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O paradoxo do erro honesto na Administração Pública

O paradoxo do erro honesto na Administração Pública.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Atualizado às 08:35

Somos seres em construção. Imersos em limites, dúvidas e contradições, caminhamos entre acertos e equívocos, entre intenções legítimas e resultados imperfeitos. Errar, para a humanidade, não é exceção. É condição.

Mas há, a despeito dessa evidente condição humana, em nossos dias, um incômodo silêncio diante dessa premissa simples. Como se o erro - mesmo aquele que nasce da tentativa sincera, da vontade de acertar - fosse sempre sinônimo de fracasso, culpa ou má-fé.

Não se trata de defender ou cultuar a irresponsabilidade, muito menos de negar as consequências dos equívocos. Trata-se de reconhecer o que nos torna humanos: a capacidade de tentar, errar, aprender, reaprender e seguir. Esse é o processo de aprendizagem que leva ao progresso da humanidade.

Esse reconhecimento, que durante tanto tempo foi, de certa forma, ignorado nas esferas do controle institucional, passou a ganhar mais ênfase com os novos artigos da LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, inseridos pela lei federal 13.655/18. Em nossa compreensão, a referida lei introduziu e reforçou no ordenamento o que a condição da vida humana impõe: que há uma diferença ética - e também jurídica - entre o erro doloso e o erro honesto.

O agente público não pode ser responsabilizado por interpretação razoável da norma, mesmo que posteriormente venha a ser tida como equivocada. Não se pode exigir "perfeição" retroativa. É imperativo levar "(...) em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas" (art. 24 da LINDB). Passa-se, desse modo, a considerar a boa-fé, a diligência e o contexto histórico.

Reforça-se essa lógica ao constar na LINDB, no art. 22, que "(...) serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo (...)"e que "serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente".

As decisões administrativas, controladoras ou judiciais devem, de forma obrigatória, considerar as consequências práticas e as circunstâncias concretas da situação. Julgar e auditar sem olhar o contexto histórico da época em que se decidiu, sem analisar os meios disponíveis e os desafios enfrentados, é condenar não o erro, mas a própria tentativa. É aprisionar o agente público a não agir, a partir do legítimo receio dos excessos de controle e de aplicação inadequada de sanções. Nesse sentido, Rodrigo Valgas dos Santos observa: "(...) controle disfuncional indutor do medo leva os agentes públicos à leniência, à inação administrativa, ao comodismo decisório, à busca da autoblindagem e de estratégias de fuga da responsabilização, em detrimento da boa administração pública.1".

As autoridades de controle devem observar a complexidade da gestão pública e distinguir os equívocos meramente formais e as falhas operacionais dos comportamentos fraudulentos. A LINDB toca na essência do paradoxo: ao não diferenciar o erro honesto do erro intencional o sistema paralisa. Impõe medo. Inibe a coragem de decidir. E, em razão disso, gera o que Rodrigo Valgas dos Santos chama de "Direito Administrativo do Medo", comprometendo, portanto, a eficiência na Administração Pública.

O paradoxo é esse: desejamos justiça (é essencial e imprescindível esse legítimo desejo), mas esquecemos que o aprendizado exige espaço. Denunciamos os erros alheios com ímpeto e fúria, mas esquecemos que a evolução e progresso não se fazem sem falhas não intencionais. E assim, o erro honesto - aquele que não nasce do dolo, mas da própria limitação humana - é punido com a mesma severidade que deveria ser reservada ao desvio consciente e de má-fé.

Ainda Rodrigo Valgas dos Santos escreve que:

"O controle externo em termos constitucionalmente adequados deve compreender as dificuldades reais do gestor (art. 22 da LINB e o art. 8º do decreto 9.830/19); perceber que não é simples administrar; que administrar implica riscos; que esses riscos ou falhas não devem, necessariamente, redundar em sanções, pois quem atua na defesa de interesses de outrem pode cometer erro (e de regra comete) erros, e esses erros devem ser absorvidos pela Administração quando praticados sem dolo ou culpa grave."2

Esse paradoxo não apenas ignora a natureza imperfeita da existência humana, como também paralisa o desenvolvimento da Administração Pública e o crescimento coletivo.

Nesse contexto, e tendo como premissa a falibilidade humana, a LINDB, com as alterações introduzidas, impulsiona o aperfeiçoamento da Administração Pública.

Diante disso, e a título de conclusão, é imperativo reconhecer que o caminho da boa gestão também passa por tentativas honestas que nem sempre resultarão em acertos. O essencial é que se atue com probidade. A Administração Pública não pode (e não deve) ser analisada por uma métrica de trajetória sem falhas, especialmente em cenários tão desafiadores como os que vivemos. O que deve ser valorizado e analisado é a coragem de continuar, com boa-fé e com o firme propósito de fazer melhor - depois dos erros honestos. É assim que se constrói o progresso: passo a passo, tentativa após tentativa.

Como já cantava Raul Seixas, com sabedoria atemporal: "Tente (tente). E não diga que a vitória está perdida. Se é de batalhas que se vive a vida. Tente outra vez."

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1 SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 45.

2 SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 42. 

Gustavo Machado

VIP Gustavo Machado

Procurador do Município do Recife. Advogado. Sócio de Cruz & Machado Sociedade de Advogados. Ex-Presidente da Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais.

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