Reforma tributária 26: A falácia da neutralidade tributária
O princípio da neutralidade tributária como diretriz de justiça e eficiência no sistema fiscal brasileiro é um argumento falacioso e inócuo.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Atualizado às 14:00
1. Princípio da neutralidade
O princípio da neutralidade tributária foi incluído na reforma tributária como um apanágio, uma justificativa para decisões que, na prática, não são nem um pouco neutras. A redação conferida ao novo art. 156-A, § 1º o imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade....
Segundo seus defensores, o Estado, ao exercer sua função arrecadatória, não deveria criar mecanismos legais para favorecer uma ou outra região, ou um ou outro produto, mas deixar que a natureza das coisas e o soprar da economia decidam o que, quem e onde produzir.
Os investidores, segundo essa lógica, deveriam alocar seus recursos conforme sua conveniência e a vocação local. No entanto, essa é uma falácia repetida à exaustão pelos defensores da reforma, que ignoram a história econômica do Brasil e do mundo. Gostaria que algum deles me explicasse como o Japão, devastado após a Segunda Guerra Mundial, um país minúsculo e suscetível a eventos climáticos extremos, rígido em costumes e dependentes da pesca além mar como fonte de alimentos, tornou-se um exemplo de tecnologia e civilização. E vou além: que explicação dariam para o desenvolvimento dos tigres asiáticos? Nem mesmo Marx previu que uma Rússia ainda agrária e uma China continental, agrária e subdesenvolvida se tornariam potências tecnológicas. Para o velho marxismo, seria a Inglaterra industrial a primeira nação socialista.
2. Contra o princípio da neutralidade
Não existe neutralidade tributária. A não ser que se façam perguntas simplistas, como propor a construção de um resort no sul do Brasil com a promessa de um "mar quentinho" para os brasileiros que só conhecem as águas geladas da região. Eu mesma levei um susto ao entrar no mar em Angra dos Reis!
A argumentação de que os benefícios fiscais não devem ser concedidos porque prejudicam os estados do nordeste é frágil. Quem a sustenta, certamente, não leu Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado. Muito menos Jonh Maynard Keynes. Os desafios para o desenvolvimento regional vão muito além da concessão de benefícios fiscais: envolvem, sobretudo, investimentos em infraestrutura e educação. Por isso que os autores desenvolvimentistas também exigem a atuação estatal como agente de mundanças econômicas e de infraestrutura.
Infelizmente, tive o desprazer de testemunhar o fechamento da antiga COPERBO, hoje Alanxeo, no Cabo de Santo Agostinho, após décadas de operação. As empresas que investiram no Porto Digital precisarão repensar suas estratégias. A "Ilha do Recife" não teria se tornado um centro tecnológico do nordeste sem mecanismos públicos indutores. O ISS reduzido para 2% nas cerca de cinco mil empresas ali instaladas foi e ainda é essencial para o desenvolvimento de startups e projetos de TICs, com o suporte do Poder Público.
3. Degradação de projetos econômicos locais
A degradação de projetos locais viabilizados por incentivos fiscais e a tão propagada pseudo-neutralidade fiscal demonstram uma apreciação superficial dos desafios nacionais. Os Estados e municípios do nordeste ficaram praticamente de mãos atadas, privados de sua principal ferramenta para atrair investimentos. O exemplo mais claro de contradição à "neutralidade" é a Zona Franca de Manaus: se fosse respeitada apenas a vocação regional, os estados da Amazônia Legal estariam limitados à venda de açaí e castanha-do-pará.
Outro ponto crucial é a cobrança do IBS no destino, e não mais na origem. Municípios que sacrificaram áreas e investiram durante décadas para receber empresas agora verão o esvaziamento desses empreendimentos e desempregados seus trabalhadores. A pseudo-neutralidade, nesse caso, é uma ode à passividade.
Além disso, haverá um suposto "equilíbrio" buscado pela reforma, que esconde outras questões fundamentais - como a dependência política. Os Estados fora do eixo sul-sudeste dependerão cada vez mais das diretrizes do governo Federal para alavancar investimentos locais. A política econômica local precisará estar em consonância com a nacional; caso contrário, os recursos não serão acessíveis. O FNDR - Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional será o único caminho para viabilizar projetos estruturantes.
4. E o pacto federativo
Alguns autores consideram que o Comitê Gestor do IBS e os novos tributos instituídos pela LC 214/25 atentam contra o pacto federativo. No entanto, considero que o golpe mais certeiro contra o federalismo brasileiro foi a retirada da autonomia dos Estados e municípios de utilizar políticas fiscais para atrair empresas e investimentos. O fim das políticas fiscais locais é a verdadeira corrosão do pacto federativo.
Outro ponto de atenção é a destinação dos 25% da parcela estadual do IBS aos municípios: 80% devem ir para os municípios mais populosos. O mesmo critério será aplicado para a composição do Comitê Gestor, com 13 representantes escolhidos entre os municípios mais populosos. Essa concentração de recursos e de poder decisório pode gerar uma migração populacional forçada para os grandes centros urbanos, esvaziando e inviabilizando municípios menores. A reforma tributária pode, na prática, induzir à concentração municipal e à extinção de entidades administrativas locais.
A PEC 188/19 propõe o fim dos municípios com menos de 5 mil habitantes. Mais de 1.500 municípios poderiam ser extintos. A reforma tributária, por sua vez, caminha nessa direção - mas de forma silenciosa.
Concluímos....
Não podemos dizer que existe princípio da neutralidade. Não passa de um conceito aberto sem sustentação em explicações históricas e políticas econômicas ativa. O grande desafio é que municípios e Estados fora da rota do eixo sul e sudeste terão que ser muito criativos para terem acesso aos recursos do FNDR. Não existe resposta fácil para um país continental e diversificado. As estratégias de desenvolvimento precisam ser recriadas.
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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 7 jun. 2025.
2 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n.º 188, de 2019. Altera a organização do pacto federativo e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139845. Acesso em: 7 jun. 2025.
3 BRASIL. Lei Complementar n.º 214, de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o Comitê Gestor. Brasília, DF: Presidência da República, 2025.
4 BRASIL. Decreto-Lei nº 288, de 28 de fevereiro de 1967. Reformula a legislação da Zona Franca de Manaus e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 28 fev. 1967. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0288.htm. Acesso em: 7 jun. 2025.
5 BRASIL. Lei nº 8.387, de 30 de dezembro de 1991. Dispõe sobre incentivos fiscais na área da Zona Franca de Manaus. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 31 dez. 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8387.htm. Acesso em: 7 jun. 2025.
6 BRASIL. Lei nº 14.788, de 29 de dezembro de 2023. Prorroga os incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus até 2073. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 29 dez. 2023. Disponível em: https://www.in.gov.br. Acesso em: 7 jun. 2025.
7 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007.
8 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Tradução de Reginaldo Sant'Anna. São Paulo: Boitempo, 2013.
9 RECIFE (Município). Lei nº 17.244, de 27 de dezembro de 2006. Institui o Programa de Incentivo ao Porto Digital. Diário Oficial do Recife, Recife, PE, 28 dez. 2006. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/pe/r/recife/lei-ordinaria/2006/1725/17244/lei-ordinaria-n-17244-2006-institui-o-programa-de-incentivo-ao-porto-digital. Acesso em: 7 jun. 2025.
10 RECIFE (Município). Decreto nº 35.290, de 13 de junho de 2022. Regulamenta a Lei nº 17.244/2006, que institui o Programa de Incentivo ao Porto Digital. Diário Oficial do Recife, Recife, PE, 14 jun. 2022. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/pe/r/recife/decreto/2022/3529/35290/decreto-n-35290-2022-regulamenta-a-lei-n-17244-de-27-de-dezembro-de-2006. Acesso em: 7 jun. 2025.


