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Um contencioso com dois donos: Quem vai julgar o IBS?

A criação do IBS promete simplificar tributos, mas traz desafios ao contencioso, exigindo cooperação federativa e definição clara sobre a Justiça competente.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Atualizado em 29 de maio de 2025 14:25

A EC 132/23, que trouxe à tona a reforma tributária sobre o consumo, é uma das mudanças mais ousadas no sistema tributário nacional desde a Constituição de 1988. Um dos seus principais fundamentos é a criação do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, um tributo que não se acumula, com uma base de incidência ampla e arrecadação compartilhada entre Estados, o Distrito Federal e os municípios. Embora o IBS tenha a promessa de tornar o sistema tributário mais racional e simplificado, sua estrutura federativa apresenta desafios inéditos para o contencioso tributário, especialmente no que diz respeito à sua administração e ao acesso ao Judiciário.

Inspirado em modelos de Imposto sobre IVA - Valor Agregado, como o da União Europeia, o IBS será administrado por um CG-IBS - Comitê Gestor, conforme estipulado no art. 156-B da Constituição Federal, introduzido pela EC 132/23. Esse comitê contará com representantes de todos os entes federativos, o que representa uma inovação institucional significativa, mas também exige novos padrões de coordenação e consenso entre os diferentes níveis de governo.

Esse tribunal administrativo terá a responsabilidade de processar e julgar autuações relacionadas ao imposto, aplicando regras comuns de procedimento, prazos e julgamentos. Suas principais características incluem uma jurisdição nacional com juízes indicados por Estados e Municípios, decisões colegiadas e técnicas, além de um foco na harmonização da jurisprudência.

Além disso, o PLP 108/24 prevê que os Estados e municípios terão uma nova estrutura de gestão e arrecadação do IBS, o que pode aumentar a eficiência e a equidade na distribuição de recursos. Para os contribuintes, prevê uma simplificação no processo de pagamento e fiscalização desse imposto, além de um sistema mais claro para resolver disputas tributárias. Para as empresas, especialmente aquelas com saldos credores de ICMS, prevê a mudança no reembolso e compensação desses créditos será significativa. Para o governo federal, tal proposta demanda o desembolso inicial do financiamento pelo CG-IBS, o que pode exigir ajustes no orçamento.

Porém, persistem no espaço institucional desafios estruturais relevantes, como a representatividade proporcional no órgão julgador, o risco de conflitos entre os próprios entes federativos no julgamento de litígios e a necessidade de compatibilização com os sistemas já existentes nas esferas estadual e municipal. No campo judicial, o IBS cria um novo problema: a dualidade de competências jurisdicionais. Sendo o imposto compartilhado, há a dúvida de qual será a justiça competente para julgar os litígios, se a Federal ou a Estadual. Na prática, isso pode gerar a multiplicação de ações, relacionadas ao mesmo fato gerador, em jurisdições distintas, com decisões possivelmente contraditórias.

O próprio STJ manifestou preocupação com esse cenário, prevendo o aumento da litigiosidade, ao invés da sua diminuição. Algumas medidas, como a criação de ações específicas, a uniformização por meio de súmulas vinculantes e a coordenação entre os entes, estão sendo discutidas, mas ainda carecem de definição legislativa.

A promessa de simplificação tributária decorrente da substituição do ICMS e do ISS pelo IBS deve ser analisada com um grau de cautela. De um lado, elimina-se a guerra fiscal, a cumulatividade

A promessa de simplificação tributária trazida pela substituição do ICMS e do ISS pelo IBS deve ser analisada com cautela. Por um lado, elimina-se a guerra fiscal, a cumulatividade e a insegurança jurídica provocada por normas locais conflitantes. Por outro, cria-se um modelo institucional inédito, que requer cooperação constante entre entes autônomos e desenvolvimento de novas estruturas administrativas e judiciais.

Há o risco real de que, no curto prazo, o número de litígios aumente, principalmente durante o período de transição, devido à coexistência entre o modelo antigo e o novo, bem como à ausência de jurisprudência consolidada.

O contencioso do IBS representa um dos maiores testes à viabilidade da reforma tributária brasileira. A proposta de um contencioso administrativo unificado é um avanço importante, mas que depende de equilíbrio federativo e estrutura institucional eficiente. Já no plano judicial, a ausência de solução clara para a definição de competência pode comprometer os ganhos esperados de simplificação e segurança jurídica.

Assim, a efetividade do novo modelo dependerá de uma implementação técnica e cooperativa, que consiga evitar a fragmentação e garantir a previsibilidade das decisões. O sucesso do IBS no campo do contencioso será um reflexo direto da maturidade institucional do federalismo brasileiro.

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IMPACTOS DA REFORMA TRIBUTÁRIA NO PODER JUDICIÁRIO; GRUPO DE TRABALHO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; PORTARIA STJ/GP n. 458/2024 (https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/Relatório%20Impactos%20da%20Reforma%20Tributária%20no%20Poder%20Judciário.pdf) 

Constituição Federal (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)

Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)

Karina de Oliveira

Karina de Oliveira

Advogada especialista em Direito Tributário, com atuação na área consultiva e no contencioso judicial e administrativo nas esferas federal, estadual e municipal. Formação em Direito pelo Mackenzie, com especializações em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes e em Advocacia Tributária pela Escola Brasileira de Direito. Com atualização em Direito Tributário pela Escola Superior de Advocacia/OAB-RJ, extensão em Teses Tributárias e Transação Tributária pela Intelligence Tax School (ITS EDU) e em Reforma Tributária pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

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