Plataformas digitais e manipulação comportamental (nudging)
"Nudging": "empurrão" sutil, um direcionamento inconsciente das decisões dos indivíduos por meio de estímulos arquitetônicos ou informacionais.
terça-feira, 10 de junho de 2025
Atualizado às 13:52
O avanço da tecnologia digital permitiu a criação de ambientes virtuais altamente sofisticados e moldáveis à experiência do usuário. Em meio a esse cenário, emergiu a técnica do "nudging", expressão cunhada por Richard Thaler e Cass Sunstein, que pode ser traduzida como um "empurrão" sutil, um direcionamento inconsciente das decisões dos indivíduos por meio de estímulos arquitetônicos ou informacionais. Trata-se de uma forma de manipulação comportamental amparada na economia comportamental e nas ciências cognitivas (THALER; SUNSTEIN, 2008, p. 6).
O nudging digital se manifesta principalmente no design de plataformas online, como aplicativos, redes sociais e e-commerces, em que pequenos ajustes na arquitetura da escolha influenciam de maneira preditiva as decisões dos usuários. Por exemplo, a posição de um botão de compra, o destaque de determinada opção ou a repetição de notificações configuradas com base em dados comportamentais são formas concretas de nudges.
O ponto sensível é que essas escolhas não são neutras. São calculadas a partir de algoritmos que se alimentam de perfis comportamentais dos usuários, criando um ambiente onde a autonomia é reduzida, ainda que sem imposição coercitiva. Surge, então, um desafio jurídico relevante: como regular o nudging digital em respeito aos direitos fundamentais?
No plano teórico, o nudging foi proposto como ferramenta legítima de política pública, como defende Sunstein, desde que os chamados "empurrões" sejam transparentes, reversíveis e promovam o bem-estar do indivíduo, não interesses privados (THALER; SUNSTEIN, 2008, p. 5-7). No entanto, no ambiente digital, seu uso é predominantemente orientado ao consumo, maximizando o lucro das plataformas.
Nesse contexto, a aplicação da técnica do nudging pode colidir com o princípio da autodeterminação informativa, previsto na LGPD (lei 13.709/18), especialmente em relação ao consentimento livre, informado e inequívoco. O usuário, muitas vezes, não tem consciência do quanto está sendo influenciado a tomar determinada decisão.
O art. 6º, inciso III, da LGPD consagra o princípio da transparência como requisito para o tratamento legítimo de dados pessoais, o que evidentemente é comprometido quando há direcionamento oculto do comportamento do titular sem o devido esclarecimento sobre os mecanismos utilizados.
Esse tipo de indução também pode configurar violação ao dever de boa-fé objetiva nas relações de consumo, previsto no art. 4º, III, do CDC, que exige equilíbrio e transparência na relação contratual. Em especial, no comércio eletrônico, os nudges podem induzir decisões impensadas, com consequências financeiras relevantes.
A jurisprudência brasileira ainda é incipiente sobre o tema, mas há decisões relevantes que apontam para a necessidade de limites éticos e jurídicos nas formas de influência digital. O TJ/SP já enfrentou a questão, ao julgar o processo 1001782-82.2021.8.26.0007, envolvendo manipulação de ofertas em aplicativos de delivery, entendendo que a prática configura violação ao direito de informação e publicidade enganosa.
No referido julgado, o relator destacou que a "arquitetura do aplicativo foi desenhada para induzir o consumidor a escolhas mais lucrativas para a empresa, sem informar de forma clara e acessível que opções mais baratas estavam disponíveis". Essa conclusão reforça o entendimento de que há limites éticos na construção da experiência digital.
O STF, ao julgar a ADI 6387, que tratava da publicidade infantil em meios digitais, reconheceu que "o uso de mecanismos de indução e persuasão dirigidos a vulneráveis, como crianças, deve observar os princípios constitucionais da dignidade, da informação adequada e da proteção especial ao consumidor".
Essa jurisprudência, embora não trate diretamente do nudging digital em adultos, revela uma preocupação com o uso de tecnologias persuasivas, especialmente quando dirigidas a públicos vulneráveis. O raciocínio é aplicável por analogia quando há desequilíbrio informacional relevante entre o usuário comum e a plataforma digital.
A doutrina tem abordado a temática sob diferentes perspectivas. Lygia Pupatto defende que o nudging, se não acompanhado de critérios de transparência e reversibilidade, compromete a liberdade decisória e fere princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade (PUPATTO, 2022, p. 91).
Conforme destaca Pupatto, "a manipulação por design, mesmo sem coação explícita, corrói as bases do consentimento informado e pode gerar responsabilização civil se provocar danos ou violar direitos fundamentais" (PUPATTO, 2022, p. 92). Essa leitura permite compreender o nudging digital como uma forma de intervenção relevante o suficiente para atrair o controle judicial.
De modo semelhante, Danilo Doneda aponta que a atuação preditiva das plataformas, ao promover escolhas sem que o usuário compreenda o grau de influência exercido, compromete a autodeterminação informacional e exige novos marcos de regulação (DONEDA, 2019, p. 107).
Para Doneda, a função regulatória do Estado deve ser mais incisiva, não apenas para punir abusos, mas também para criar incentivos a arquiteturas de escolha que respeitem a liberdade cognitiva. A ausência de regulação específica deixa o consumidor desprotegido frente à engenharia comportamental aplicada pelas grandes plataformas.
Complementando esse pensamento, Bruno Bioni afirma que o uso de dados pessoais para fins de persuasão e manipulação, sem transparência ou base legal clara, pode configurar tratamento ilícito nos termos da LGPD, especialmente quando há desequilíbrio na relação (BIONI, 2021, p. 183).
Bioni sustenta que "a opacidade algorítmica compromete a própria ideia de titularidade dos dados, pois impede o titular de compreender e contestar as formas como sua informação é utilizada" (BIONI, 2021, p. 184). Dessa maneira, o nudging digital não pode se escudar sob o manto da personalização, quando, na verdade, se trata de manipulação encoberta.
Do ponto de vista jurídico, portanto, o nudging digital precisa ser confrontado com os princípios constitucionais da liberdade individual, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal, inclusive no plano informacional. O uso de técnicas de indução não pode ser irrestrito.
Nas relações de consumo, a violação do dever de informação plena, clara e adequada pode ensejar a nulidade do negócio jurídico, conforme art. 6º, inciso III, e art. 51, inciso IV, do CDC, além de eventual indenização por danos morais e materiais.
No plano internacional, a União Europeia já discute regras específicas sobre "dark patterns", ou padrões escuros de design, por meio do Digital Services Act, que propõe a proibição de técnicas que distorcem ou manipulam decisões do usuário de forma encoberta ou agressiva.
Tais práticas incluem desde caixas de consentimento desenhadas para forçar o aceite até sistemas de checkout que dificultam o cancelamento de uma compra. O nudging, nessa perspectiva, deixa de ser um "empurrão amigável" para se tornar uma armadilha cognitiva.
No Brasil, há pouca discussão acadêmica e jurisprudencial sobre os limites do design persuasivo. Contudo, diante do crescimento exponencial da economia digital e do uso de big data para moldar comportamentos, é urgente reconhecer o nudging como fenômeno jurídico digno de regulação. A aplicação de sanções, entretanto, depende da comprovação de que a arquitetura da plataforma foi pensada para induzir comportamentos prejudiciais ao consumidor, sem a devida transparência. O desafio probatório é grande, razão pela qual se faz necessário um novo olhar regulatório.
Ademais, é preciso reconhecer que nem toda indução é ilegítima. Há nudges éticos e socialmente benéficos, como os que promovem escolhas saudáveis, segurança no trânsito ou proteção ambiental. O problema reside na opacidade, na manipulação mercadológica e na ausência de controle.
A solução jurídica passa pela exigência de transparência no design, pelo reconhecimento do direito à reversibilidade das decisões tomadas sob influência, e pela criação de padrões de auditabilidade dos algoritmos que projetam essas escolhas.
O enfrentamento do nudging exige, portanto, um olhar interseccional, que envolva direito digital, direito do consumidor, proteção de dados e princípios constitucionais. É a única forma de equilibrar inovação tecnológica e dignidade humana no ambiente digital.
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BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
PUPATTO, Lygia. Liberdade de escolha e design de plataformas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: improving decisions about health, wealth, and happiness. New Haven: Yale University Press, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 155, n. 157, p. 1, 15 ago. 2018.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 18055, 12 set. 1990.
TJSP. Apelação Cível nº 1001782-82.2021.8.26.0007, 8ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Rômolo Russo, j. 14 set. 2022.
STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6387, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 09 dez. 2021.