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Histórico e consequências da presunção de culpabilidade no Direito Penal brasileiro

O CP de 1940 rompeu com a tradição garantista e instituiu, via dolo eventual, a presunção de culpabilidade. A Teoria Significativa propõe restaurar a imputação conforme a Constituição.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Atualizado às 14:11

A presunção de culpabilidade é uma anomalia teórica e prática que compromete a legitimidade do Direito Penal brasileiro. Embora o sistema se proclame garantista, sua estrutura normativa e interpretativa muitas vezes opera sob lógicas inquisitórias.

A figura do dolo eventual é um dos principais sintomas desse desvio. Como demonstro em Sobre a Estrutura do Dolo e da Imprudência (em breve publicado no Brasil pela Editora Juruá), sua introdução no Brasil não decorreu de um debate técnico ou de uma construção dogmática sólida, mas do transplante acrítico de categorias já consolidadas na tradição penal europeia, muitas delas com raízes autoritárias.

Essa lógica, no entanto, não é originária da tradição penal brasileira. Pelo contrário: os Códigos Penais anteriores ao de 1940 demonstravam forte compromisso com garantias materiais de imputação e com a vedação à presunção de culpabilidade. O Código Criminal do Império de 1830, redigido por Bernardo Pereira de Vasconcelos, foi fortemente influenciado pelas ideias de Beccaria, Bentham, Mello Freire e Feuerbach, e destacava-se no cenário internacional por seu conteúdo liberal. Seu art. 36, por exemplo, era claro e taxativo: "Nenhuma presumpção, por mais vehemente que seja, dará motivo para imposição de pena." Essa formulação não apenas estabelecia um marco de proteção ao cidadão frente ao poder punitivo, como inspirou códigos estrangeiros posteriores, como o da Espanha e de vários países sul-americanos.

Mesmo o CP de 1890, redigido no contexto republicano e duramente criticado por diversos setores, manteve o compromisso com a vedação à presunção de culpabilidade. Seu art. 67 repetia a disposição de 1830, atualizando sua linguagem, mas preservando sua essência garantista. Assim, o cidadão brasileiro permaneceu, por mais de um século, juridicamente protegido contra qualquer tentativa de imputação baseada em presunções subjetivas ou inferências abstratas.

A ruptura veio com o CP de 1940, idealizado sob o signo do Estado Novo. Francisco Campos, ministro da Justiça de Getúlio Vargas e principal jurista do autoritarismo brasileiro, delegou a Alcântara Machado a elaboração do anteprojeto, que foi posteriormente revisado por uma comissão presidida por Nelson Hungria. O resultado foi um texto fortemente inspirado no Código Rocco, da Itália fascista, que institucionalizou a possibilidade de presunção da vontade mediante a expressão "assumiu o risco de produzi-lo".

Essa nova redação, presente na segunda parte do inciso I, no art. 18, retirou do ordenamento jurídico brasileiro a histórica vedação à presunção de culpabilidade e a substituiu por uma fórmula ambígua e perigosa. Criou-se, assim, o que denominei em minha obra de Paradoxo de Hungria: punir dolosamente mesmo sem a demonstração da vontade, invertendo o ônus da prova e corroendo o princípio da legalidade penal, já exposto em artigo publicado aqui no Migalhas.

A consequência histórica foi a institucionalização de um modelo híbrido, no qual a imputação dolosa passou a ser possível mesmo sem a comprovação da vontade do agente. O texto normativo - ao utilizar a conjunção "ou" - abriu margem para interpretações contraditórias, pois ora se exige a vontade, ora basta a aceitação genérica do risco. E mais: em muitos julgados, nem mesmo a aceitação é demonstrada, bastando a previsão do resultado para que se presuma dolo. Essa ambiguidade distanciou o Direito Penal de sua função garantidora e o aproximou de práticas inquisitoriais, nas quais a dúvida é utilizada como critério de imputação.

O problema é que essa lógica inverte o jogo da prova: em vez de o Estado ter que mostrar que o agente quis o resultado, joga-se para o acusado a missão de provar que não o quis - o que é absurdo. Isso contraria princípios fundamentais de qualquer sistema democrático, como o da legalidade, da culpabilidade e o da presunção de inocência. A dúvida, que deveria proteger, acaba sendo usada para condenar.

Essa estrutura interpretativa não se sustenta por critérios técnico-normativos, visto que se apoia em juízos morais, expectativas sociais e reconstruções hipotéticas da mente do agente. Em vez de trabalhar com elementos objetivos da ação, o julgador passa a operar com impressões subjetivas sobre o "risco assumido", sem necessidade de demonstrar a efetiva vontade. Isso não apenas compromete a coerência dogmática, mas também fomenta a seletividade penal.

O dolo eventual passou, assim, a funcionar como válvula de escape para imputações penais em que a prova da vontade está ausente. É, assim, a ferramenta que permite punir como doloso aquele que agiu de forma imprudente consciente, mas cuja conduta causou grande comoção pública. O efeito prático é o alargamento do conceito de dolo à custa das garantias processuais.

Com isso, o Direito Penal perde sua densidade normativa e se transforma em instrumento de resposta simbólica, mobilizado por fatores externos à estrutura da imputação. Casos de comoção pública, tragédias coletivas ou crimes midiáticos tornam-se ambientes férteis para a imputação de dolo eventual, mesmo quando a conduta revela apenas imprudência consciente. A consequência é a erosão da previsibilidade das decisões judiciais e o fortalecimento de uma lógica de exceção.

A Teoria Significativa da Imputação propõe uma ruptura com esse modelo. Em vez de presumir vontade a partir da previsibilidade do resultado, exige a demonstração clara dos caracteres normativos que configuram a imputação dolosa. Quando não há vontade de obter o resultado, e sim previsão acompanhada de confiança, indiferença ou aceitação, o correto é classificar a conduta como imprudência consciente - em seus distintos graus: gravíssima, grave ou leve.

Essa proposta não é apenas metodológica. É normativa, constitucional e política. Trata-se de restabelecer os fundamentos da imputação penal, a partir do princípio da legalidade estrita e da vedação à presunção de culpabilidade. O Estado só pode punir quando comprova, com base em critérios objetivos e verificáveis, que o agente quis o resultado típico. Fora disso, deve-se analisar a conduta com base nas categorias próprias da imprudência, conforme os quesitos e caracteres significativos desenvolvidos em minhas obras.

A superação da presunção de culpabilidade exige o abandono das ficções dogmáticas e a reconstrução da imputação com base em critérios linguísticos e constitucionais. O Direito Penal não pode se sustentar sobre suposições. Precisa se ancorar na análise objetiva da conduta, na estrutura normativa da ação e nos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Essa é a proposta da Teoria Significativa da Imputação.

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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