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Judicialização e limites da magistratura frente à legislação

Reflete-se sobre os limites do Judiciário diante de leis insuficientes e a urgência de eleger legisladores capazes de reformar o sistema e garantir justiça às vítimas.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Atualizado às 11:55

O episódio ocorrido em Fortaleza, envolvendo a decisão de uma magistrada que concedeu liberdade provisória a um acusado de violência sexual, provocou uma reação social intensa, marcada por indignação pública e questionamentos à conduta da juíza. Contudo, para além da superfície das emoções coletivas, é necessário situar o debate nos marcos institucionais corretos: a atuação do Judiciário está vinculada ao princípio da legalidade estrita, e não à moral contingente da sociedade.

A decisão judicial, embora impopular, refletiu a aplicação técnica da legislação penal e processual vigente. Esperar que o Judiciário ultrapasse os limites normativos e atue conforme os anseios punitivistas da opinião pública equivale a exigir do juiz a função de legislador, o que comprometeria a separação entre os poderes e a segurança jurídica.

Esse cenário evidencia um descompasso entre as expectativas sociais e o arcabouço normativo em vigor. A crítica, nesse sentido, deve ser redirecionada: não se trata de uma falha individual da magistrada, mas da insuficiência da legislação que rege os casos de violência. Muitas normas ainda permitem que réus em processos de grande gravidade, como os de natureza sexual, respondam em liberdade, mesmo diante de fortes indícios de autoria e materialidade. Isso revela uma lacuna estrutural, e não um erro jurisdicional.

A responsabilização simbólica dos juízes por decisões que seguem os ditames da lei não contribui para o fortalecimento do sistema de justiça. Ao contrário, mascara o verdadeiro problema: a inércia legislativa frente à necessidade de reformas que contemplem tanto a efetiva punição de delitos graves quanto a proteção integral das vítimas. Leis brandas, desatualizadas ou descoladas da realidade concreta dos crimes que atingem especialmente mulheres e grupos vulnerabilizados são resultado direto da ação - ou omissão - do Poder Legislativo.

Nesse ponto, impõe-se uma reflexão crítica sobre o papel dos representantes eleitos. Deputados e senadores são os legítimos responsáveis pela formulação das normas que orientam a atuação do Judiciário. Sua escolha, portanto, não pode ser dissociada da qualidade das respostas institucionais às demandas sociais por justiça, segurança e equidade.

A transformação do sistema jurídico brasileiro, especialmente no tocante à violência de gênero, exige representantes comprometidos com reformas legislativas eficazes, baseadas em dados, sensibilidade social e princípios constitucionais. A indignação social, para produzir efeitos reais, deve se converter em ação política consciente, orientando a escolha de legisladores comprometidos com a construção de um ordenamento jurídico mais justo, protetivo e coerente com os direitos fundamentais.

Em síntese, juízes aplicam a lei. Reformá-la, aprimorá-la e alinhá-la aos valores republicanos é tarefa do parlamento. Quando uma decisão judicial provoca repulsa, talvez o incômodo não resida na conduta do magistrado, mas sim na norma que lhe impôs tal resultado. Diante disso, resta a pergunta que a cidadania consciente não pode mais adiar: estamos elegendo representantes capazes de transformar o sistema legal em um instrumento real de justiça?

Evoneide Beserra da Silva

VIP Evoneide Beserra da Silva

Advogada e especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário. Cursa MBA em Gestão do Direito nas empresas com foco em prevenção de riscos e compliance nas relações empresariais.

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