Do vadio ao apologista: A prisão de MC Poze do Rodo
A prisão de MC Poze expõe como o Direito Penal brasileiro perpetua racismo histórico, trocando "vadiagem" por "apologia ao crime" para censurar a arte negra periférica e manter desigualdades sociais.
terça-feira, 3 de junho de 2025
Atualizado às 14:04
O Direito é frequentemente apresentado como um instrumento de racionalidade e civilidade, uma estrutura destinada a organizar a vida em sociedade de forma justa. No entanto, por trás dessa imagem formal, ele também opera historicamente como um mecanismo de dominação, repressão e manutenção de desigualdades sociais. No Brasil, onde a desigualdade é estruturante e não apenas um efeito colateral, o Direito tem sido continuamente utilizado para reforçar exclusões - principalmente aquelas que atingem corpos negros, pobres e periféricos.
Desde a criminalização da vadiagem logo após a abolição da escravidão até a prisão de artistas como MC Poze do Rodo, hoje, há um padrão claro que atravessa séculos, o controle social exercido por meio do sistema penal. A intenção nunca muda - conter os considerados indesejáveis e silenciar vozes dissidentes -, mas os mecanismos jurídicos utilizados se atualizam. O "vadio" do passado deu lugar ao "apologista do crime". Mas a lógica de repressão segue intacta, apenas adaptada a novos rótulos e justificativas legais.
A assinatura da lei Áurea, em 13 de maio de 1888, marcou juridicamente o fim da escravidão no Brasil, mas esteve longe de garantir a inclusão dos negros na cidadania plena. Sem políticas de reparação, inclusão ou redistribuição de recursos, os ex-escravizados foram deixados à própria sorte. Essa "liberdade" era, na prática, um abandono institucional.
Nesse cenário, a marginalidade dos negros passou a ser tratada como uma questão penal. O CP de 1890, por exemplo, tipificou a vadiagem como contravenção penal, criminalizando quem não se encaixasse nas formas tradicionais de trabalho formal - justamente aqueles que, historicamente, haviam sido excluídos dessas estruturas. Assim, o negro liberto sem emprego ou terra era transformado em delinquente por um sistema que nunca o reconheceu como cidadão.
Essa criminalização da vadiagem serviu a dois propósitos a saber, o primeiro de impedir a mobilização autônoma dos ex-escravizados e garantir mão de obra barata e disciplinada para a economia emergente e a segunda de institucionalizar uma nova forma de segregação racial, garantindo que os corpos negros permanecessem vulneráveis à violência estatal.
Com a Constituição de 1988 e o avanço dos direitos civis, a figura do vadio perdeu força como justificativa para criminalização. No entanto, o sistema penal encontrou novas formas de cumprir sua função de exclusão. Entre elas, começa a ganhar destaque o crime de apologia ao crime (art. 287 do CP), usado como ferramenta de repressão disfarçada de combate à criminalidade organizada e à suposta glamourização do tráfico.
O caso de MC Poze do Rodo, artista negro e periférico, acusado de apologia ao crime e associação criminosa, exemplifica esse fenômeno. Sua prisão não ocorreu por qualquer ato ilegal concreto, mas sim pela estética de sua arte, pelas narrativas de suas músicas e pelo fato de ele viver e circular em um território marginalizado. Seu corpo tornou-se evidência contra ele.
Tal como a vadiagem criminalizava a sobrevivência dos ex-escravizados sem considerar a exclusão estatal que os empurrava à informalidade, a apologia ao crime penaliza a arte da favela sem considerar o contexto social que a produz. Criminaliza-se o narrador da violência, e não quem a perpetua.
Na periferia, a arte não é apenas entretenimento - é um meio de denúncia, resistência e construção de identidade. O funk, o rap, o trap e o pagode baiano expressam a dor, o orgulho e a revolta de comunidades marginalizadas. Não por acaso, esses gêneros estão entre os mais censurados e frequentemente associados à criminalidade.
Os antigos sambistas, outrora perseguidos e encarcerados sob a acusação de vadiagem, nos primórdios do samba como expressão identitária das comunidades periféricas, hoje são substituídos por cantores de funk e trap, igualmente criminalizados - agora sob a pecha de apologia ao crime - unicamente por conta de suas expressões culturais. O Brasil, mais uma vez, demonstra não aprender com seu passado. Repete, com novos rótulos e velhas práticas, a repressão sistemática das manifestações artísticas negras e periféricas. A mensagem da sociedade permanece clara - a arte da favela continua sendo tratada como ameaça, não como expressão legítima de existência.
A repressão à cultura periférica expõe um viés seletivo na liberdade de expressão, pois enquanto artistas brancos da elite produzem filmes sobre crimes de colarinho branco, escrevem livros sobre o crime ou cantam sobre o uso de drogas recreativas sem qualquer consequência legal, jovens negros que retratam vivências similares são acusados de glorificar o tráfico. Esse duplo padrão jurídico e moral tem raízes no racismo estrutural.
O que se criminaliza não é o conteúdo da arte, mas quem a produz. A arte negra, quando realista e incisiva, é vista como ameaça. Já a arte branca, mesmo quando trata dos mesmos temas, é aceita como crítica social legítima.
Se antes a vadiagem considerava suspeitos aqueles que não possuíam ocupação formal, hoje a criminalização opera por outro critério: o território. No Brasil contemporâneo, o local de origem pode ser interpretado como indício de crime.
No caso de MC Poze do Rodo, sua "proximidade com o tráfico" foi inferida com base em elementos banais, simplesmente por frequentar festas na sua própria comunidade, mencionar gírias em suas letras, circular pelo bairro onde cresceu, afinal de contas qual outro entretimento existe nas favelas. Tudo isso reforça uma lógica de culpa presumida, onde o princípio da individualização da pena é ignorado.
A favela, assim, se torna um espaço de exceção, onde o Estado age exclusivamente de forma repressiva, invertendo a presunção de inocência e tratando a mera existência de corpos negros como um fator de suspeita.
A história do Direito Penal no Brasil mostra um padrão contínuo de repressão através dpo uso da legislação para conter grupos marginalizados e negar direitos básicos. A figura do "vadio" desapareceu formalmente, mas sua função social foi reciclada em novas categorias penais igualmente vagas e manipuláveis, como o "apologista" ou o "associado".
A prisão de artistas negros sob acusações frágeis revela mais do que seletividade penal, ela escancara um modelo de Direito que não se afastou de suas origens autoritárias. Um sistema que, mesmo sob a capa da legalidade, continua a servir como braço armado do poder contra os mais vulneráveis. Esse uso do Direito como instrumento de repressão não apenas é ilegítimo - é inconstitucional. Nele persiste a lógica de um poder que se arroga o direito de punir antes de compreender, de silenciar antes de escutar, de eliminar antes de integrar.
Todo ordenamento que permite a violação dos direitos de um único homem - seja preto, pobre ou periférico - compromete a integridade do pacto coletivo. Porque a ofensa dirigida ao indivíduo nunca se encerra nele: ela reverbera no tecido social, corrói a legitimidade das instituições e debilita o próprio ideal de justiça. Cada violação é uma rachadura invisível na arquitetura da civilização. A cada exceção, o sistema afasta-se de seu fundamento que é a convivência equilibrada entre os diferentes e preservação da liberdade individual em detrimento do poder do Estado.
Quando a repressão toma o lugar do diálogo, e a punição é aplicada antes da escuta, deixa-se de governar em nome do bem comum e passa-se a administrar o medo. E não há sociedade justa onde o medo é o motor do Direito. O poder que atua contra os que menos têm é o mesmo que deslegitima sua própria autoridade. Não há justiça onde não há equidade. E não há equidade quando a lei, ainda que escrita para todos, se aplica com mais rigor a alguns e com complacência a outros.
A verdadeira justiça não é força, mas medida. Ela não se realiza por vingança, mas por equilíbrio. Ela não se impõe por superioridade, mas se manifesta quando cada ser é reconhecido em sua inteireza - não pela aparência, pelo território ou pela linguagem, mas pela dignidade que o habita. Não há crime em cantar o que se vive, nem culpa em traduzir a dor coletiva por meio da arte. O que há é medo de quem ousa dizer o que os muros das cidades tentam calar.
Um Estado que prende vozes ao invés de ouvi-las abandona seu compromisso com a liberdade. E um Direito que persegue corpos negros por expressarem sua vivência fere não apenas o indivíduo, mas o princípio que dá sentido à vida em comunidade. A justiça não é retaliação, é construção. Não nasce do poder de julgar, mas da capacidade de compreender. Não se sustenta na letra morta da norma, mas na harmonia entre o que é legal e o que é justo.
É preciso resgatar o sentido primeiro do que significa viver em sociedade e reconhecer que a vida do outro é também espelho da nossa. Que qualquer sistema que aceite ferir um para proteger outro já está condenado à falência moral. Não se pode haver paz onde a regra é punir os mais fracos para manter a ordem dos mais fortes. Um país verdadeiramente democrático é aquele em que nenhuma existência é tratada como ameaça apenas por ser o que é. Nesse país, a justiça não teria rosto, cor, nem endereço fixo - teria apenas uma missão de garantir que ninguém precise se esconder para viver.
Essa análise não se ancora nos autos do processo, tampouco nas provas materiais eventualmente produzidas em sede de investigação criminal. Não se pretende aqui julgar se o artista é culpado ou inocente - tarefa que cabe exclusivamente à Justiça, dentro das garantias do devido processo legal. O que se examina é algo anterior e mais profundo que é a operação simbólica e concreta do Direito quando ele é desviado de sua função legítima para servir como ferramenta de opressão e controle social. É esse desvio que deve ser denunciado sempre que ocorrer, sobretudo quando afeta justamente os setores historicamente mais reprimidos da sociedade.
É sintomático, nesse sentido, que o crime imputado ao artista - apologia - não comporte, sequer em tese, o cumprimento de pena em regime fechado, dada a pena máxima cominada em abstrato. A existência de uma prisão cautelar nesse contexto já desnuda a desproporção da medida e revela o caráter político da repressão. Mais do que um ato jurídico, é um recado, de que a ascensão de corpos negros e periféricos será constantemente vigiada, e sua queda, se necessária, será rápida e exemplar. O impacto disso na vida da comunidade é brutal - ver um de seus filhos romper as barreiras do preconceito e da desigualdade, apenas para ser devolvido ao cárcere com a mesma rapidez, reforça a sensação de que não há lugar seguro para o sonho negro fora dos limites da submissão.
O que aqui se escreve é, portanto, sobre a deslegitimação da cultura periférica e, quase sempre, preta. Sobre a tentativa sistemática de esvaziar o valor simbólico, estético e político das expressões que emergem da dor e da potência dessas vivências. O Direito, quando se presta a sufocar essas vozes, deixa de ser instrumento de justiça e se converte em mecanismo de exclusão. E uma sociedade que permite isso sem resistência abdica de seu compromisso com a democracia real - aquela em que todas as vidas, todas as falas e todas as existências têm o mesmo direito de ocupar espaço e de dizer o mundo.
"Dizer o mundo" é mais do que falar - é existir com voz, gestos, gravuras. É inscrever-se no espaço social como sujeito de sentido, como alguém cuja presença transforma o ambiente e a linguagem. Não se trata apenas da palavra falada ou escrita, mas de toda forma de expressão que comunica uma vivência. A música, a dança, a indumentária, o grafite, os rituais, os sotaques e até os silêncios são maneiras de dizer o mundo. E quando esses modos de expressão brotam da cultura periférica, negra, indígena, LGBTQIAPN+ ou de qualquer grupo historicamente silenciado, tornam-se não apenas formas de arte, mas atos políticos de afirmação e resistência.
A cultura, nesse contexto, é o campo por excelência onde se disputa legitimidade. Quem pode dizer? Quem é escutado? Quem é traduzido como "universal" e quem é rotulado como "desvio"? A cultura dominante constrói seus signos como legítimos, neutros e naturais - e tudo que escapa dessa lógica é frequentemente desautorizado, desqualificado, criminalizado. Por isso, quando a favela canta, pinta, escreve ou dança, não está apenas se expressando, está exigindo ser reconhecida como produtora de linguagem, de história, de valores. Está dizendo "existo, logo digo - e o mundo que eu digo também é mundo".
Nesse sentido, negar a legitimidade cultural da periferia é mais do que preconceito estético é uma operação de exclusão ontológica. É dizer que aquele modo de viver, sentir e interpretar a realidade não merece espaço, não deve ser escutado, não possui valor público. E é justamente aí que o Direito, quando atua como instrumento de repressão, mostra seu vínculo com estruturas coloniais e autoritárias ao invés de proteger a pluralidade, ele restringe o sentido de humanidade a um modelo único, eurocêntrico, burguês e branco.
A arte, a linguagem, os corpos em movimento, tudo isso é forma de dizer o mundo. E quando o Estado se recusa a reconhecer essas formas como legítimas - ou pior, quando as criminaliza - ele nega à sociedade o direito de se ver em sua plenitude, em sua complexidade. Mais do que censura, trata-se de um atentado contra a possibilidade de convivência democrática. Porque não há democracia onde apenas alguns podem falar, e todos os outros devem se calar ou ser punidos por dizer.
Reconhecer a cultura periférica como legítima é reconhecer que há muitas formas válidas de narrar a vida, de sentir o tempo, de construir comunidade. É afirmar que o mundo não é um só, e que cada sujeito tem o direito inalienável de descrevê-lo desde o lugar que habita. A justiça só pode nascer de uma escuta radical - e o Direito, se quiser ser justo, precisa abrir-se à multiplicidade dos mundos ditos pelas margens. É preciso reconhecer cada vez mais e mais a função do direito em proteger essas margens do mundo!


