Reforma tributária 22: Receitas de referências e peculiaridades
O artigo trata das receitas de referência dos municípios e os problemas locais (caso dos municípios afetados pelas enchentes no Rio Grande do Sul).
terça-feira, 27 de maio de 2025
Atualizado às 14:16
1. Cenário
O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo. Entre mitos e verdades, é fato que a carga tributária sobre o consumo é uma das mais altas, mas não é sobre o patrimônio e a renda, cujas alíquotas são menores em comparação com os demais países da OCDE. Assim, quando observamos nosso sistema, fica claro que o legislador só consegue tributar aquilo que mais atinge os grandes grupos sociais: o consumo, sendo inviável financiar o Estado com base em outra natureza tributária. Não se poderia optar por tributar a renda ou o patrimônio, pois ambos são representativos de uma pequena faixa social, diante da desigualdade inerente ao país, marcada desde o período de exploração pela ocupação europeia. (Quem quiser saber mais sobre esse tema pode consultar o extraordinário livro Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro).
Só para citar uma informação relevante: entre os países da OCDE, o Brasil é um paraíso fiscal em relação ao imposto sobre herança, já que, na Europa, a alíquota média supera 20%.
Podemos ainda citar a subtributação da propriedade rural, cuja alíquota é reduzida. Com vastas propriedades no entorno das cidades e acentuada concentração fundiária, o ITR tem arrecadação insignificante, além de contribuir para a especulação imobiliária. Mas o nosso assunto é a tributação sobre o consumo, e não quero desviar o foco do tema emergente em nosso cotidiano.
2. A EC 132/23
A EC 132/23 introduziu a ideia dos tetos de arrecadação que deverão ser utilizados para fixar as alíquotas de referência - parâmetros máximos de arrecadação para evitar o aumento da carga tributária - e também o teto de receita para o exercício do direito à complementação dos entes subnacionais que tiverem perdas. Para a União, devem ser observadas as médias de 2012 a 2021, conforme o art. 130 do ADCT, com valores corrigidos pela média do PIB e atualizados pelo IPCA. Para os Estados e municípios, a média de referência será de 2019 a 2026.
Essas médias são fundamentais para o exercício do direito. Observemos o que diz a norma:
Art. 132. Do imposto dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios apurado com base nas alíquotas de referência de que trata o art. 130 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deduzida a retenção de que trata o art. 131, § 1º, será retido montante correspondente a 5% (cinco por cento) para distribuição aos entes com as menores razões entre:
I - o valor apurado nos termos dos arts. 149-C e 156-A, § 4º, II, e § 5º, I e IV, com base nas alíquotas de referência, após a aplicação do disposto no art. 158, IV, "b", todos da Constituição Federal; e
II - a respectiva receita média, apurada nos termos do art. 131, § 2º, I, II e III, deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, limitada a 3 (três) vezes a média nacional por habitante da respectiva esfera federativa.
§ 1º Os recursos serão distribuídos, sequencial e sucessivamente, aos entes com as menores razões de que trata o caput, de maneira que, ao final da distribuição, para todos os entes que receberem recursos, seja observada a mesma a razão entre:
I - a soma do valor apurado nos termos do inciso I do caput com o valor recebido nos termos deste artigo; e
II - a receita média apurada na forma do inciso II do caput.
§ 2º Aplica-se aos recursos distribuídos na forma deste artigo o disposto no art. 131, § 5º deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
§ 3º Lei complementar estabelecerá os critérios para a redução gradativa, entre 2078 e 2097, do percentual de que trata o caput, até a sua extinção."
A primeira observação é que serão os próprios Estados e municípios que garantirão os custos da complementação, decorrente da retenção de 5% do IBS pelo Comitê Gestor. A segunda questão é que somente terão direito os entes cujas receitas - deduzidas das parcelas previstas -, quando apuradas proporcionalmente ao PIB, apresentarem valor inferior ao que recebem atualmente.
3. PLP 108/24
A regulamentação dos tetos de receita está prevista no art. 127 do PLP 108/24, que tramita no Congresso Nacional. Nele, considera-se que os municípios terão direito a eventual complementação de receita para manutenção da média de arrecadação do ISS e do repasse do ICMS, conforme os debates da EC 132/23. Ainda segundo o PLP 108/24, deverá ser observada a média da arrecadação dos anos de 2019 a 2026.
A solução parece razoável à primeira vista, pois ainda é possível aplicar o IPCA a esses valores. Ademais, o percentual de arrecadação em relação ao PIB deve ser considerado nos cálculos. A questão, porém, torna-se preocupante quando se analisa o período de 2020 a 2023, que registrou queda drástica da produção devido à pandemia de Covid-19, gerando grandes obstáculos aos entes subnacionais. Além disso, o Brasil, que tem na agricultura uma importante fonte de receita, também foi impactado por eventos climáticos extremos - como a alta no preço do café causada pela seca e as perdas decorrentes das enchentes no Rio Grande do Sul.
4. Os produtores gaúchos afetados pelas enchentes
Ainda mais crítica é a situação dos produtores gaúchos que sofreram com as enchentes históricas e que agora enfrentam a ameaça de um surto de gripe aviária. Muitos municípios foram severamente afetados pela destruição de cidades e propriedades rurais. A primeira consequência é que a perda de bens e meios de subsistência implica em queda do consumo, resultando em uma redução drástica do ICMS repassado pelo Estado, bem como do consumo local de serviços tributados pelo ISS. A segunda é que as bases produtivas dessas regiões ainda não foram restabelecidas, de modo que a arrecadação média continuará baixa até que os produtores reorganizem suas propriedades rurais e seus comércios locais.
É justamente esse o período que servirá como referência para o direito à complementação das receitas, caso haja perda com a implantação da reforma tributária. O teto de arrecadação também será baixo, e aumentar alíquotas será penoso para municípios com populações já vulnerabilizadas.
Esse duplo impacto sobre as receitas e repasses, bem como o esforço descomunal dos entes locais em reconstruir suas cidades, não foi levado em conta na regulamentação da reforma.
Tive a oportunidade de conversar com Márcio Mallmann, vice-prefeito de Estrela/RS, durante a marcha dos prefeitos em Brasília (19 a 22 de maio). Debatemos os desafios de reconstrução da cidade, profundamente afetada pelas enchentes de 2024, e de outras vizinhas ainda mais destruídas, com perda de bairros inteiros. Sem terem se recuperado da enchente anterior, agora enfrentam a ameaça da gripe aviária. Trata-se de uma região de produção de aves para exportação e consumo interno, com pequenas e médias propriedades administradas por famílias. O que pode fazer um município com 15 mil habitantes? A fragilidade política desses municípios, que em sua maioria sequer têm técnicos para acompanhar os debates da reforma, compromete ainda mais a possibilidade de ação efetiva diante dos prejuízos que tendem a se perpetuar após 2033.
5. Estratégias utilizadas
Na prática, o que muitos Estados fizeram, foi aumentar a alíquota do ICMS durante o período de referência para o cálculo da média de arrecadação. Os municípios, por sua vez, não fizeram o mesmo - seja por falta de conhecimento, seja pela dificuldade de aprovação dessas medidas nas câmaras municipais. O Estado do Rio Grande do Sul até tentou, sem sucesso, aumentar a alíquota-base do ICMS, que se manteve em 17,5%. Pernambuco, por exemplo, tem uma alíquota de 20,5%, o que oferece margem de manobra para a alíquota de referência e, posteriormente, para a alíquota padrão.
Não é justo utilizar esse critério de média de arrecadação para os municípios prejudicados por eventos climáticos extremos, que poderão - muito provavelmente - sofrer novos impactos e perder recursos diante da gripe aviária.
No Sertão, aprendemos que quando o cobertor é pequeno, precisamos optar por deixar os pés ou a cabeça de fora - não existe solução fácil. No caso dos municípios gaúchos, o cobertor não cobre nem os pés nem a cabeça, e o horizonte é extremamente difícil.
Se a capacidade produtiva local for alta, com produtos destinados a outras regiões, haverá impacto positivo no curto prazo nos repasses do ICMS, porém, a longo prazo, os municípios serão prejudicados, pois o IBS será recolhido no destino ou domicílio do adquirente. Então: qual será a estratégia para elevar a média de arrecadação e garantir um alto padrão de consumo local? Não há solução clara para municípios centrados na agricultura familiar e no pequeno comércio. Soma-se a isso o fato de que produtos in natura da cesta básica foram desonerados na reforma. Nem tudo que parece bom é realmente bom, ou é bom em todos casos, pois municípios com economia centrada na producao de alimentos serão prejudicados com a isenção. No diálogo com o vice-prefeito de Estrela, foi relatado que cerca de 12 milhões de reais por ano são destinados ao município via participação no ICMS - receita que será profundamente afetada pela inversão da titularidade arrecadatória.
6. Minhas críticas
Os legisladores estavam muito preocupados em oferecer um IBS nacional, eliminando a proliferação de normas locais e regionais que tornavam o país inseguro para investimentos e aumentavam o custo de conformidade. Contudo, esqueceram que o território brasileiro tem 8.510.000 km² - o equivalente a 85% do território europeu. Somos um continente com diversidade geográfica e econômica, e um sistema tributário uniforme tende a acentuar desigualdades entre contribuintes e regiões.
Outra advertência importante: não existe "vocação" local natural - ou, se existe, ela é fruto da ausência de projetos políticos e de desenvolvimento. As decisões sobre incentivo ou não a determinadas atividades econômicas cabem aos gestores e ao país. É fácil dizer que cabras não sobrevivem em regiões frias ou que vacas holandesas não prosperam no semiárido, mas a economia é muito mais complexa do que isso. Ouso dizer que vocação local é construção social, e se isso for verdade, como acredito que é, não faz sentido falar em vocação se concedemos incentivos bilionários à Zona Franca de Manaus.
Quais alternativas têm os municípios do Sul ou outros que sofreram com enchentes, como em Pernambuco? Elas precisam ser estudadas com sensibilidade, já que não podemos criar exceções que comprometam a reforma - mas também não podemos ignorar situações extremas sem oferecer respostas razoáveis.
Acrescento que, na reforma tributária, a participação dos municípios foi quase nula. Critico a CNM - Confederação Nacional dos Municípios e a FNP - Frente Nacional dos Prefeitos por sua atuação tímida, sem garantir a preservação dos interesses municipais. Os grandes municípios serão mais beneficiados, pois além do maior consumo local, receberão 80% dos 25% do IBS repassado pelos Estados. Ambas as associações parecem mais interessadas em indicar nomes para o Comitê Gestor do IBS do que em representar de fato os entes locais. Explicar a reforma não é o mesmo que debatê-la. Vi painéis na CNM explicando, mas não debatendo.
Concluo...
A solução não é simples e precisa ser discutida e revisada constantemente: os municípios com baixa resiliência climática estão propensos a eventos extremos que comprometem sua produção e aumenta os custos de gestão das externalidades na categoria ambiental. Também, os municípios produtores de alimentos perdem com a isenção dos alimentos,outros perderão como polos industriais. Como a reforma impacta cada ente local é irredutível.
Precisamos pensar não apenas em uniformidade normativa, mas nas particularidades regionais e nos fatores que ameaçam a saúde financeira dos municípios.
Registro três conclusões (na verdade, cinco):
- Os custos com complementações de receitas não serão arcados pela União, mas por meio da retenção de 5% do IBS de Estados e municípios;
- A média de cálculo das receitas não prevê mecanismos para tratar situações excepcionais, como as enchentes de 2024 no RS;
- Municípios com médias baixas de arrecadação ou com alíquotas reduzidas de ICMS e ISS serão prejudicados na fixação de suas alíquotas padrão;
- A reforma tributária penalizará especialmente os pequenos municípios e produtores rurais, com a isenção do IBS e a arrecadação no destino;
- As associações representativas dos municípios não atuaram de forma eficaz para defender os interesses locais diante da diversidade e dos desafios regionais.
O parâmetro para avaliar a reforma não deve ser o interesse dos escritórios de advocacia, nem os recordes de arrecadação ou o comércio internacional. O único critério legítimo é: ela é boa para a sociedade?


