos casos expressamente previstos na norma. 

O diretor-relator interpreta que, ao não incluir a possibilidade de cessão de espaço a terceiros (como produtores de biocombustíveis), o então art. 31 daquela resolução - atual art. 19 da resolução ANP 950/23 - não apenas não autoriza, mas indiretamente veda esse tipo de contrato. Concluiu, assim, que a ausência de previsão normativa específica para a cessão de espaço em favor de produtores de biocombustíveis implicaria a falta de respaldo jurídico para tal operação . Ademais, segundo Daniel Maia Vieira, a resolução ANP 950/23 abrangeria todos os tipos de serviços que podem ser prestados pela atividade de distribuição, incluindo serviços de armazenagem e cessão de espaço dispostos no art. 19 - antigo art. 31 da resolução ANP 58/14. 

O voto destacou, ainda, que a permissão válida para essa modalidade de operação exigiria uma alteração formal da regulamentação vigente. Tal alteração, por sua vez, demandaria a realização prévia de AIR - Análise de Impacto Regulatório e o devido processo de consulta e audiência públicas, conforme as exigências procedimentais aplicáveis. Dessa forma, a Diretoria da ANP, acompanhando o voto do relator, considerou que não haveria margem para a interpretação extensiva que autorizasse a cessão no caso concreto.

Por fim, o diretor-relator também reconheceu, ainda que implicitamente, a ocorrência de uma mudança no entendimento anteriormente aplicado pela Agência. Sustentou, contudo, que essa revisão de orientação não configuraria violação à segurança jurídica, pois, segundo sua fundamentação, a nova interpretação estaria "alinhada à necessidade de preservação da capacidade operacional mínima dos distribuidores" e aos objetivos gerais da regulação setorial.

A decisão da Diretoria Colegiada, ao acompanhar o voto condutor, consolidou o novo entendimento institucional da ANP: sob a regulamentação então vigente, não seria juridicamente possível a celebração de contratos de cessão de espaço entre bases de distribuição e produtores de biocombustíveis.

Essa deliberação, proferida sem a edição prévia de alteração normativa expressa, formalizou a ruptura com a prática anteriormente admitida pela própria Agência, contribuindo para acentuar a insegurança jurídica, a incoerência normativa e a inviabilização de soluções logísticas relevantes para a expansão do mercado de biocombustíveis no país.

No entanto, sob a ótica jurídico-regulatória, diversos fundamentos robustos demonstram que a nova orientação adotada pela Agência carece de respaldo normativo adequado e contraria princípios basilares da ordem jurídica administrativa. A controvérsia sobre a possibilidade de produtores de biocombustíveis utilizarem a capacidade de armazenamento em instalações de distribuidores de combustíveis líquidos demanda uma análise jurídica minuciosa do arcabouço regulatório da ANP. Sustenta-se, com base em interpretação sistemática e teleológica das normas vigentes, a plena legalidade de tal operação, demonstrando que interpretações restritivas carecem de amparo legal e resultam em ineficiências sistêmicas e afronta a princípios basilares do Direito.

Esta questão, de considerável relevância, transcende uma mera disputa hermenêutica, situando-se no cerne de debates fundamentais sobre a segurança no abastecimento, a otimização da infraestrutura de armazenagem existente, a promoção da eficiência e da competitividade no mercado de distribuição de combustíveis líquidos e produção de biocombustíveis e o papel da ANP como ente regulador. A presente análise jurídico-regulatória aprofunda a argumentação em favor desta legalidade.

A controvérsia em tela reflete uma tensão inerente ao ambiente regulado: de um lado, a premente necessidade dos agentes econômicos - tanto produtores de biocombustíveis em busca de flexibilidade e capacidade de estocagem, quanto distribuidores com potencial capacidade ociosa em suas instalações - de otimizar seus ativos e operações logísticas; de outro, uma possível postura regulatória que, por excesso de cautela ou por interpretações restritivas não expressamente fundamentadas em lei, pode inadvertidamente gerar ineficiências sistêmicas e impor barreiras desnecessárias.

Este artigo se propõe a demonstrar, exaustivamente, que a interpretação sistemática e teleológica das resoluções da ANP, em conjunto com a legislação correlata e os princípios basilares do Direito Administrativo e Econômico, sustentam inequivocamente a legalidade de tal operação. A análise perpassará as resoluções ANP 734/18, 950/23 e 960/23, a lei do petróleo (lei 9.478/1997), a LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a lei do processo administrativo Federal (lei 9.784/1999) e, crucialmente, a lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), evidenciando que as interpretações que obstam a referida cessão carecem de amparo legal e resultam em prejuízos à eficiência do sistema e à livre iniciativa.

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Marcelo Romanelli

Marcelo Romanelli

Diretor Jurídico do Grupo Atem.

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