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O status jurídico do embrião criopreservado

Este artigo tem intenção de discutir os direitos e a personalidade jurídica dos embriões criopreservados, no tocante a personalidade jurídica, proteção, destino e descarte.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Atualizado às 14:11

Introdução

As tecnologias de reprodução humana assistida, em especial a FIV - fertilização in vitro, introduziram novos desafios éticos e jurídicos ao ordenamento jurídico contemporâneo. Dentre eles, destaca-se a figura do embrião criopreservado, ser humano em estágio inicial de desenvolvimento, mantido em estado de latência por meio de congelamento. A problemática central deste trabalho reside na seguinte indagação: qual é o status jurídico do embrião humano criopreservado no ordenamento brasileiro?

A resposta a essa questão exige uma análise interdisciplinar, conjugando elementos do Direito Civil, do Direito Constitucional, da Bioética e da jurisprudência, especialmente do STF e do STJ.

Vivemos em um país onde uma das duas ciências mais antigas - Direito e medicina - estão em uma distância abismal no tocante à tecnologia. O que acaba criando lacunas em um sistema jurídico que não acompanhou o desenvolvimento tecnológico da medicina.

A reprodução assistida e a criopreservação de embriões:

As técnicas de reprodução assistida têm como objetivo suprir a infertilidade de casais, oferecendo-lhes a possibilidade de concepção fora do ambiente uterino. A lei 9.263/1996 (lei do planejamento familiar) assegura o acesso a essas técnicas como parte do exercício dos direitos reprodutivos.

A resolução 2.320/22 do CFM regula essas práticas no Brasil, incluindo a criopreservação de embriões excedentários. Contudo, esta resolução tem caráter infralegal, e não tem força de lei. A ausência de regulamentação legal específica gera insegurança jurídica quanto ao destino dos embriões não implantados e sua possível doação, descarte ou uso para pesquisa.

O direito ao planejamento familiar encontra guarida expressa na CF/88, em seu art. 226, § 7º, replicado no art. 1.565, § 2º do CC:"O planejamento familiar é delivre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas".

A lei 9.263/96, como acima citado, reconhece o planejamento familiar como direito de todo cidadão, determinando que se garantam, em termos de regulação da fecundidade, direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole.

O direito à reprodução está inserido no planejamento familiar. E é importante perceber que a grande mudança de paradigma sobre o planejamento familiar e o direito à reprodução repousa na livre escolha da pessoa que planeja exercer sua maternidade/paternidade. A reprodução corresponde a um dos mais prementes desejos da humanidade: a perpetuação da espécie, como forma de combater a mortalidade. "A sua qualificação como direito fundamental funda-se na importância que a procriação assume para a espécie humana, não só como coletividade, mas também para o indivíduo em particular" (Dantas,2022, p.25).

A noção de personalidade jurídica e o início da vida:

O CC brasileiro de 2002, em seu art. 2º, dispõe que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida". Entretanto, o parágrafo único do mesmo artigo prevê que "a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

A doutrina diverge sobre se o embrião criopreservado, concebido fora do útero, é equiparável ao nascituro. Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2023), o nascituro é o ente concebido, mas ainda não nascido. No entanto, o embrião in vitro não está em processo gestacional, o que suscita dúvidas quanto à sua inclusão no conceito tradicional de nascituro.

Para Maria Helena Diniz (2022), "embrião é ser humano em potencial, e como tal, sujeito à tutela jurídica, embora ainda não titular de personalidade civil"

Assim, prevalece a tese de que o embrião criopreservado não possui personalidade jurídica, mas goza de proteção jurídica em razão do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88).

O conceito tradicional do nascituro - ser concebido e ainda não nascido ampliou-se para além dos limites da concepção in vivo (no ventre feminino), compreendendo também a concepção in vitro (ou crioconservação). Isso se deu porque as inovações biotecnológicas possibilitaram a fertilização fora do corpo humano, de modo que o nascituro permanece sendo o ser concebido, ainda que não nascido, mas sem que faça qualquer diferença o locus da concepção.

O embrião como bem jurídico tutelado:

A jurisprudência brasileira tende a reconhecer o embrião criopreservado como um bem jurídico especial. Em decisões recentes, o STJ reafirmou que, apesar de o embrião não ser pessoa, ele também não pode ser tratado como coisa comum. Na apelação cível 1003181-60.2017.8.26.0100 (TJ/SP, 2020), discutia-se o destino de embriões congelados após o fim do relacionamento do casal. O Tribunal reconheceu o caráter sui generis do embrião, destacando que sua natureza jurídica exige ponderação entre direitos fundamentais, como autonomia reprodutiva e proteção à vida potencial.

Reforça-se, aqui, a grande lacuna sobre o assunto, que deixa esta celeuma  ainda mais instigante.

Perspectivas bioéticas e o princípio da dignidade da pessoa humana:

O embrião, ainda que não titular de personalidade jurídica, representa uma vida humana em potencial. Isso impõe limites éticos à sua manipulação, armazenamento e descarte. O princípio da dignidade da pessoa humana - núcleo axiológico do Estado Democrático de Direito - deve orientar a interpretação jurídica sobre o destino dos embriões criopreservados.

A bioética propõe o princípio da precaução como guia para decisões jurídicas nesse campo, sugerindo que, na dúvida sobre o status ontológico do embrião, deve-se optar pela sua maior proteção. Essa postura visa impedir tratamentos arbitrários que possam relativizar o valor intrínseco da vida humana.

O destino jurídico dos embriões criopreservados:

As hipóteses mais recorrentes na prática clínica envolvem:

  • Descarte programado;
  • Doação para outro casal;
  • Utilização para pesquisa científica;
  • Conservação por prazo indeterminado.

A resolução CFM 2.320/22 permite o descarte de embriões após 3 anos, desde que haja autorização dos genitores. No entanto, essa previsão carece de respaldo legal. A ADIn 3.510, julgada pelo STF em 2008, autorizou o uso de células-tronco embrionárias para pesquisa, reconhecendo o valor científico dos embriões excedentes, sem lhes conferir status de pessoa.

Considerações finais

O embrião criopreservado possui status jurídico híbrido, situado entre a pessoa e a coisa, caracterizando-se como um ente biológico dotado de valor intrínseco e merecedor de tutela jurídica especial. A ausência de normatização legal específica exige a atuação do legislador para suprir essa lacuna, assegurando segurança jurídica e respeito aos direitos fundamentais. O princípio da dignidade da pessoa humana deve ser o eixo interpretativo central na definição do destino desses embriões.

______________

1 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 10 jun. 2025.

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 10 jun. 2025.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510/DF. Rel. Min. Carlos Ayres Britto, Tribunal Pleno, j. 29/05/2008.

4 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.320, de 13 de setembro de 2022.

5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: parte geral. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

6 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

7 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.

8 TJSP. Apelação Cível nº 1003181-60.2017.8.26.0100. Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 24/11/2020.

9 APOSTILA, Direito fundamentais à saúde e direito da personalidade. ALBERT EINSTEN Ensino e Pesquisa. 

Tacito Alexandre de Carvalho e Silva

VIP Tacito Alexandre de Carvalho e Silva

Advogado. Pós graduado em Processo Civil. Pós graduado em Direito Médico pelo instituto Albert Einstein. Professor de Processo Civil (Faculdade São Paulo). Procurador M 2009/2016. Vereador 2021/2024.

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