As ICTs podem se beneficiar da repartição de benefícios no Brasil?
As ICTs surgem como protagonistas na busca por soluções de conservação da biodiversidade e devem acessar recursos, via repartição de benefícios, para contribuir com .
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Atualizado às 08:35
Introdução
O Brasil é um país que possui a maior biodiversidade do planeta, mas amarga índices de pobreza e baixo desenvolvimento, que contrastam com essa imensa riqueza natural.
O presente ensaio, busca demonstrar que as ICTs - Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação, podem e devem ser beneficiárias do FNRB - Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios1 e de todo o sistema de acesso e repartição de benefícios no Brasil, tanto quanto os povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), adotada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), estabelece três pilares fundamentais: a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos. Dentre esses, destaca-se a transferência de tecnologia como uma forma essencial de repartição de benefícios não monetária, prevista expressamente nos artigos primeiro e 16 da CDB.
Neste sentido, a transferência de tecnologia surge como uma das modalidades de repartição de benefícios não monetários, devendo ser entendida como um meio de fortalecimento das capacidades locais, redução de desigualdades e promoção de desenvolvimento sustentável. Assim, a transferência de tecnologia não apenas promove inovação, mas também empodera comunidades e instituições locais, viabilizando o uso sustentável dos recursos naturais.
Desde então, diversos instrumentos internacionais e nacionais reforçaram esse compromisso. A Agenda 21, também aprovada na ECO-92, encorajou mecanismos de cooperação internacional para a transferência de tecnologias ambientalmente saudáveis e o fortalecimento de capacidades locais, reforçando este compromisso ao estimular formas de cooperação para transferência de tecnologia, capacitação e acesso à informação. O Capítulo 34 da Agenda trata especificamente da promoção do desenvolvimento e da transferência de tecnologias ambientalmente saudáveis, entendidas como indispensáveis para a preservação dos recursos naturais e a melhoria da qualidade de vida das populações.
Assim, desde a década de 90, está consolidado o entendimento internacional de que a transferência de tecnologia é uma ferramenta essencial para assegurar o equilíbrio entre a exploração econômica da biodiversidade e sua conservação.
O tema na lei 13.123/15 e decreto 8772/16.
A internalização dos compromissos internacionais pelo Brasil se deu por meio da promulgação da lei 13.123/15 e do decreto 8.772/16, que regulamenta seu funcionamento.
O art. 19 da lei 13.123/15 prevê expressamente que a repartição de benefícios poderá ser realizada de forma monetária ou não monetária. Entre as formas não monetárias estão a participação em atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D), o intercâmbio de informações e recursos humanos, a consolidação de infraestrutura de pesquisa e os empreendimentos conjuntos de base tecnológica.
Tais disposições foram reafirmadas no decreto 8.772/16, especialmente em seu artigo 52, que estabelece:
"No caso do inciso II do art. 50, a repartição de benefícios não monetária a que se referem as alíneas 'b', 'c', 'd' e 'f' do inciso II do art. 19 da lei 13.123, de 2015, será destinada a órgãos e instituições públicas nacionais que executem programas de interesse social."
Deste modo, observa-se que o legislador brasileiro ampliou o espectro de beneficiários da repartição não monetária, incluindo explicitamente as ICTs que atuem em programas de interesse social, não havendo, portanto, qualquer impedimento para que estas instituições, ao desenvolverem programas de interesse social ou realizarem projetos de pesquisa em parceria com empresas ou comunidades, acessem os recursos2 do FNRB ou se beneficiem da repartição não monetária.
Importante ressaltar que não há que se falar em concorrência entre povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e ICTs pelo acesso a esses recursos. Pelo contrário, há uma complementaridade de funções e uma sinergia desejável, como já apontamos no artigo "Saberes confluentes em novas visões de mundo"3, escrito em coautoria com André Baniwa, Floriana Breyer, Luciana Villa Nova e Simone Athayde, que explora a necessidade de harmonização entre saberes científicos e ancestrais, apontando para soluções colaborativas que acelerem a transição socioeconômica na Amazônia.
Conclusões
Em um cenário global marcado por desafios ambientais e sociais, a ciência e a inovação não são apenas alternativas, mas ferramentas essenciais para promover mudanças reais.
Vale lembrar que os fabricantes de produtos acabados contendo acesso ao patrimônio genético brasileiro são obrigados a repartir benefícios, de forma monetária (depositando o valor devido no FNRB) ou repartindo benefícios de forma não monetária, aportando os valores devidos a projetos de seu interesse, conforme apregoa a lei 13.123/15 e o decreto 8772/16.
O que defendemos aqui é que entre os projetos elegíveis para receber repartição de benefícios, podem estar aqueles envolvendo pesquisa científica contendo acesso ao patrimônio genético ou acesso ao conhecimento tradicional associado pelas ICTs.
Com esta leitura, já aplicável do FNRB, parece fazer sentido que as ICTs possam se aproximar da indústria, dando maior visibilidade de seus projetos envolvendo ativos da biodiversidade nativa do Brasil.
Com efeito, recomendamos 05 passos para as ICTs: a) Identifiquem projetos com potencial de impacto social, ambiental ou tecnológico. Mesmo os projetos em fase inicial podem ser moldados para atender aos objetivos do FNRB; b) Estabeleçam parcerias com empresas que utilizam o patrimônio genético. Apresente sua ICT como uma aliada estratégica para iniciativas de repartição de benefícios não monetária; c) Acompanhem atentamente os editais do FNRB. Com o aumento dos recursos internacionais, os editais devem se tornar mais frequentes e robustos; d) Adotem uma abordagem integrada em suas propostas. Ações que envolvem ensino, pesquisa e extensão têm grande potencial de serem contempladas pela política de repartição de benefícios.
Por outro lado, e com a excelente perspectiva de recursos futuros do novo Fundo Cali, é também recomendável que as ICTs acompanhem de perto toda a evolução internacional para que possam auferir mais recursos para as suas pesquisas, inclusive para o fortalecimento dos NITs, que são essenciais para o desenvolvimento tecnológico do país.
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1 O FNRB é um fundo público de natureza contábil, criado pela Lei nº 13.123/2015, regulamentado pelo Decreto nº 8.772/2016 e vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Sua operacionalização se dá sob a governança do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen). O Fundo visa promover a conservação e o uso sustentável da biodiversidade; reforçar políticas públicas ambientais, sociais e culturais; apoiar a pesquisa, inovação e desenvolvimento tecnológico; valorizar os conhecimentos tradicionais; implementar ações que fomentem a sociobioeconomia no país. Em fevereiro de 2025, o FNRB contava com o montante de R$ 9.864.836,64, conforme dados públicos da Secretaria de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente.
2 Além do FNRB, surge no cenário internacional o Fundo Cali, uma iniciativa multilateral voltada ao financiamento da repartição de benefícios provenientes do uso digital de informações sobre recursos genéticos - as chamadas Digital Sequence Information (DSI). Seu objetivo é criar um sistema financeiro global para assegurar que benefícios advindos da utilização de DSI sejam repartidos de maneira justa e equitativa, sobretudo com países detentores de biodiversidade, como o Brasil. Maiores detalhes em https://www.migalhas.com.br/depeso/422760/o-novo-mecanismo-multilateral-de-reparticao-de-beneficios-para-dsi
3 Marinello, Luiz et al. "Saberes confluentes em novas visões de mundo", Stanford Social Innovation Review Brasil, 2024. O artigo explora as conexões entre conhecimentos ancestrais, tradicionais e acadêmicos para promover soluções que acelerem a transição socioeconômica na Amazônia.



