Enchentes no RS: Desafios jurídicos e reconstrução sustentável
Enchentes no RS em 2024 revelam desafios jurídicos em regularização fundiária, reparação de danos e reconstrução urbana.
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Atualizado às 09:58
As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024 marcaram um dos episódios mais dramáticos da história recente do Brasil, com impactos humanos, sociais, ambientais e patrimoniais de proporções alarmantes. Além da tragédia humana e das perdas materiais, o evento evidenciou falhas estruturais no ordenamento territorial, nos sistemas de prevenção de riscos e na articulação entre as esferas de governo.
Em um cenário de emergência climática, os desafios jurídicos se tornam ainda mais relevantes, principalmente no que tange à regularização fundiária de áreas afetadas, à reparação de danos ambientais individuais - tanto morais quanto materiais - e à estruturação de políticas públicas voltadas à reconstrução das cidades de maneira ambientalmente segura, socialmente justa e juridicamente coerente.
Neste artigo, abordaremos quatro aspectos fundamentais para o enfrentamento jurídico pós-enchentes: (1) os impactos diretos na regularização fundiária; (2) os direitos dos proprietários de imóveis destruídos ou inutilizados; (3) o reconhecimento do dano ambiental individual e suas formas de reparação; e (4) os desafios normativos e institucionais para a reconstrução urbana, sob a ótica do Direito Ambiental, Urbanístico e dos Desastres.
Impactos das enchentes na regularização fundiária
A tragédia revelou que muitos imóveis afetados estavam situados em áreas de risco ou de preservação ambiental, frequentemente à margem de qualquer processo formal de regularização fundiária.
A lei 13.465/17, que rege a Reurb - Regularização Fundiária Urbana, exige a realização de estudos técnicos em áreas de risco, com vistas à eliminação, correção ou administração dos perigos existentes. Nessas zonas, a regularização depende da implementação das medidas de mitigação recomendadas.
Além disso, o Código Florestal (lei 12.651/12) veda a ocupação de APPs - Áreas de Preservação Permanente, como margens de rios, encostas e várzeas, salvo hipóteses excepcionais com interesse social e compatibilidade ambiental.
Assim, muitos imóveis atingidos pelas enchentes podem estar em situação jurídica de difícil regularização, exigindo soluções integradas que envolvam realocação assistida, uso de instrumentos urbanísticos e atuação conjunta de municípios, Estados e União. É indispensável, ainda, observar os princípios da função social da propriedade e da cidade, conforme o Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), como diretrizes estruturantes da política urbana.
Direitos dos proprietários afetados: Seguro, responsabilidade e reparação
Proprietários de imóveis destruídos ou inutilizados pelas enchentes têm direito à reparação integral dos danos, o que abrange diferentes esferas. No plano contratual, é comum que imóveis financiados possuam cobertura securitária específica contra desastres naturais. Nesses casos, os titulares podem acionar as seguradoras para exigir o cumprimento das obrigações indenizatórias previstas nas apólices.
Contudo, os prejuízos ultrapassam a esfera patrimonial imediata. Na hipótese de falha do Poder Público na prevenção do desastre - seja por ausência de obras de contenção, falhas no ordenamento urbano ou omissão na evacuação de áreas de risco - é plenamente cabível a responsabilização objetiva do Estado, nos termos do art. 37, § 6º da CF/88.
Nesse sentido, os proprietários podem pleitear judicialmente indenizações tanto por danos materiais (perda do imóvel, móveis, utensílios, etc.) quanto por danos morais, diante da violação do direito à moradia, à dignidade e à integridade psíquica.
Dano ambiental individual: Reconhecimento e reparação integral
A CF/88, em seu art. 225, consagra o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A violação deste direito, especialmente em eventos como enchentes intensificadas por omissões estatais, pode ensejar a configuração do chamado dano ambiental individual. Trata-se de uma manifestação do dano ambiental que atinge, de forma direta, pessoas físicas ou jurídicas determinadas, gerando sofrimento, perda patrimonial, prejuízo à saúde, à estabilidade econômica e ao convívio social.
O STJ tem reconhecido a possibilidade de cumulação de danos materiais e morais por danos ambientais de natureza individual, especialmente quando há perda da qualidade de vida e da saúde mental dos afetados. A reparação, portanto, deve ser integral, nos moldes do art. 944 do CC, sendo possível a formulação de ações individuais ou coletivas, com base na responsabilidade civil ambiental objetiva e solidária, nos termos do art. 14, §1º da lei 6.938/1981.
Desafios jurídicos na reconstrução das cidades
A reconstrução urbana pós-enchentes impõe desafios normativos, institucionais e estruturais. Um dos principais obstáculos é a compatibilização da urgência na execução de obras com o rigor da legislação ambiental e urbanística. O reordenamento territorial de áreas atingidas exige obediência à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (lei 12.608/12), que estabelece diretrizes para mapeamento de riscos, planos de contingência e ações preventivas de caráter permanente.
Além disso, a reconstrução deve incorporar os parâmetros do chamado Direito dos Desastres - um ramo jurídico em construção no Brasil - que busca integrar a proteção dos direitos fundamentais, a gestão de riscos e a governança participativa. A formulação de planos diretores adaptados ao novo cenário climático, a regularização fundiária com segurança jurídica, o reassentamento assistido com enfoque socioambiental e a responsabilização dos entes que contribuíram para o agravamento dos danos são exigências jurídicas incontornáveis. A reconstrução, para ser legítima, precisa ser inclusiva, transparente e orientada à prevenção de novas catástrofes.
Conclusão
As enchentes no Rio Grande do Sul em 2024 funcionaram como um divisor de águas na forma como o ordenamento jurídico e os operadores do Direito devem encarar a urbanização desordenada, a fragilidade das políticas habitacionais e a omissão histórica na gestão do risco ambiental. A regularização fundiária, o reconhecimento dos danos ambientais individuais e a reconstrução das cidades não podem mais ser conduzidos sob as mesmas premissas.



