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A desnecessidade de repetição de documentos nos autos eletrônicos

Em processos eletrônicos, é desnecessária a juntada de documentos já presentes nos autos principais em incidentes processuais, conforme aplicação analógica dos arts. 522 a 524 e 1.017, § 5º, do CPC.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Atualizado às 14:14

A era digital transformou o Judiciário, e com ela, a necessidade de revisitar práticas cartorárias antes indispensáveis.

Uma delas é a juntada de documentos já existentes nos autos principais eletrônicos quando da criação de incidentes processuais.

Este artigo defende a desnecessidade de tal prática, em observância aos princípios da economia processual, instrumentalidade das formas e por aplicação analógica dos arts. 522 a 524 do CPC de 1973 (CPC/73), bem como do art. 1.017, § 5º, do CPC de 2015 (CPC/15).

Introdução: O processo eletrônico e a superação de formalismos excessivos

A transição dos autos físicos para o meio eletrônico, impulsionada pela lei 11.419/06, revolucionou a tramitação processual no Brasil.

Um dos grandes benefícios dessa modernização é a facilidade de acesso integral aos autos por todos os sujeitos processuais, a qualquer tempo e de qualquer lugar.

Nesse contexto, a exigência de repetir a juntada de documentos já constantes do processo principal eletrônico em seus incidentes (como cumprimentos, restituição de bens apreendidos, falsidade documental e etc.) soa como um formalismo anacrônico e desnecessário, que vai de encontro à celeridade e eficiência almejadas.

A lógica dos arts. 522 a 524 do CPC/73 e a transição para o processo eletrônico

Os arts. 522 a 524 do revogado CPC/73 tratavam da formação do instrumento no Agravo de Instrumento.

Em um sistema de autos físicos, era crucial que o recurso, processado em apartado, fosse instruído com cópias das peças essenciais do processo principal para que o tribunal pudesse compreender a controvérsia.

A ausência de uma peça obrigatória poderia levar ao não conhecimento do recurso.

A ratio decidendi (a razão de decidir) por trás dessas normas era clara: garantir que o juízo ad quem tivesse acesso aos elementos mínimos para a análise da questão submetida a reexame, já que os autos originais permaneciam na primeira instância.

Contudo, essa lógica perde grande parte de seu sentido nos processos eletrônicos, onde os autos são um todo unificado e acessível eletronicamente.

O art. 1.017, § 5º, do CPC/2015: A confirmação legal da dispensa no agravo de instrumento eletrônico

O CPC de 2015, atento à realidade do processo eletrônico, trouxe uma disposição expressa que reflete essa nova dinâmica.

O art. 1.017, ao tratar do Agravo de Instrumento, estabelece em seu § 5º:

Art. 1.017. A petição de agravo de instrumento será instruída:

(...)

§ 5º Sendo eletrônicos os autos do processo, dispensam-se as peças referidas nos incisos I e II do caput, facultando-se ao agravante anexar outros documentos que entender úteis para a compreensão da controvérsia.

Este dispositivo é um marco, pois reconhece legalmente que, em autos eletrônicos, a replicação de documentos já existentes no corpo do processo principal é desnecessária.

O acesso do tribunal ao inteiro teor dos autos eletrônicos é pleno, tornando a exigência de juntada de cópias um ato redundante e que apenas contribui para o aumento do volume digital sem qualquer ganho prático.

A aplicação analógica aos incidentes processuais em autos eletrônicos

Se a dispensa da juntada de peças é expressamente prevista para o Agravo de Instrumento em autos eletrônicos, por que não aplicar o mesmo racional, por analogia, aos demais incidentes processuais que tramitam vinculados a um processo principal também eletrônico?

Os incidentes processuais, embora autuados em apartado em alguns sistemas, são intrinsecamente ligados ao processo principal.

Nos sistemas de processo eletrônico (PJe, e-SAJ, Projudi, Eproc, etc.), os incidentes são, via de regra, vinculados eletronicamente aos autos principais, permitindo que o magistrado e as partes acessem todos os documentos do processo originário com poucos cliques.

A exigência de que a parte digitalize e anexe novamente documentos que já se encontram no bojo do processo principal eletrônico contraria os seguintes princípios:

Princípio da Instrumentalidade das Formas (Art. 188 e 277 do CPC/15): O processo é um meio para se atingir um fim (a justa composição da lide). Os atos processuais devem ser aproveitados sempre que atingirem sua finalidade e não houver prejuízo à defesa. Se os documentos já estão acessíveis, a finalidade de dar conhecimento ao juízo e à parte contrária já foi atingida.

Princípio da Economia Processual e da Eficiência (Art. 8º do CPC/15): Deve-se buscar o máximo resultado com o mínimo de esforço e dispêndio. A repetição de atos processuais inúteis onera as partes e o sistema judiciário.

Princípio da Razoável Duração do Processo (Art. 5º, LXXVIII, CF e Art. 4º do CPC/15): A burocratização desnecessária contribui para a morosidade processual.

Princípio da Boa-Fé Processual e da Cooperação (Art. 5º e 6º do CPC/15): Espera-se que todos os sujeitos do processo cooperem entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. A juntada desnecessária de documentos pode ser vista como uma prática que não colabora para a agilidade.

Doutrina e Precedentes

A doutrina processual moderna tem caminhado no sentido de valorizar a instrumentalidade e a eficiência no processo eletrônico.

Embora o tema específico da juntada de documentos em incidentes não seja tão exaustivamente debatido como as peças do Agravo, a lógica subjacente é a mesma.

Fredie Didier Jr., em suas obras sobre o processo civil, frequentemente ressalta a necessidade de se interpretar as normas processuais à luz das facilidades e peculiaridades do processo eletrônico, evitando-se a aplicação de entendimentos sedimentados na era do processo físico.

Em pesquisa no portal Jusbrasil, é possível encontrar manifestações que, embora possam não tratar diretamente e exclusivamente da desnecessidade de juntada em todos os incidentes, refletem o entendimento sobre a dispensa de documentos em autos eletrônicos com base no Art. 1.017, § 5º, do CPC, e nos princípios da instrumentalidade e economia processual.

Por exemplo, em decisões sobre Agravo de Instrumento ou Incidente de Cumprimento de Sentença, é comum encontrar referências à dispensa das peças obrigatórias em processos eletrônicos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRELIMINAR ARGUIDA EM CONTRAMINUTA. Ausência de peça obrigatória (decisão agravada). Afastamento. Autos eletrônicos. Desnecessária a juntada das peças obrigatórias e facultativas, nos termos do artigo 1.017, § 5º, do Código de Processo Civil. Tutela de urgência. MULTA. Determinada a suspensão da publicidade da negativação do nome da agravada, sob pena de multa diária de R$ 200,00, limitada a R$ 10.000,00. Pretensão à revogação da medida antecipatória, bem como afastamento da multa arbitrada, ou, subsidiariamente, a sua redução . Basta ao banco agravante cumprir aquilo que lhe foi determinado - e não há óbice a que cumpra - para livrar-se da imposição pecuniária. Multa fixada que atende os critérios da razoabilidade e proporcionalidade. Decisão mantida. Recurso não provido. (TJ/SP - Agravo de Instrumento: 22667884120248260000 São Paulo, Relator.: JAIRO BRAZIL, Data de Julgamento: 14/10/2024, 19ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/10/2024)

RECURSO - AGRAVO DE INSTRUMENTO - COMPRA E VENDA DE BEM MÓVEL - AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM REPARATÓRIA DE DANOS - FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - MÉRITO. Agravado que suscita irregularidade formal pela ausência de juntada de peças obrigatórias. Descabimento. Desnecessidade da juntada de procuração das partes, tratando-se de autos digitais, viável a consulta dos documentos nos autos de origem. Matéria preliminar afastada. RECURSO - AGRAVO DE INSTRUMENTO - COMPRA E VENDA DE BEM MÓVEL - AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM REPARATÓRIA DE DANOS - FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - MATÉRIA PRELIMINAR SUSCITADA EM CONTRAMINUTA. Insurgência contra decisão que indeferiu a compensação de créditos e débitos entre as partes. Hipótese em que não se verifica possibilidade de compensação . Crédito buscado pelo agravante que é ilíquido e demanda a instauração de incidente autônomo de cumprimento de sentença, inviável a pretensão no presente momento processual. Decisão mantida. Recurso de agravo de instrumento não provido. (TJ/SP - Agravo de Instrumento: 21394802220248260000 São Pedro, Relator.: Marcondes D'Angelo, Data de Julgamento: 17/06/2024, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2024)

Embora os exemplos acima sejam específicos do Agravo de Instrumento e Incidente de Cumprimento de Sentença, o fundamento - a total acessibilidade dos autos eletrônicos - é plenamente aplicável, por analogia, aos incidentes processuais.

Se o tribunal, instância superior, tem acesso integral aos autos eletrônicos para julgar um recurso, com maior razão o juízo de primeiro grau, ao processar um incidente vinculado, também o tem.

A praxe forense em muitas varas e tribunais já tem caminhado para essa dispensa, muitas vezes informalmente, com despachos que simplesmente remetem aos documentos dos autos principais ou consideram prequestionada a matéria com base no que já consta no processo eletrônico principal.

No entanto, a ausência de uma previsão legal explícita para todos os incidentes ainda gera insegurança e, por vezes, exigências desnecessárias por parte de algumas serventias ou magistrados.

Recomendações para uma prática processual mais eficiente

Para evitar controvérsias e otimizar a tramitação dos feitos, sugere-se:

Advogados: Ao protocolar um incidente, caso optem por não juntar novamente documentos já existentes nos autos principais eletrônicos, podem fazer uma breve menção na petição inicial do incidente, indicando que os documentos pertinentes já se encontram no processo principal (e.g., "nos termos do evento X dos autos principais" ou "conforme documentos de ID YYY nos autos principais"), invocando o art. 1.017, § 5º, do CPC/15 por analogia e os princípios da economia e instrumentalidade.

Magistrados e Serventuários: Adotar uma postura que privilegie a consulta direta aos autos principais eletrônicos, evitando a exigência de repetição de documentos, salvo em situações excepcionalíssimas onde a clareza ou a organização do incidente possam ser substancialmente prejudicadas - o que é raro em sistemas eletrônicos bem estruturados.

Conclusão: Por um processo eletrônico desburocratizado e efetivo

A desnecessidade de juntada de documentos já existentes nos autos principais eletrônicos quando da criação de incidentes processuais é uma consequência lógica da própria natureza do processo eletrônico e dos princípios que regem o direito processual civil moderno.

A aplicação analógica do art. 1.017, § 5º, do CPC/15, que dispensa tais peças no Agravo de Instrumento eletrônico, bem como a observância dos princípios da instrumentalidade das formas, da economia processual e da razoável duração do processo, corroboram a tese de que a repetição de atos já consumados e acessíveis no sistema é um formalismo inútil.

Adotar essa compreensão não apenas economiza tempo e recursos das partes e do Judiciário, mas também reforça a imagem de uma Justiça mais ágil, eficiente e focada na solução do mérito das controvérsias, em plena consonância com os objetivos do CPC de 2015 e com as expectativas da sociedade na era digital.

Marcelo Alves Neves

VIP Marcelo Alves Neves

Advogado focado em conhecimento, eficiência e resultado. Tel./Wpp.: (16) 99169.4996 | Visite: www.man.adv.br | Instagram.: man.adv.br.

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