IA criminosa: O vácuo legal que ameaça a gestão pública e a democracia
O uso criminoso de IAs nas redes sociais expõe um vácuo legal no Brasil. Essa lacuna ameaça a integridade da gestão pública e a própria democracia, potencializando crimes de ódio e milícias digitais.
domingo, 1 de junho de 2025
Atualizado em 30 de maio de 2025 14:33
1. Introdução: A problemática do uso criminoso de IAs e a lacuna regulatória
O avanço exponencial da IA - inteligência artificial generativa, notadamente em sua aplicação nas redes sociais, tem redefinido as fronteiras da criminalidade, impondo desafios sem precedentes ao Direito Penal e, de forma particular, à Administração Pública. A capacidade dessas tecnologias de criar conteúdos indistinguíveis da realidade, manipular informações e automatizar processos em escala massiva, gera um cenário de "caos" regulatório, onde a legislação existente se mostra insuficiente para conter os ilícitos digitais. Este artigo visa explorar a problemática do uso criminoso de IAs, a lacuna regulatória no Brasil e o impacto direto na gestão pública, propondo caminhos para uma adaptação urgente do sistema jurídico.
A democratização da internet e os avanços tecnológicos, embora proporcionem experiências transformadoras, também abrem portas para novas modalidades de criminalidade. Agentes criminosos, impulsionados pela busca por maximizar seus ilícitos, passaram a utilizar as tecnologias e o ambiente cibernético, dando origem ao fenômeno dos crimes virtuais.
A problemática se agrava com o advento das inteligências artificiais, em especial as generativas, capazes de produzir conteúdos inéditos e altamente convincentes. Essa capacidade de mimetizar o pensamento humano e gerar resultados originais cria um cenário onde a legislação penal brasileira se mostra despreparada para acompanhar e fazer frente a essa nova realidade. O resultado é uma lacuna legal que contribui para a desordem no ambiente digital e, de forma alarmante, para a impunidade daqueles que se valem dessas ferramentas para fins ilícitos.
No contexto da gestão pública, essa lacuna regulatória e a emergência de crimes impulsionados por IA representam um desafio crítico. A improbidade administrativa e a corrupção, males persistentes que corroem a confiança nas instituições e desviam recursos essenciais ao desenvolvimento social, encontram nas IAs um novo e poderoso vetor. Este artigo propõe-se a explorar essa relação caótica, analisando como o uso criminoso de IAs nas redes sociais impacta a Administração Pública e a urgência de uma regulamentação específica para proteger o interesse público na era digital.
2. A nova fronteira da criminalidade: IAs como vetores de ilícitos complexos
As IAs generativas, caracterizadas pela habilidade de criar conteúdos originais, representam uma nova e perigosa fronteira para a criminalidade. Se, por um lado, o emprego adequado das IAs pode diminuir a carga de trabalhos repetitivos e auxiliar na tomada de decisões, por outro, seu uso indevido para fins criminosos coloca um obstáculo real à aplicação do Direito Penal, especialmente quando tais crimes são perpetrados no meio digital, como nas redes sociais.
No âmbito da Administração Pública, as capacidades das IAs generativas podem ser exploradas para diversas finalidades ilícitas, configurando uma nova geração de desafios à probidade e à moralidade. Podemos observar, por exemplo, a manipulação de licitações e contratos. IAs podem ser empregadas para gerar documentos falsos com extrema verossimilhança, simular propostas competitivas para direcionar certames, ou até mesmo analisar e prever estratégias de concorrentes para frustrar o caráter competitivo de licitações. A sofisticação na criação de tais documentos e simulações torna a detecção por métodos tradicionais extremamente difícil.
Outra aplicação criminosa alarmante é o desvio de recursos e o disfarce de atos de improbidade. IAs podem ser programadas para criar complexos esquemas financeiros, gerar relatórios contábeis fraudulentos que simulam transações legítimas, ou mesmo produzir evidências digitais falsas para encobrir o enriquecimento ilícito ou o prejuízo ao erário. A capacidade de processar e manipular grandes volumes de dados permite que esses ilícitos sejam executados com uma escala e velocidade sem precedentes, tornando a rastreabilidade e a comprovação do dolo específico um desafio ainda maior.
Além disso, as IAs são ferramentas potentes para ataques à reputação de agentes públicos. A criação de deepfakes, conteúdo difamatório gerado automaticamente, ou campanhas de difamação coordenadas em redes sociais podem ser utilizadas para descredibilizar servidores, gestores ou políticos. Tais ataques, muitas vezes anônimos ou atribuídos a perfis falsos criados por IA, visam minar a confiança pública e afetar a imagem de indivíduos ou instituições, ferindo diretamente os princípios da moralidade e impessoalidade que regem a Administração Pública. O impacto se estende ao cidadão comum, que pode ter sua imagem ou voz clonada para golpes sofisticados, como fraudes telefônicas, ou ser alvo de notícias falsas que influenciam suas decisões financeiras ou de consumo.
A essa complexidade, somam-se as polêmicas sobre crimes de ódio, polarização política, milícias digitais e violações do sistema eleitoral, todas potencializadas pelo uso de IAs.
- Crimes de ódio: IAs podem ser treinadas para identificar e segmentar grupos vulneráveis, gerando e disseminando discursos de ódio altamente personalizados e eficazes, que incitam à violência e à discriminação, corroendo o tecido social e a convivência pacífica.
- Polarização política: Algoritmos de IA podem criar "bolhas de filtro" e "câmaras de eco" nas redes sociais, alimentando os usuários apenas com informações que confirmam suas crenças e isolando-os de perspectivas divergentes, fragilizando o debate democrático e a capacidade de consenso.
- Milícias digitais: Grupos organizados utilizam IAs para automatizar a criação de perfis falsos (bots), coordenar ataques de massa e espalhar propaganda ideológica ou desinformação em larga escala, minando a confiança nas fontes de informação e na própria realidade.
- Violações do sistema eleitoral: A IA pode ser empregada para manipular o processo eleitoral através de microtargeting de eleitores com mensagens enganosas, simulação de apoio popular por meio de redes de bots, e a criação de deepfakes de candidatos fazendo declarações falsas, comprometendo a lisura e a legitimidade do voto popular.
A automação e a capacidade de operar em escala global pulverizam os conceitos clássicos de tempo e local do crime, tornando a definição de competência e a cooperação internacional indispensáveis, mas complexas. A ausência de uma regulamentação específica para o uso criminoso de IAs, portanto, não apenas perpetua a impunidade, mas também permite que a criminalidade digital avance em um ritmo singular, desafiando a capacidade do sistema jurídico de proteger os bens jurídicos da Administração Pública.
3. O vácuo regulatório e seu impacto na Administração Pública
A insuficiência do arcabouço legal brasileiro para lidar com os crimes impulsionados por inteligência artificial é uma realidade preocupante. As leis existentes, embora importantes para o combate a crimes cibernéticos de natureza mais tradicional, não foram concebidas para a complexidade e a especificidade dos ilícitos facilitados ou gerados por IA.
A lei 12.737/12, conhecida como lei Carolina Dieckmann, focou na tipificação da invasão de dispositivo informático. Contudo, muitos crimes com uso de IA não demandam a violação do dispositivo da vítima, mas sim a manipulação de informações ou a criação de conteúdos a partir de dados voluntariamente disponibilizados. A lei 14.155/21, por sua vez, buscou agravar penas para crimes como furto e estelionato quando cometidos por meio eletrônico. No entanto, a mera elevação de penas, sem uma compreensão aprofundada da natureza dos crimes impulsionados por IA, não atinge o objetivo preventivo.
Mesmo a Convenção de Budapeste, que representa um avanço na cooperação internacional contra crimes cibernéticos, não aborda diretamente os ilícitos penais cometidos com o uso de IAs generativas. Essa lacuna é crítica, pois a capacidade da IA de criar realidades virtuais convincentes desafia a própria noção de prova e autoria.
O impacto desse vácuo regulatório na Administração Pública é multifacetado e profundamente prejudicial, atingindo os pilares que a sustentam:
A moralidade, que exige conduta ética e proba dos agentes públicos, é diretamente atacada por esquemas de corrupção e improbidade disfarçados por IA, bem como pela disseminação de deepfakes e desinformação que corroem a confiança pública. Essa erosão da confiança se reflete na percepção do cidadão sobre a integridade das instituições, gerando desamparo e confusão. A impessoalidade, que prega a igualdade de tratamento e a ausência de favorecimentos, é violada quando IAs manipulam processos seletivos, licitatórios ou direcionam campanhas de ódio e polarização política, afetando a percepção de justiça e equidade nos serviços públicos. A eficiência, que busca a otimização dos recursos e a celeridade na prestação de serviços, é comprometida por ataques cibernéticos e fraudes que paralisam sistemas e desviam investimentos, além da necessidade de desviar recursos para combater a desinformação e as milícias digitais. Isso pode se traduzir, por exemplo, na falta de medicamentos em hospitais públicos ou na demora em atendimentos essenciais, impactando diretamente a vida do cidadão. Por fim, a probidade, que demanda honestidade e integridade na gestão do patrimônio público, é minada por desvios de recursos facilitados pela IA e pela fragilização do sistema eleitoral.
Em suma, a lacuna regulatória não é apenas um problema técnico-jurídico; é uma falha sistêmica que compromete a capacidade do Estado de proteger o patrimônio público, garantir a integridade de seus processos e manter a confiança da população, elementos cruciais para uma governança pública eficaz e ética.
4. Regulação das redes sociais no Brasil: Necessidade ou ameaça à liberdade de expressão?
A discussão sobre a regulação das redes sociais é um ponto nevrálgico no debate sobre o uso criminoso de IAs e a proteção da Administração Pública. Essa tensão entre a necessidade de controle e a garantia da liberdade de expressão é complexa e multifacetada.
Por um lado, as grandes empresas de tecnologia, que dominam o mercado digital, prestaram grandes serviços ao democratizar a informatização e a participação política dos cidadãos. Contudo, paralelamente, trouxeram novos problemas que exigem respostas satisfatórias. Segundo Hubert Alquéres, em seu artigo "Redes Sociais e Liberdade de Expressão" (Metrópoles, 1/05/2024), a intolerância, o discurso de ódio, a xenofobia e o preconceito se espalharam pelo mundo, potencializados pelos algoritmos. Alquéres destaca a dificuldade para um país, isoladamente, fazer respeitar suas leis e decisões em uma realidade na qual as empresas tecnológicas operam sem barreiras físicas ou fronteiras. Essas plataformas, ele aponta, têm operado no sentido de inviabilizar qualquer monitoramento externo de dados de suas redes, reduzindo seus mecanismos de autorregulação. Essa tendência se justifica sob o argumento de que, por ser absoluta, a liberdade de expressão não pode ter elementos de controle. Daí decorrem dois problemas: as redes sociais se transformam em terra sem lei e operam como uma espécie de poder global, acima dos governos e instituições nacionais.
A forma como o discurso de ódio se propaga é ilustrativa dessa dinâmica: o que começa como um "discursinho de ódio" pode ser nutrido e patrocinado, crescendo e se tornando algo que "sufoca e mata", mas que, paradoxalmente, pode ser comercialmente viável, conforme também observa Hubert Alquéres. Isso levanta a questão fundamental sobre a responsabilidade das plataformas e a necessidade de "podar" esse tipo de conteúdo.
Por outro lado, há quem defenda uma liberdade de expressão irrestrita, argumentando que a moderação de conteúdo pode levar à censura e à remoção acidental de postagens inocentes. Nessa linha, Mafê Firpo, ao abordar as declarações de Elon Musk sobre o serviço de checagem (Veja, 07/01/2025), indica a perspectiva de que, ao reduzir os serviços de checagem de fatos, a quantidade de censura nas plataformas diminuiria drasticamente, mesmo que isso signifique delegar essa função aos próprios usuários.
No entanto, tentar regular as redes sociais para combater a desinformação advinda de fake news sempre envolve riscos. Hubert Alquéres questiona importantes problemas apontados pela literatura a respeito desses riscos: como definir, em termos práticos, a diferença entre opinião e notícia equivocada? Quando se justifica a tomada de medidas contra quem dissemina fake news de modo consciente e deliberado? Quem está formalmente apto a tomar essas medidas? Além disso, há uma tensão entre a liberdade de expressão assegurada pela Constituição e a dificuldade de definir objetivamente a distinção entre o que é apenas uma informação equivocada e o que é uma informação falsa e de má-fé.
Essa discussão é amplamente refletida em debates públicos, que trazem à tona a complexa relação entre a regulação das redes sociais e a liberdade de expressão. Para a Administração Pública, essa tensão não resolvida impacta diretamente a capacidade do Estado de proteger suas instituições e cidadãos de danos digitais, especialmente quando IAs são usadas para amplificar discursos de ódio, polarização e ataques à democracia.
Nesse cenário de complexidade e urgência, meu entendimento é claro: a regulamentação do uso das redes sociais não é apenas uma necessidade, mas uma medida imperativa para a salvaguarda da ordem social e democrática. A liberdade de expressão, embora um direito fundamental e inalienável, não pode ser um salvo-conduto para a irresponsabilidade e o dano. A máxima "tudo posso, mas nem tudo me convém" aplica-se perfeitamente aqui. Tenho a liberdade de expressar minhas ideias, mas essa liberdade não me confere o direito de macular a honra de terceiros, de incitar a violência, de propagar mentiras que atentem contra as instituições democráticas ou de desestabilizar o sistema eleitoral sem limites.
A ausência de regulação transforma o ambiente digital em uma "terra sem lei", onde a impunidade fomenta a proliferação de ilícitos. É fundamental que haja um arcabouço legal que estabeleça limites claros, defina responsabilidades e preveja mecanismos eficazes de fiscalização e punição. Essa regulamentação deve ser urgente, pois a velocidade com que as tecnologias de IA evoluem e são utilizadas para fins criminosos supera a capacidade de resposta do sistema jurídico atual. Não se trata de cercear a liberdade, mas de garantir que ela seja exercida com responsabilidade e respeito aos direitos alheios e à integridade das instituições.
5. A perspectiva constitucional-penal: Lesividade, taxatividade e a busca pela verdade real
A análise dos crimes impulsionados por inteligência artificial, especialmente no contexto da Administração Pública, exige uma profunda reflexão sob a ótica dos princípios constitucionais-penais. Como especialista na área, reafirmo a importância de conceitos como a lesividade e a taxatividade, que devem guiar a construção de um arcabouço legal robusto e justo.
O princípio da lesividade ou ofensividade do Evento preconiza que não há crime sem ofensa ao bem jurídico protegido pela norma. No contexto dos ilícitos com IA, é fundamental argumentar que, embora as ferramentas sejam novas, a lesão aos bens jurídicos da Administração Pública é concreta e material. A manipulação de licitações, o desvio de recursos, os ataques à reputação de agentes públicos, a disseminação de crimes de ódio, a polarização política e as violações eleitorais, mesmo que perpetradas por algoritmos, resultam em danos tangíveis ao erário, à integridade dos processos administrativos, à confiança nas instituições e à própria estabilidade democrática. Não se trata de meros "crimes de mera conduta" sem resultado material. A lesão, nesse caso, é real e exige uma resposta penal adequada, que reconheça a materialidade do dano causado pela IA. Estudos recentes e relatórios de órgãos de controle têm consistentemente apontado para o aumento da complexidade e do impacto desses ilícitos.
Em contrapartida, o Princípio da Taxatividade ou da Determinação exige que a norma penal seja clara e compreensível. Este é o cerne do desafio regulatório atual. A complexidade e a rápida evolução das IAs tornam difícil a criação de tipos penais que sejam suficientemente específicos para abranger as novas modalidades de crimes, sem serem excessivamente restritivos ou, inversamente, tão amplos que violem a segurança jurídica. A ausência de clareza na tipificação pode levar à impunidade ou à aplicação arbitrária da lei, comprometendo a isonomia e a previsibilidade.
A busca pela "verdade real" no PAD - Processo Administrativo Disciplinar é outro ponto crucial. A "verdade real" busca reconstruir o que efetivamente ocorreu, e a comissão apuratória deve atuar ativamente para descobri-la. No entanto, a proliferação de deepfakes, a manipulação de narrativas por milícias digitais e a capacidade da IA de gerar evidências falsas de forma convincente representam um desafio sem precedentes para essa busca. Isso exige não apenas a "livre apreciação da prova", mas também a necessidade de ferramentas tecnológicas avançadas e perícias especializadas para autenticar ou desmascarar evidências digitais, um campo onde especialistas em forense digital têm se tornado indispensáveis.
Portanto, a perspectiva constitucional-penal exige que o Direito Penal brasileiro se adapte para tipificar de forma clara e precisa os crimes impulsionados por IA, reconhecendo a materialidade da lesão aos bens jurídicos da Administração Pública. Ao mesmo tempo, os mecanismos de apuração, como o PAD, devem ser munidos de recursos e conhecimentos especializados para lidar com a complexidade das provas digitais, garantindo a busca pela verdade real em um cenário onde a fronteira entre o real e o artificial se torna cada vez mais tênue.
6. O papel indispensável das procuradorias e da governança inovadora
A satisfação em tecer o presente reside, sem dúvida, na percepção de que nosso labor, com os atributos constitucionalmente exarados na Magna Carta, pode ser profícuo para o deslinde de questões pro bono publico. Ao ensejo, diante do cenário complexo e desafiador imposto pelo uso criminoso de IAs nas redes sociais, o papel da Advocacia Pública e das Procuradorias torna-se não apenas relevante, mas absolutamente indispensável. Como patronos dos entes públicos, os procuradores são os guardiões do Estado democrático de direito e exercem uma função essencial à Justiça. Sua atuação é crucial tanto na prevenção quanto no combate a esses novos tipos de crimes.
A Procuradoria, em sua essência, deve ser uma procuradoria zeladora do erário. Isso implica uma vigilância constante contra o desvio de verbas e a proteção do patrimônio público, agora ameaçados por sofisticados esquemas impulsionados por IA, incluindo a manipulação de licitações e o desvio de recursos. A capacidade de identificar e combater a improbidade disfarçada por meio de tecnologias avançadas exige uma postura proativa e especializada.
Nesse contexto, a justiça comutativa distribuída pelas procuradorias ganha nova dimensão. A atuação das procuradorias na mediação de relações e na garantia da equidade se estende à necessidade de restaurar o equilíbrio e a justiça quando os bens públicos são lesados por crimes de IA, como a erosão da confiança pública por deepfakes ou a desestabilização eleitoral por milícias digitais. Isso pode envolver a busca por reparação de danos e a responsabilização dos infratores, mas também a implementação de medidas que prevejam futuras ocorrências.
A gestão inovadora nas procuradorias para desafogar o Judiciário é um caminho promissor. A litigiosidade excessiva sobrecarrega o sistema de justiça. As procuradorias podem adotar uma postura mais proativa, utilizando métodos alternativos de resolução de conflitos e buscando soluções negociadas, como o PAD Autocompositivo. Este modelo, focado na resolução pacífica e na conciliação, pode ser adaptado para infrações de menor potencial ofensivo relacionadas à IA, promovendo a probidade com o erário ao evitar custos e desgastes desnecessários, e liberando recursos para focar nos casos de maior gravidade.
Adicionalmente, a inteligência artificial, que hoje representa uma ameaça, pode e deve ser uma ferramenta poderosa para a governança pública. A IA pode auxiliar significativamente na prevenção e detecção de fraudes e na promoção do compliance. Especificamente, a IA pode ser empregada para:
- Análise de dados em grande escala: Processar e interpretar vastos volumes de dados de licitações, contratos, movimentações financeiras e interações em redes sociais, identificando padrões e anomalias que seriam imperceptíveis ao olho humano. Isso inclui a detecção de campanhas de desinformação, bots e perfis falsos.
- Detecção de anomalias: Flagrar comportamentos incomuns ou transações suspeitas que possam indicar o uso de IA para fins ilícitos, como a criação de empresas de fachada ou a simulação de serviços. No contexto de crimes de ódio e polarização, pode identificar picos de atividade ou disseminação de conteúdo específico.
- Reconhecimento de padrões: Identificar a autoria de conteúdos gerados por IA, como deepfakes ou textos manipulados, e reconhecer campanhas de desinformação ou ataques coordenados à reputação de agentes públicos e ao sistema eleitoral.
- Monitoramento e auditoria contínua: Automatizar processos de fiscalização e auditoria, garantindo uma vigilância constante sobre a conformidade e a integridade dos atos administrativos.
A integração da IA nas estratégias de governança pública, portanto, não é apenas uma possibilidade, mas uma necessidade urgente para que as procuradorias possam cumprir seu papel de forma eficaz na era digital. Isso transforma a IA de um vetor de caos em um instrumento de proteção e eficiência para o Estado.
7. A urgência da regulamentação específica e a adaptação do sistema jurídico
A análise aprofundada da problemática do uso criminoso de IAs nas redes sociais, com seus impactos devastadores na Administração Pública, culmina na inadiável constatação da urgência de uma regulamentação específica e da adaptação do sistema jurídico. Não se defende aqui o aumento indiscriminado de leis penais, mas sim uma regulamentação específica sobre delitos virtuais perpetrados com IA que possa responder de forma satisfatória às novas necessidades da sociedade brasileira. A mera aplicação de leis gerais ou a adaptação de normas existentes, como vimos, é insuficiente para conter a sofisticação e a escala dos crimes impulsionados por IA.
A legislação futura deve ser clara e precisa, tipificando as condutas criminosas que se valem da Inteligência Artificial, sem cair na armadilha da vagueza que comprometeria a segurança jurídica. Isso implica um esforço legislativo que compreenda as nuances tecnológicas e suas potenciais explorações maliciosas, garantindo que a lei seja capaz de alcançar a materialidade da lesão aos bens jurídicos da Administração Pública, incluindo a erosão da confiança democrática e a violação da integridade eleitoral.
Enquanto a regulamentação específica não se concretiza, a Administração Pública não pode permanecer inerte. É imperativo que sejam adotadas ações proativas e multifacetadas para mitigar os riscos e fortalecer a capacidade de resposta do Estado:
- Elaboração de normas internas: Os órgãos e entidades da Administração Pública devem desenvolver e implementar normas e diretrizes internas que abordem o uso e o mau uso da IA em seus processos e por seus agentes. Isso inclui políticas de segurança da informação, uso ético de dados, procedimentos para lidar com incidentes envolvendo IA, e diretrizes claras sobre o combate à desinformação e ao discurso de ódio.
- Capacitação e treinamento contínuo: É fundamental investir na formação e no aprimoramento dos servidores públicos, especialmente aqueles que atuam em procuradorias, comissões de PAD, auditorias e setores de tecnologia. O treinamento deve abranger o entendimento das capacidades das IAs, métodos de detecção de fraudes e manipulações digitais, e as implicações legais e éticas do uso da tecnologia, com foco em crimes de ódio, polarização e violações eleitorais. A capacitação contínua dos agentes públicos resultará em maior celeridade na apuração e recuperação de ativos desviados, além de fortalecer a resiliência institucional.
- Monitoramento e auditoria contínua: A implementação de sistemas de monitoramento e auditoria baseados em IA é essencial para identificar anomalias e padrões suspeitos em tempo real. Isso permite uma detecção mais rápida de possíveis ilícitos e a tomada de medidas corretivas ágeis. Isso inclui o monitoramento de redes sociais para identificar milícias digitais e campanhas de desinformação, transformando dados brutos em inteligência acionável.
- Incentivo à denúncia e proteção a denunciantes: A criação e o fortalecimento de canais de denúncia seguros e confidenciais são cruciais para que irregularidades envolvendo IA sejam trazidas à tona. A proteção aos denunciantes, garantindo que não sofram retaliações, é um elemento-chave para encorajar a colaboração e desvendar esquemas complexos, promovendo uma cultura de transparência e accountability.
- Cooperação interinstitucional: A natureza transfronteiriça e multidisciplinar dos crimes de IA exige uma colaboração estreita entre diferentes esferas de governo (federal, estadual, municipal), órgãos de controle (Tribunais de Contas, Ministério Público), forças policiais e o Poder Judiciário. A troca de informações, o desenvolvimento de protocolos conjuntos e a criação de equipes especializadas são indispensáveis para um combate eficaz, otimizando recursos e expertise.
Essas ações proativas, embora não substituam a necessidade de uma legislação específica, são passos fundamentais para que a Administração Pública possa se adaptar à era digital, proteger o interesse público e garantir a probidade em um ambiente cada vez mais complexo e tecnologicamente avançado.
8. Epílogo
Caro leitor, diante de numerosos desafios, convido-o à reflexão sobre a necessária mudança de paradigma. Considero fundamental que os servidores públicos adotem uma postura ativa na nova ordem social, sem ceder às práticas de corrupção e desvios éticos que prejudicam o funcionalismo público.
Com base em nossa experiência forense, afirmo que o cenário atual, marcado pelo avanço das Inteligências Artificiais e seu uso indevido nas redes sociais, impõe um desafio sem precedentes ao Direito Penal brasileiro e, especialmente, à Administração Pública. O descompasso entre a inovação tecnológica e a regulamentação insuficiente tem facilitado ilícitos complexos, como fraudes em licitações, desvio de recursos, ataques à reputação de agentes públicos, disseminação de discursos de ódio, polarização política e violações ao sistema eleitoral, comprometendo os princípios da moralidade, impessoalidade, eficiência e probidade.
A insuficiência das leis existentes para lidar com a complexidade dos crimes impulsionados por IA é inegável, e a necessidade de uma regulamentação específica, clara e taxativa, é urgente. Essa nova legislação deve reconhecer a materialidade da lesão aos bens jurídicos da Administração Pública, garantindo que a sofisticação tecnológica não se traduza em impunidade.
Contudo, a resposta a esse caos digital não se restringe ao campo legislativo. Ela exige uma abordagem multifacetada e proativa, na qual as procuradorias desempenham um papel central. Como zeladoras do erário e promotoras da justiça comutativa, as procuradorias devem liderar a implementação de uma governança inovadora, que utilize a própria IA como ferramenta para detecção de fraudes, análise de dados em larga escala e monitoramento contínuo. A adoção de mecanismos como o PAD Autocompositivo e a institucionalização de núcleos de mediação são exemplos de como a Administração Pública pode se adaptar para resolver conflitos de forma mais eficiente e proba.
Em remate, penso que diante da magnitude do desafio imposto pela IA criminosa, a inação não é uma opção. É imperativo que o Estado brasileiro, por meio de seus Poderes e instituições, atue de forma coordenada e decisiva. A proteção do interesse público na era digital dependerá da capacidade de se reinventar, criando leis adequadas, investindo massivamente em capacitação de seus quadros, fomentando a cooperação interinstitucional e promovendo uma cultura de integridade que abrace a tecnologia como aliada, e não como inimiga. Somente com um esforço conjunto e uma visão de futuro será possível mitigar o caos gerado pelo uso criminosas das IAs e garantir a integridade e a confiança na Administração Pública em um mundo cada vez mais conectado e complexo.
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