MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. STJ reconhece dano moral presumido em vazamento de dados pessoais

STJ reconhece dano moral presumido em vazamento de dados pessoais

3ª turma reconheceu dano moral presumido no vazamento de dados sensíveis, ao entender que o risco era inerente à relação contratual, em contrato de seguro.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Atualizado às 09:31

A proteção de dados pessoais tornou-se um dos temas mais relevantes do Direito Contemporâneo, refletindo o avanço das tecnologias digitais e a necessidade de salvaguardar a privacidade dos indivíduos. A evolução desse direito acompanha o crescimento exponencial da economia da informação, na qual dados são considerados um ativo estratégico para empresas e governos.

Contextualizando

O debate sobre a proteção de dados pessoais remonta à segunda metade do século XX. O primeiro país a estabelecer um marco regulatório específico foi a Alemanha, que, em 1970, editou a Hessisches Datenschutzgesetz, lei que buscava regular a coleta e o uso de dados por órgãos públicos.

A partir dessa iniciativa pioneira, outros países europeus passaram a estruturar legislações semelhantes. O grande marco internacional ocorreu em 1981, com a Convenção 108 do Conselho da Europa, primeiro tratado internacional dedicado à proteção de dados. Posteriormente, a União Europeia fortaleceu esse arcabouço normativo com a diretiva 95/46/CE, que estabeleceu regras para o tratamento de dados pessoais dentro do bloco.

O avanço da digitalização e o surgimento de novas ameaças à privacidade levaram à substituição da referida diretiva pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR - General Data Protection Regulation), em vigor desde 2018. O GDPR representa um modelo mais robusto de proteção de dados pessoais no mundo, inspirando legislações em diversos países, inclusive no Brasil.

O Brasil e a proteção de dados pessoais

O Brasil não ficou alheio ao movimento global de fortalecimento da privacidade, contudo, embora a CF/88 já previsse, em seu art. 5º, o direito à intimidade e ao sigilo das comunicações, a regulamentação específica da proteção de dados, demorou a se consolidar em nosso território. 

Antes da LGPD, algumas normas esparsas e não específicas tratavam do tema de maneira fragmentada, como o CDC (lei 8.078/1990), o marco civil da internet (lei 12.965/14) e normas setoriais sobre sigilo bancário e registros médicos. No entanto, a matéria se consolidou definitivamente com a edição da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/18), sancionada em agosto de 2018 e em vigor desde setembro de 2020.

Apesar da regulamentação expressa da matéria, a controvérsia não foi totalmente dirimida, permanecendo a responsabilidade civil pelo vazamento de dados pessoais como o cerne das discussões. O principal ponto de debate reside na exigência, ou não, da comprovação de dano concreto do dano para a caracterização do dever de indenizar.

Eis o arcabouço legislativo. Pois bem, passo ao acórdão do STJ.

STJ e o reconhecimento do dano moral presumido

A jurisprudência nacional, embora de forma tímida, já vinha evoluindo no sentido de reconhecer o dano moral presumido em determinadas situações, mas ainda havia divergências sobre a extensão e os critérios para a fixação da indenização.

Entretanto, no dia 11/2/25, o STJ se posicionou sobre a controvérsia, proferindo uma decisão de grande relevância para o Direito Digital e a Proteção de Dados Pessoais no Brasil ao julgar o REsp 2.121.904. O caso concreto envolve uma seguradora e inaugura um entendimento relevante: a possibilidade de reconhecimento do dano moral presumido em hipóteses de vazamento de dados pessoais, dispensando a necessidade de comprovação de prejuízo concreto.

Importante ressaltar que a decisão do STJ pode não se limitar ao setor de seguros, possuindo um impacto transversal, podendo atingir todas as empresas que realizam o tratamento de dados pessoais, principalmente quando envolve dados sensíveis. O julgamento reforça a necessidade de observância rigorosa da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados e a adoção de medidas eficazes de segurança da informação, com programas de privacidade estruturados.

Nesse contexto, o STJ reconheceu que o simples vazamento de dados pode ser suficiente para caracterizar uma lesão à privacidade e à segurança do titular, tornando desnecessária a comprovação de danos materiais ou psicológicos. Esse entendimento amplia significativamente o alcance da responsabilidade civil em matéria de proteção de dados.

Para a relatora Nancy Andrighi, a responsabilidade do fornecedor pela proteção de dados pessoais do consumidor, especialmente quando se trata de dados sensíveis, é um dever incontestável no ordenamento jurídico brasileiro. Essa obrigação decorre tanto do CDC, que estabelece a inversão do ônus da prova em favor do consumidor em situações de vulnerabilidade (arts. 6º, VIII, e 14, caput e §3º), quanto da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, que reforça a necessidade de adoção de medidas eficazes para garantir a segurança das informações pessoais (arts. 6º, X, 8º, §2º, 42, §2º e 48, §3º).

No que se refere aos dados pessoais sensíveis, há um regime jurídico ainda mais rigoroso, dada a possibilidade de que sua exposição indevida, gere discriminação ou prejuízos irreversíveis ao titular. A LGPD, em seu art. 5º, inciso II, define como dados sensíveis aqueles que revelam a origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato, informações sobre saúde, vida sexual, dados genéticos ou biométricos. Dada a sua natureza delicada, o tratamento dessas informações exige requisitos mais estritos, incluindo, geralmente, a obtenção de consentimento específico e destacado do titular (art. 11 da LGPD).

No âmbito dos contratos de seguro de vida, a necessidade de proteção dos dados pessoais se torna ainda mais evidente. Para a avaliação de riscos e a fixação das condições contratuais, as seguradoras coletam informações altamente sensíveis sobre a saúde, condição financeira e aspectos pessoais dos segurados. O dever de sigilo e proteção dessas informações é inerente à própria relação contratual e, portanto, sua violação impõe responsabilidade objetiva à seguradora.

Dessa forma, fixou-se o entendimento de que o vazamento de dados sensíveis fornecidos para a contratação do seguro de vida não exige prova de dano concreto, pois a simples exposição indevida dessas informações já submete o consumidor a riscos significativos relacionados à sua honra, imagem, intimidade, segurança patrimonial e integridade física.

Com base nesse entendimento, a jurisprudência do STJ consolidou a tese de que, em casos de vazamento de dados sensíveis, há a caracterização do dano moral presumido, independentemente da demonstração de prejuízo material específico. Nesse sentido, a revisão do valor da indenização por dano moral apenas se justifica se o montante fixado for considerado exorbitante ou ínfimo, o que não se verificava na hipótese em análise.

Portanto, no caso concreto, o acórdão recorrido manteve a responsabilidade da seguradora, reconhecendo que: a) houve vazamento de dados pessoais do segurado; b) os dados expostos eram sensíveis, abrangendo informações fiscais, bancárias e de saúde; c) havia nexo de causalidade entre a falha na prestação do serviço e o vazamento, configurando descumprimento do dever de proteção da seguradora.

Novos rumos na proteção de dados pessoais

Diante desses elementos, a decisão que impôs a responsabilização da seguradora se mostra plenamente justificada, uma vez que a falha na segurança da informação viola direitos fundamentais dos consumidores e impõe riscos que vão além do mero dissabor cotidiano. Assim, o reconhecimento da responsabilidade objetiva e do dano moral presumido nesses casos não apenas resguarda os direitos dos titulares de dados, mas também reforça a necessidade de adoção de medidas rigorosas de proteção de informações sensíveis, em conformidade com os princípios da LGPD e do CDC.

Dessa forma, a tese fixada pelo STJ pode influenciar uma série de litígios futuros sobre incidentes de segurança envolvendo dados pessoais, consolidando um cenário de maior responsabilização das empresas e ampliando as possibilidades de indenização.

Além das sanções administrativas que podem ser aplicadas pela ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, as empresas envolvidas em vazamentos estarão expostas a um volume crescente de demandas judiciais, aumentando a necessidade de gerenciamento eficiente dos riscos regulatórios e jurídicos.

Diante desse novo paradigma jurisprudencial, organizações que tratam dados pessoais devem reforçar suas práticas de governança e segurança da informação com a adoção de sistemas de segurança mais seguros, treinamento contínuo de equipes internas e implementação de programas de privacidade mais efetivos.

O julgamento do STJ sinaliza uma mudança relevante na interpretação da responsabilidade civil por vazamento de dados no Brasil, impondo uma nova realidade para o tratamento de dados pessoais. O cenário atual exige um compromisso ainda maior com a segurança da informação, não apenas como uma exigência legal, mas como um fator estratégico essencial para a manutenção da confiança e a mitigação de riscos.

_____________

1 Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: www.planalto.gov.br

2 Brasil. (1990). Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: www.planalto.gov.br

3 Brasil. (2014). Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: www.planalto.gov.br

4 Brasil. (2018). Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: www.planalto.gov.br

5 Conselho da Europa. (1981). Convenção para a Proteção das Pessoas Singulares no que Diz Respeito ao Tratamento Automatizado de Dados de Caráter Pessoal (Convenção 108). Estrasburgo, França. Disponível em: https://rm.coe.int/cm-convention-108-portuguese-version-2756-1476-7367-1/1680aa72a2 

6 Brasil. Superior Tribunal de Justiça. (2024). Recurso Especial nº 2.121.904 - SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=295578100®istro_numero=202400312927&peticao_numero=&publicacao_data=20250217&formato=PDF

7 União Europeia. (1995). Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31995L0046

8 União Europeia. (2016). Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) - Regulamento (UE) 2016/679. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2016/679/oj

Roberta Castilho Andrade Lopes

Roberta Castilho Andrade Lopes

Doutora e Mestra pela USP. Presidente Comissão de Registros Públicos OAB Mauá. Especialista em D. Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura. Procuradora-Geral do Município de Mauá.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca