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O racismo estrutural e o humor desgraçado

Usar de uma performance artística, para disseminar preconceito, humilhação e desprezo, é ofender, antes de tudo, a própria arte, transformar nosso diferencial humano numa verdadeira "desgraça".

terça-feira, 10 de junho de 2025

Atualizado às 14:43

Pode um artista cometer crimes com sua arte?

A arte, numa conceituação simplista, pode ser entendida como qualquer veículo da criatividade humana para expressar ideias, percepções e emoções sobre fantasias ou acontecimentos reais.

Ela nos difere como raça humana e nos dá sentido. Traz cor, sabor, textura e perfume à nossa vida. Bem utilizada, é transformadora, indutora de bem-estar e meio de resistência a iniquidades. Por isso, tendemos a encará-la como algo presumivelmente bom.

Mas nem sempre é assim.

Tratando-se de veículo da criatividade humana, ela pode ser tão ruim e maléfica como podem ser os homens.

Sim, um artista pode, definitivamente, cometer crimes com sua arte!

Também um médico pode cometer crimes exercendo seu ofício, assim como o policial, o juiz, o político, o atleta... Onde há atividade humana, há ambiência para ações contrárias ao Direito; até mesmo, criminosas.

Um serial killer, "colecionador de ossos" (seja de judeus, negros ou adolescentes virgens), é capaz de criar esculturas complexas e intrigantes com seus "troféus". Que trazem em si apologia ao crime, vilipêndio a cadáveres e ofensa profunda aos sentimentos de boa parte da sociedade (em especial, claro, dos parentes de suas vítimas).

Como toda atividade humana, também a exteriorização feita pelo artista encontra limites no Direito, cujo objetivo é promover a ordem social, a justiça e o tratamento equânime entre os indivíduos. Em nome desses valores maiores, não existe direito individual absoluto, nem mesmo à vida.

Não é difícil perceber que a arte pode ser usada da forma mais covarde, torpe e sub-reptícia imaginável para o fim de disseminar o ódio e provocar danos determinados, determináveis ou mesmo difusos.

Pelo poder que tem de se descolar da realidade, a arte do criminoso segue sempre procurando se agarrar às barras da impunidade. Esse tipo de "artista" se esconde em licenças poéticas, vitimiza-se por "censura" e traveste-se de palhaço para servir de instrumento de discriminação, humilhação e ódio. O criminoso, dublê de artista (ou vice-versa), pretende-se intocável.

No caso do humor, existe um complicador. Trata-se de espécie de manifestação artística que convive com a sátira, com o deboche, que, se bem utilizado, pode estimular a análise crítica do público, em especial contra injustiças e opressões. Mas, em consequência, traz inerente e ampliado o potencial de ofensa e de fomento ao ódio. Contudo, os que o praticam, nem por isso devem ficar imunes à responsabilização e muito menos podem se autoconceder carta branca para delinquir. Ao contrário. O ofício escolhido, dadas as suas peculiaridades, exige redobrado cuidado e rigor, assim como um neurocirurgião ou um piloto de caça aérea. A periculosidade inerente ao ofício escolhido não equivale à permissão para leviandade ou irresponsabilidade; é justamente o contrário.

Não por acaso, em tempos de neofascismo, o humor ácido, a "lacração" difamatória, são eleitos métodos eficazes para disseminar a segregação, a discriminação, a humilhação e o ódio, próprios à ideologia extremista e segregacionista. Sob o escudo do discurso hipócrita e falso-moralista de defesa da família, da pátria e da religião, o neofacista propaga em verdade a ridicularização do diferente, o subjugo ao mais fraco, o extermínio do vulnerável. As minorias criteriosamente eleitas são transformadas - nessa ideologia eugênica e criminógena - nos inimigos a serem batidos.

O jurista Adilson Moreira cunhou a expressão "racismo recreativo" (livro homônimo, ed. Pólen Livros, 2019), em que aponta o humor racista como um tipo de discurso de ódio, método que delimita e destaca as minorias a serem desprezadas. Sua obra merece ser estudada, assim como a decisão paradigmática da juíza Federal Bárbara Iseppe, que recentemente responsabilizou criminalmente um humorista por delitos de racismo, envolvendo discriminação, ofensividade e ódio.

Usar de um show de humor, de uma performance artística, para disseminar preconceito, humilhação e desprezo, é ofender, antes de tudo, a própria arte; transformar nosso diferencial humano numa verdadeira "des"graça, em que as diferenças são desrespeitadas e os "diferentes" (de quem?) são execrados em razão de suas diferenças.

As leis que tutelam as diferenças interpessoais e impõem respeito às minorias e aos mais vulneráveis existem para ser respeitadas. E as transgressões exigem punições.

Se for para punir alguém, em nome da boa arte, que se punam os desgraçados!

Paulo Calmon Nogueira da Gama

VIP Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, membro da AJD

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