O paradoxo de Hungria e a ficção do dolo eventual
A ambiguidade do art. 18, I, do CP revela o paradoxo de Hungria: O dolo eventual se sustenta em presunções e viola a legalidade. É hora de superá-lo com base constitucional verificável.
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Atualizado às 14:22
O art. 18, inciso I, do CP afirma: "Diz-se o crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo." Esse "ou" não é apenas uma conjunção gramatical. Ele é a chave de uma ambiguidade profunda.
Se dolo é a vontade de produzir um resultado, como pode também ser a simples aceitação do risco de sua ocorrência, sem que haja vontade real? Essas duas ideias não são complementares. São incompatíveis. Aqui está o paradoxo de Hungria.
Nelson Hungria, que participou da comissão revisora do CP de 1940, reconheceu esse impasse. Afirmava que o legislador havia adotado a teoria da vontade, complementada pela teoria do assentimento. Mas o texto diz "ou", e não "e". Se o dolo fosse composto pela vontade mais o assentimento, o texto deveria indicar adição. Mas o que temos é uma alternância de fundamentos, que gera confusão e abre caminho para interpretações subjetivas. Foi nessa brecha que se consolidou o dolo eventual no Direito Penal brasileiro.
E aqui é importante destacar um ponto central: o Brasil não criou o dolo eventual. O Brasil importou essa ficção jurídica da Europa. Embora se costume associar o dolo eventual ao Código Rocco, sua origem remonta ao Direito Canônico, conforme analiso em dolo e imprudência - Un viaje crítico por la historia de la imputación (Bosch - 2020). O Código italiano dos anos 1930 apenas lançou mão de uma doutrina que há tempos já permeava a dogmática penal europeia. No Brasil, essa construção foi incorporada pelo CP de 1940, em pleno Estado Novo, num contexto de forte influência autoritária. Esse transplante teórico foi assimilado como uma categoria híbrida, sem definição técnico-normativa, sustentada por presunções e juízos morais. E até hoje o dolo eventual permanece em vigor, escondido sob uma formulação ambígua que nunca foi constitucionalmente revista.
A consequência prática é grave: a imputação penal deixa de se basear em critérios objetivos e passa a depender de juízos interpretativos sobre o "risco assumido" - algo que frequentemente não é demonstrável, mas apenas inferido, sem base verificável.
Esse modelo também rompe com a estrutura lógico-normativa do tipo penal doloso. A aceitação de um risco não pode substituir a demonstração de que o resultado era desejado, estava previsto e incluído na finalidade da ação. O dolo não se presume, e não pode ser construído a partir da ausência de negação - o que, na prática, inverte o ônus da prova e transforma o silêncio do réu em elemento confirmatório da imputação. O fato é que essa operação interpretativa esvazia o primeiro quesito significativo da Teoria Significativa da Imputação, que exige, para a conduta dolosa, demonstração concreta da vontade de obter o resultado típico.
A jurisprudência tem reiteradamente recorrido ao dolo eventual para suprir deficiências probatórias, especialmente em casos de grande repercussão pública. Essa prática compromete a imparcialidade da imputação penal e transfere ao réu o encargo de provar a ausência de dolo, o que constitui uma violação frontal ao princípio da presunção de inocência. Logo, o paradoxo não é apenas doutrinário - ele se realiza diariamente nas sentenças, tornando a aplicação do direito penal vulnerável a critérios subjetivos, morais e midiáticos.
A Teoria Significativa da Imputação propõe romper com esse modelo. Ela elimina o dolo eventual (e qualquer classificação para o dolo), abandona a presunção de vontade, e propõe, uma classificação técnica, clara e verificável da imprudência consciente em três níveis: gravíssima, grave e leve. Cada conduta é analisada com base em caracteres significativos da ação, e não em abstrações ideológicas. A imputação penal passa, assim, a ser racional, proporcional e constitucionalmente adequada.
Ao fim e ao cabo, mais do que uma revisão terminológica, essa proposta significa reconstruir a imputação penal sobre fundamentos democráticos. Não se trata de suavizar a resposta penal, mas de ajustar sua incidência ao grau de previsibilidade, ao risco assumido e à linguagem da ação - conforme analisado pelos sete quesitos significativos. Em suma, o que se elimina é a margem de arbitrariedade, que é substituída por critérios objetivos, verificáveis e normativamente sustentáveis.
Nesse contexto, o paradoxo de Hungria precisa ser superado. Precisamos abandonar estruturas herdadas de tradições autoritárias e reconstruir o Direito Penal com base em uma racionalidade democrática, técnica e constitucional.


